Flores

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segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Anotações, feitas por mim para uma aula no Departamento de Filosofia da Unicamp, sobre O Sobrinho de Rameau, a música, etc. O livro de Daniel Couty é instigante, inteligente, útil. Segue então o itinerário que dele extraí. Eu bem que gostaria de ter lido o livro antes de publicar o meu texto sobre Diderot, Silêncio e Ruído, a Sátira em Denis Diderot. Haveria uma boa quantidade de caminhos que não trilhei e poderia seguir. A vida é a arte do encontro, embora exista tanto desencontro pela vida...


Estrutura do Sobrinho de Rameau

 (fonte: Daniel Couty, Le Neveu de Rameau (Paris, Hatier, 1972).

1)    Prólogo : No Café da Regência, o narrador faz-se abordar pelo sobrinho, um original estranho e ele estima pouco, mas de quem admira as opiniões reveladoras. “É então que o homem de bom senso escuta, e decifra seu mundo”.
2)    O gênio e a sociedade: pela crítica dos jogadores de xadrez, a conversa passa aos “homens sublimes”, únicos dignos segundo o sobrinho. Fala-se da vida de Rameau, de sua barba, de seu ventre e de seu tio músico, “avaro, mau pai, mau esposo, mau tio”. Jean-François infere que “o mal aqui em baixo sempre vem de um homem de gênio”. Qual o lugar do gênio na sociedade? Qual o seu comportamento para com os próximos? O que vale mais, ser gênio ou banal negociante? Todas estas perguntas são respondidas por Rameau como miserável, preocupado com o amanhã. Se Racine fosse vendedor de especiarias, “teria reunido fortuna imensa e não existiriam prazeres que ele não usufruísse”. Mas, escrevendo suas tragédias ele só foi “bom para os desconhecidos e para o tempo em que ele não era mais” (pour le temps où il n´était plus).
3)    O parasitismo como filosofia: Desempenhando o papel de fanfarrão, o sobrinho se apresenta como “ignorante, bobo, louco, impertinente, preguiçoso (…) velhaco, escroque, comilão”, qualidades que o fazem apreciar o circulo da artista de teatro Hus. Mas quando mostrou bom senso, foi expulso do pequeno paraíso. O filósofo sugere que ele peça perdão da protetora, e o sobrinho diz que não pode aceitar isto (mímica da súplica a Hus), nem deseja assumir seu estado de mendigo. Como ele poderia viver tão miseravelmente, possuindo o talento de adulador (mímica da sedução da mocinha pelo proxeneta)?  Esta atitude, aliás, reforça a sabedoria última do homem: “Na hora derradeira, todos são igualmente ricos…O stercus pretiosum!”. (E vem a mímica sucessiva do violinista e cravista para mostrar seus talentos).
4)    Educação das jovens:  das capacidades do sobrinho segue-se a educação da filha do filósofo, o qual reclama um ensino clássico, dito por Rameau “um perigo” e “inutilidade”, tolices. Existiria uma só pessoa capaz de verdadeiramente dominar sua ciiência para inculcá-la nos outros?
5)    Idiotismos morais: o sobrinho explica sua técnica no ensino da música. “Antes eu roubava o dinheiro de meu aluno, sim, o roubava, é seguro. Hoje o ganho, pelo menos dos outros”. Nesta passagem se estabelece o que Ele chama “idiotismo morais”, exceções à consciência geral. Ele usa vários exemplos: a verdade e a mentira em política, a inversão do provérbio “boa nomeada vale mais do que cintura dourada”, a ordem social contra a qual se revolta. Ele, mais à vontade diante do filósofo, afirma a supremacia do seu imoralismo, contra a moral tradicional.
6)    A felicidade: se para o filósofo a felicidade de fato reside no socorro aos necessitados (“é uma obra sublime o Maomé, mais gostaria de ter reabilitado a memória dos Calas”), Ele opõe o mundo real onde “uma infinidade de pessoas honestas não é feliz, e uma infinidade de pessoas felizes que não é honesta”, afirma que pode ser feliz usando seus vícios,  naturais nele. Ele mimetiza sua finura no ato de adular o gordo Bertin.
7)    A adulação, suma estética : Só, entre muitos de sua espécie, Ele elevou a bajulação ao nível estético. E narra a história do “cãozinho de Bouret”, não é lisonjeador quem deseja. Ele descreve as técnicas da adulação, até a postura da espinha abaixada, “comoda para rir para baixo do impertinente que se admira”. Ele deveria escrever um tratado da bajulação. E Rameau retoma a superioridade do genio sobre a técnica, da invenção sobre o preceito, mesmo em bajulação. “Engolimos num sorvo a mentira que os adula, bebemos gota a gota a verdade que nos sabe amarga”. Mesmo hábil, ele errou uma vez contra sua arte, o que lhe valeu a desgraça junto aos seus protetores.
8)    O zoológico de Bertin: na casa do financista Bertin detinha-se um mundo de pessoas, entre as quais Ele se distinguia. Alí estavam poetinhas, músicos mediocres, todos inimigos dos Filósofos. Da observação direta dos costumes, Ele passa à leitura da moral em ato. Rameau sabia ler as pessoas de dentro para for a, com o uso de sua situação de “louco”, pois é “mais difícil vencer em tolice do que em talento ou virtude. Ele reclama para si mesmo e para seus iguais o direito de não gozar da consideração pública, devido à sua postura vergonhosa.
9)    Moral. O sublime do mal : o filósofo se espanta: “porque mostrar para mim a sua torpeza?”. Vem o elogio do “sublime no mal”, o renegado de Avignon, canalha desprezível que chega ao sublime na perversidade, delatando seu amigo. Ele, excitado pela sua própria harenga (mimetiza um canto de triunfo), o interlocutor, indisposto, muda a conversa.
10) Querela dos Bufões: a discussão segue para a arte musical enquanto “imitação”. O filósofo traça um paralelo entre música e moral (“quando pronuncio a palavra canto, não tenho noções mais definidas do que vós e a maioria dos vossos semelhantes quando dizem; reputação, invectiva, honra, virtude”). Ele admira os italianos, mostra que o canto é “imitação dos acentos da paixão”. O debate segue sobre as operas bufas italianas. Ele condena os franceses “Tintamarra por música”, e elogia os méritos da trindade artística fundada sobre o verdadeiro, o bom e o belo. (E mima as árias das operas, os diferentes instrumentos da orquestra, sob os olhos espantados dos clientes do Café da Regência, atraídos pelo ruido. Ao voltar ao seu raciocinio, elogia “a arte da poesia lírica, que vai nascer”. E diz se preciso seguir “o grito animal da paixão” que dita a linha que nos convem.
11) Educação do Rameauzinho: fadigato pelo esforço, Ele é dominado pelo filósofo. Este se espanta com a distância entre a “sensibilidade para as belezas da arte musical” e a cegueira “para as belas coisas em moral” do compositor.  A sua resposta é o atavismo “a molécula paterna era dura e obtusa”. Dai a educação de Rameauzinho, a qual parte daquele fato, o atavismo. Seu filho não deve ser dividido entre as aspirações morais e a miséria natural, ele deve ser “feliz, ou o que é o mesmo, honrado, rico, poderoso”. É por isto que ele prepara seu filho para a selva, ensinando-lhe o respeito pelo ouro.
12) O perdedor: pergunta o filósofo sobre a causa do compositor nunca ter feito algo que valesse a pena. É porque a natureza não se esmerou ao fabricá-lo (mimetiza a natureza fazendo caretas) e as suas frequentações não encorajam a criação artística, ele nunca sentira a coragem de sacrificar a felicidade a um sucesso incerto. E no entanto, ele tentou vencer (mimetiza ridicularizando o cantos de rua e o pobre). O filósofo explica a condição do homem social com base na vontade da natureza. Ele replica que nada teria a acrescentar se não fosse obrigado a “executar posições” para comer (mimetiza os cortesãos, os valetes, os miseráveis).
13) Epilogo: há alguem dispensado das posições ? Ele diz que é o rei, mas o filósofo diz que o rei as executa pela amante e por Deus. Ele mimetiza o “grande abalo da terra”. Parece que o único isento da pantomima universal é o filósofo “que nada tem e nada pede”, como a própria mulher de Rameau (da qual ele imita o andar). Acaba o papo. Rameau segue para a Opera, joga numa pirueta final o desafio derradeiro : “ri melhor quem ri por último”.


Sobrinho de Rameau, notas elucidativas.


A história do texto, no caso do Sobrinho, liga-se às vicissitudes dos manuscritos diderotianos. Após a prisão em Vincennes e da interdição à Encyclopédie, o filósofo tornou-se cauteloso com os seus inéditos. Em várias ocasiões a polícia investigou sua casa à procura de escritos e, graças à ajuda de amigos postos no governo ele conseguiu esconder os textos. Em 1762 Diderot ficou horrorizado ao descobrir que tivera como hóspede um espião da polícia durante quatro anos. “Não é um acaso mais do que feliz que eu não tenha escrito nada mais ousado desde um tempo infinito? (…) Quando penso que ele [o espião] quase foi contratado como secretário por Grimm, para cuidar de todas as correspondências estrangeiras, isto me faz tremer de medo”, diz Diderot em uma carta. O nome do espião era Glénat, subornado pela polícia depois que o escritor lhe deu manuscritos para copiar. Glénat tornou-se um protegido de Diderot, que não sabia dos seus tratos com os policiais. E Diderot retira uma sabedoria sobre a bondade indiscreta: “Ocorreu comigo uma coisa que me dará circunspecção nociva à uma infinidade de pobres diabos de toda espécie que afluem para cá, que eu recebia e que irão encontrar minha porta fechada”. A experiência ruim pode ajudar a seguir a produção do personagem Sobrinho, como também mostra as dificuldades para se escrever no século 18.

Diderot, dado seu natural sentido compassivo, ajudava muito os pobres diabos que surgiam diante dele, como foi o caso de Glánat. Pode-se dizer que o filósofo tinha o vício da bondade, o que o fez ser explorado por vários malandros como o sobrinho. Sua filha fala de um sujeito chamado Rivière, sempre necessitado de dinheiro, a quem Diderot emprestava sem esperança de retorno, além de lhe fazer inúmeros favores. Quando Rivière conseguiu do filósofo tudo o que queria, sem restar nada a desejar, disse a Diderot: “Senhor Diderot, conheceis a história natural? (…) Conheceis a história da Formica leo? —Não— É um pequeno inseto muito industrioso; ele abre na terra um buraco (…) o cobre na supefície com uma areia bem fina e leve; para alí ele atrai os insetos tontos, os prende, os suga, depois lhes diz: Senhor Diderot, tenho a honra de vos desejar bom dia!”. (AT, I, XLVIII-XLIX, citado por Wilson). Digamos que nos seus tratos com indivíduos equívocos, que serviam inclusive à polícia, Diderot recolhe elementos para imaginar a figura do sobrinho e prudência para não deixar seus escritos à vista.
No testamento escrito antes de partir para a Rússia, em 1773, Diderot encarrega Naigeon de “rever e publicar todo o que lhe parecer não ferir sua memória, nem a tranquilidade de ninguém” (Correspondance, t. XII, citado por Anne-Marie Chouillet). O filósofo vendeu sua biblioteca para Catarina 2, com a entrega a ser feita somente após sua morte. Muitos copistas trabalharam junto a Diderot durante o fim de sua vida e depois de seu falecimento, reproduzindo seus textos. Mas o relacionamento entre a filha e genro de Diderot e Naigeon se deteriorou, e os projetos de publicação foram detidos. Naigeon não publicou o Sobrinho de Rameau em sua edição das Obras de Diderot (1798) seja porque houve a briga com os parentes do filósofo, seja porque levou a sério a recomendação de não prejudicar a tranquilidade das pessoas.  Ele apenas se refere à uma sátira excelente nos seus Mémoires historiques et philosophiques sur la vie et les ouvrages de Diderot.

A cópia de Leningrado chamou a atenção de um comandante da Escola de cadetes, Maximilien Klinger, que mandou fazer uma cópia clandestina, a que tombou nas mãos de Schiller, que a passou para Goethe, o qual a traduziu em 1805. A primeira vez que o Sobrinho veio a público, portanto, não foi em francês mas em alemão. Destino de Diderot, considerado pela crítica conservadora do século 19 francês como o “mais alemão dos escritores francêses”. Em 1821, dois falsários apresentaram ao público da França um texto “francês” do diálogo. Só que se tratava apenas de uma tradução da tradução de Goethe. Maurice Tourneux, após viagem à Rússia, teve em mãos a cópia de Catarina 2, editando o texto mais seguro nas Edições das Oeuvres complètes de Diderot, surgida em 1884 (a primeira edição das Oeuvres é de 18759.

Não termina aí a aventura do texto, parecida com os passeios perdidos de Jacques o Fatalista. Em 1890 Georges Monval, bibliotecário da Comédie Française, reconhece numa coleção de tragédias vendida numa barraquinha de livros velhos, na beira do rio, a escrita de Diderot num inédito. E publica em 1891 o Sobrinho de Rameau. Onde está agora aquele manuscrito? Na Pierpont morgan Library de Nova York. As grandes edições utilizáveis plenamente são a de Jean Fabre e a de Henri Coulet.
Alguns comentadores colocam a primeira escrita do Sobrinho na crise trazida pela comédia Os Filósofos, de Palissot, na qual os enciclopedistas e Diderot, também Rousseau, foram ridicularizados. Depois da raiva, o texto teria sido “melhorado” com maldades feitas a frio. Outros consideram que é inútil procurar camadas temporais no texto. Todas as hipóteses são válidas, porque nenhuma delas possui documentação para se validar.

Elementos do diálogo.

O sobrinho. Durante bom tempo se pensou que o personagem era invenção diderotiana. Goethe considerava esta explicação verdadeira. J.F. Rameau existiu, nasceu em 1716, casando-se em 1757 e seu filho, “o pequeno selvagem” nasceu em 1761. Escreveu o poema auto-biográfico A Rameida (1766) e compôs peças para cravo, o que é atestado pelo jornal Ano Literário (outubro de 1757). Também compôs árias e uma sinfonia apresentada no Concerto Espiritual. Estas composições não chegaram até hoje. Ele foi militar, seminarista, e viveu pobre, do que se queixa na Rameida, tal como aparece no Sobrinho. Não se conhece a data da morte. Seu amigo Cazotte, que escreveu a Nova Rameida diz ele morreu “numa casa religiosa onde sua familia o tinha colocado”, outros dizem que ele faleceu num asilo de loucos.

A música.

Diderot era amigo de Grimm e de d´Holbach, e com eles jogou-se na Querela dos Bufões, que mexeu com o mundo da musica francêsa, na hora em que a guerra entre os adeptos de Lulli e de Rameau se acalmou. Quando ocorreu uma representação da Serva padrona (em 1752) pelos Bufões, companhia italiana, começa a batalha. Em novembro surge a brochura Carta à uma dama de certa idade, sobre o estado presente dos Bufões e a Guerra da Opera, escrita por d´Holbach. Grimm lança o texto O pequeno profeta de Boehmichbroda, o corretor dos bufões e a guerra da Opera. A partir destas publicações, formam-se dois partidos, o canto da rainha (Grimm, d´Holbach, os enciclopedistas) e o do canto do rei (marquesa de Pompadour, Fréron, etc) que defendia a música francêsa.  Muita tinta correu nesta batalha, entre muitos, o texto de Rousseau Carta sobre a música francêsa (1753), quando Rousseau caçoa do canto francês. Rameau replica a Rousseau com o texto intitulado Observações sobre nosso instinto para a música.  Diderot quase não disse nada, salvo dois pequenos escritos: Ao pequeno profeta (1753) e Os três capítulos, de difusão muito restrita. Quando os Bufões deixam Paris, acaba o episódio que favoreceu a criação da Opera cômica, apressando o fim da tragédia lírica.

No Sobrinho surge com evidência o conhecimento pleno que Diderot tinha de Rameau. Nas suas linhas topamos com os títulos das árias de muitas tragédias líricas ou balé de opera, com marcante presença das Indias Galantes. É lembrar que Diderot trabalhou com Rameau no texto Demonstração do princípio da harmonia (1750). O sobrinho entoa árias da Serva padrona, da Ilha dos loucos, do Marechal Ferrand, etc.  Também a música sacra entra no diálogo, como é o caso do Stabat.

Rameau pensava e escrevia música como cartesiano. Ele buscava a inteligibilidade da música, e redigiu tratados para tentar esta façanha. Acima de tudo, ele só reconhecia a autoridade da razão própria. Como cartesiano, abusou do espírito de geometria, o que lhe valeu a pior querela de sua vida, com D´Alembert, o que causou a sua ruptura com aquele matemático e colaborador infiel da Enciclopédia. O cartesianismo, tal como vivido ainda nos dias de Rameau, era um movimento crítico, de revolta contra as imposições dogmáticas, no mesmo passo em que se desejava uma explicação racional do mundo. As autoridades recusadas eram Aristóteles, dos padres, etc. Proclama-se naqueles dias a soberania da razão natural, a qual só se inclinaria diante de argumentos. Basta recordar a definição da era crítica por Kant: nosso tempo é a era da crítica, dela querem fugir a religião com a sua santidade e o governo, com sua majestade. Mas os dois só levantam mais suspeitos sobre o seu comportamento com esta fuga. Tudo deve ser submetido à crítica. Cem anos depois da morte de Descartes, o Discurso do Método ainda é tido como uma declaração de autonomia da inteligência. Rameau pensava assim.

O cartesianismo não criticava apenas. Ele queria explicar o universo, o homem, etc. Tudo passa a ser explicado “por figura e movimento”, segundo um modelo matemático. Tudo no universo, da pedrinha às estrêlas é pensado segundo princípios racionais, forças calculáveis, objetos submetidos a leis. E tudo é visto como imenso mecanismo: tudo é máquina, polias, rodas, contrapesos, etc. Se o universo funciona como um relógio, pode-se dominá-lo conhecendo os mecanismos que o regem. Se não podemos mudar suas leis, podemos usá-las depois de conhecê-las. Aprofunda-se a unidade entre técnica e saberes especulativos, na linha trazida por Francis Bacon. Estavam dadas as bases da Enciclopédia. Quando a obra coletiva dirigida por Diderot aparece, Rameau tem 60 anos. Ele vivera boa parte de sua existência no clima de loucura matemática que imperou na Europa a partir do século 17. A matemática transformou-se até mesmo em competição de cidade contra cidade, discute-se a trajetória de uma bola de bilhar, as chances num jogo de loteria, etc.Tudo, absolutamente tudo, torna-se matéria de cálculo. Procura-se, atrás das aparências sensíveis (da estética…) o verdadeiro mecanismo que as produz e delas fornece a inteligibilidade. Tudo é combinação de forças, de tempo e de espaço. O que é o som de um sino, ou de um violino, ou mesmo o canto de um pássaro? Combinações de vibrações redutíveis a relações numéricas. Para ver a natureza tal como ela é, são necessários instrumentos matemáticos, pois os nossos olhos não podem ennxergar o inverso da decoração do palco natural.

Rameau procede como cartesiano: antes do saber, a dúvida, a crítica. O seu primeiro passo é criticar, nos fundamentos da música, seus predecessores, de Pitágoras aos teóricos modernos. Todos teriam sido empíricos, e encontram alguns fragmentos da verdade devido ao uso de sua razão, embora não guiada pelo método. Se desejamos entender a essência da música, devemos nos livrar da experiência imediata, empírica. Assim, diz ele no começo do Tratado da Harmonia: “Se os músicos quisessem desconfiar de seu ouvido!”. Trata-se de por a razão na posse de seus direitos.  A música não escapa da ordem universal dos fenômenos da natureza. Para entender a natureza da música é preciso fazer como os físicos e partir do abstrato. Os santos padroeiros de Rameau, neste ponto, são Galileu e Descartes. Ele recusa a observação direta e ingênua, aceita que a verdade dos fenômenos esconde-se atrás da aparência sensível imediata. O ouvido só pode ser chamado a intervir depois que a razão ordenou o campo dos fenômenos.
A acústica tinha feito progressos no século 17 e 18, e o debate das Luzes passa por ela, porque nela se encontram o interesse estético e técnico-científico. A questão das cordas vibratórias tinha sido estudada pelos gregos e foi retomada por Galileu nos Discorsi de 1638. o padre Mersenne, entre muitas experiências e descobertas sobre as cordas vibratórias. Estas pesquisas levantaram o plano do qual surgiu a teoria de Rameau.

A música, segundo Rameau,  apoia-se numa realidade objetiva, não em nossos ouvidos, mas na fisica e só pode ser analisável segundo relações matemáticas. Trata-se de investigar a natureza do som. O conceito de natureza usado por Rameau não é o que se apresenta na aparência, mas na realidade acessível ao raciocínio, a natureza das coisas é objetiva, independe dos sentidos humanos. A emoção sentida na música deve ser explicada a partir de um princípio objetivo: “não sabeis, diz Rameau, que a música é uma ciência fisico-matemática, que o som é  o seu objeto físico, e que as relações encontradas entre os diferentes sons são objeto da matemático e geométrico?”

É por esse motivo que Rameau fundamenta a sua pesquisa no estudo do corpo sonoro. Este, “ que chamo a justo título, som fundamental, este princípio único, gerador e ordenador de toda música, esta causa imediata de todos os seus efeitos, o corpo sonoro, digo, ressoa e engendra ao mesmo tempo todas as proporções contínuas donde nascem a harmonia, a melodia, os modos, os generos e até as menores regras necessárias à prática”. (Demonstração do Princípio da Harmonia, Música Arrazoada). Cartesiano, Rameau busca, como Descartes, o principio único e unificador da ciência que procura fundamentar. No caso de Descartes trata-se do Cogito e no de Rameau do som fundamental.

A música, para ele, se articula em três domínios:

O físico : as vibrações, objeto de observação e de experimentação.

O matemático: método de análise sem o qual as realidades fisicas parecem confsas e inapreciáveis. Trata-se do cálculo das relações quantitativas entre os sons pelo comprimento e divisões das cordas que o fazem ressoar, em analogia com a frequência das vibrações.

O técnico: aplicações que o músico tira do conjunto de seus conhecimentos teóricos, com os quais ele nutre e sustenta seu gênio e produz o prazer do ouvido e excita as paixões.

Segundo Rameau, só um músico geômetra ou “artista filósofo” pode conduzir tal programa. Um matemático ou físico apenas, sem considerar os efeitos no ouvido dos auditores, veriam apenas números e vibrações. Um músico sem matemática ou física estaria votado à experiência empírica, à prática às cegas. Rameau que unir arte e ciência.

Diz Rameau: “a música é uma ciência que deve ter regras certas; estas regras devem ser extraídas de um princípio evidente, este princípio não pode ser conhecido sem as matemáticas. Assim, confesso que, apesar de toda experiência que poderia adquirir na música por te-la praticado durante muito tempo, só com o recurso das matemáticas minhas idéias se desenvolvem, surgindo a luz em lugar da obscuridade que antes percebia”.

Note-se: enquanto Descartes enuncia as regras para a direção do espírito, e as enuncia a partir de um princípio único tendo como paradigma a mathesis universalis, ciência da ordem mais profunda até do que as matemáticas, mas da qual as matemáticas seriam um elemento fundamental, Rameau também enuncia regras a partir de um só fundamento, e as desenvolve a partir do modelo matemático. Não é o ouvido empirico, imediato, do músico ou do auditor, que fornece a base do pensamento e da teoria musical. Apenas a razão, sob a forma da análise matemática, é qualificada para dar conta do som, definir intervalos, acordes, tonalidade. A natureza do som é evidente como o Cogito cartesiano: só é atingida pelo exercício do pensamento metódico e matemático. A evidência não é imediatamente empírica. Ela consiste em que elementos imperceptíveis são extraídos por análise e, uma vez atingidos, explicam claramente a realidade percebida, até então ininteligível. Trata-se, como em Descartes, da evidência intelectual, a única que resiste à dúvida. Deste modo, o som de um sino, uma corda, uma coluna de ar que vibra em seu tubo, estes sons são perceptíveis mas só podem ser explicados se decompostos em sons elementares, som fundamental, dupla quinta, etc. A natureza do som não é liberada para nós imediatamente, mas só após o trabalho da razão, do intelecto que divide, ordena, separa, classifica os sons.

Rameau passa da música ao universo e, tal é a crítica mais frequente ao seu pensamento, à custa de não raras acrobacias aritméticas. O Tratado da Harmonia, no qual ele trabalhou trinta anos, é um frenesi de calculos, depois disto, no tratado da Geração Harmônica, ele atenua este afã de calcular em benefício da empiria e da experiência. Mas Rameau apenas radicaliza em terreno da empiria as teses cartesianas sobre a ordem universal, a mathesis universalis. “A ordem” diz Descartes, “consiste apenas nisto, que as coisas propostas em primeiro lugar devem ser conhecidas sem ajuda das seguintes, e as seguintes deve ser dispostas de tal modo, que são demonstradas apenas pelas coisas que as precedem”. Segundas Respostas às Objeções contra as Meditações Metafísicas.

Evidência, clareza, distinção e ordem das razões é o modelo metódico cartesiano, o qual domina o pensamento de Rameau. Descartes ideou uma árvora da ciência, cujas raízes seriam a metafísica, depois o tronco com a física, etc. Em Rameau a árvore tem como raízes os conceitos elementares trazidos pela análise do som, o tronco é a tese, que trouxe má fama para Rameau e os ataques de Rousseau e demais escritores, do primado da harmonia sobre a melodia.

Tese de Rameau: a música repousa, em sua essência, nas combinações sonoras da qual Rameau julga ter produzido uma espécie de gramática. Toda realização musical resulta ou deriva de uma combinatória elementar. O músico ignorante ou o ouvinte idem, seduzidos pela sensação imediata, confundem música e melodia, confundem real e aparente. Segundo Rameau, a harmonia não se acrescenta à melodia como simples ornamentação. É a harmonia, pelo contrário, que torna possíveis todas as produções musicais. É ela, fundada no baixo fundamental, que inflete e colore a melodia, que lhe dá seu poder, sua força e encanto. A harmonia é a primeira, a melodia é segunda.

Mas a vida não julga em favor da melodia? As pessoas cantam em uníssono, antes de decifrar o baixo contínuo. Não responde Rameau: a harmonia subjaz na natureza, e as pessoas a supõem, mesmo sem conhecê-la. E Rameau exemplifica:

“quando se termina um canto --- desta maneira: ré – ré – dó -  dó , fazendo um tremido (dito cadência) no segundo ré, sentir-se-á o efeito de um repouso absoluto, seja porque o acampanhamos de seu baixo fundamental Sol Dó, seja porque não o acompanhamos porque o subentendemos sempre sem pensar”.

Vejamos o que diz Rousseau sobre o baixo fundamental: é formado pelos sons fundamentais da harmonia, abaixo de cada acorde ele faz ouvir o verdadeiro som fundamental deste acorde. O baixo fundamental não pode ter outra contextura que a de uma sucessão regular e fundamental, sem a qual a marcha das partes superiores seria ruim. Segundo Rameau, diz ainda Rousseau, todo acorde, embora formado de muitos sons, só tem um fundamental, o que produziu este acorde e que lhe serve de baixo na ordem direta e natural. Assim, muitos acordes são apenas inversões de um só acorde, etc.
Remeto os senhores ao Dicionário de Música, onde Rousseau desenvolve, para depois combater, a tese de Rameau sobre a predominância da harmonia sobre a melodia.

Importa, para nosso alvo no curso, dizer que segundo Rameau o relevante é o sistema. O som musical, não é realidade isolada, que possuiria propriedades intrinsecas. As propriedades musicais encontram-se nas relações dos sons uns com os outros, nas combinações de sucessões e simultaneidades (diacronia e sincronia) nos intervelados com suas diferenças. A música é um todo regrado de relações e quem deseja entendê-la, deve seguir a sua rede, como uma gramática. Esta distinção, pensa Rameau, permite distinguir o ruído do som. Um ruído é isolado, não se prende a nenhum sistema de referência, enquanto o som mesmo se emitido sozinho, não é isolado, participa de um sistema que o ouvido musical restabelece implicitamente, e que o compositor escreve explícitamente, que o artista toca realmente. Assim, a harmonia, por sua natureza estrutural em sistema, fornece a lei da música, dá-lhe força, expressividade e encanto.

Rameau foi saudado com entusiasmo por D´Alembert em nome da Enciclopédia, foi saudado com entusiasmo pela Academia de Artes, etc. Sua tese, no entanto, que já forçava o plano da música enquanto demonstração matemática, ele a generalizou para todo conhecimento e todo o universo. “Ha´uma ordem”, diz ele como perfeito cartesiano,” primitiva e invariável na natureza, sobre a qual tudo deve ser estabelecido, e da qual é preciso partir”. Não contente de submeter a música à matemática, por um modelo, ele coloca a música assim entendida no centro do saber. Ela se torna a rainha das ciências. D´Alembert, como boa parte do século 18, desconfia dos sistemas. E arrazoa: Rameau tem alguma razão de usar formas e analogias matemáticas, mas o que ele quer dizer quando pretende “demonstrar” a música? Isto significa que a música é demonstrável como a geometria? E D´Alembert dá um golpe em Rameau: nenhuma ciência física é demonstrável para falar com propriedade, todas elas tem um modo conjectural porque se apoiam em parte sobre o dado empírico; uma ciência física só pode imitar um modelo dedutivo sem poder tomá-lo completamente. E D´Alembert diz a Rameau. “a Academia não aprovou, e jamais aprovará, os vossos esforços [de Rameau] para encontrar o princípio da geometria no corpo sonoro”. Esta pretensão, desde 1750 foi defendida por Rameau, que via na música “um espelho da natureza em sua parte científica”. A partir daquela data, não é mais as matemáticas que devem fornecer o modelo para a música, é o contrário. O principio da geometria encontrar-se-ia no corpo sonoro. A música seria a chave da inteligibilidade do universo inteiro. Rameau delira racionalmente. A música fornece o princípio da inteligibilidade e também encarna o fundamento material de toda verdade e é dela que as demonstrações matemáticas emprestam sua certeza. Ela é a emanação da verdade eterna aplicável a toda ciência possível. Assim, temos o retorno de Pitágoras na figura de Rameau: existe uma harmonia universal, proclama o compositor, e tal harmonia vai do mundo físico ao social, deste ao político. Os enciclopedistas de um lado, e Rousseau de outro, que enxergavam no mundo social tudo, menos harmonia, recuam no apoio a Rameau e começam a criticar o delirante. E começou a polêmica mais do que desagradável que fez correr um rio de tinta. E temos aí, uma base para a violenta sátira de Rameau, na pessoa do sobrinho.

É preciso também recordar que Diderot, embora não erudito em matemática como d´Alembert, possuia conhecimentos e escritos sobre a música. Na Enciclopédia ele ajustou verbetes sobre o tema e redigiu um texto, os Mémoires sur différents sujets de mathématiques, um dos primeiros escritos seus. Alí, das cinco partes, três são consagradas à acústica teórica ou experimental. Os textos tratam das vibrações das cordas, algo que continua nos Pensées sur l´interpretation de la nature. Toda a sua vida Diderot se preocupou com a acústica. No plano prático, projetou um meio de fixar o diapasão, o cronômetro e, finalmente, o registro, mais um projeto de orgão mecânico. Assim, o tema de fundo do Sobrinho. o ruido, o som, a música de Rameau e a música italiana, a harmonia e a melodia, é tratado por um escritor que domina o seu assunto. Aliás, praticamente todos os escritos diderotianos passam pela música, como é o caso das Joias Indiscretas, A Religiosa, a Carta sobre os surdos e os mudos, alguns artigos da Enciclopédia, e as Conversas sobre o Filho Natural. Mas ele se queixa, nas Conversas sobre o Filho Natural, de não ser músico, de muito amar a música, querer mas não aprendê-la. A sua tentativa de inventar um orgão mecânico surge justamente para que os leigos em música possam executá-la, sem os constrangimentos técnicos da execução. Mas como em boa parte das casas que podiam, em termos economicos, a música era comum na residência dos Diderot.

Na Religiosa, Simone Simonin, quando chega ao convento de Arpajon, canta: “Era a noite. Trouxeram velas, me sentei, coloquei-me ao cravo; preludiei durante muito tempo na busca de um trecho musical em minha lembrança, que antes era cheia mas agora se esvaziara, cantava sem no canto ouvir algo fino, por hábito, porque o trecho me era familiar (…) Tristes preparações, pálidas tochas, dia mais tremendo que as trevas”. A ária cantada por Simonin, tirada de Castor e Pollux de Rameau, também é cantada pelo Sobrinho: "Pálidas tochas, noite mais tremenda que as trevas…deuses do Tártaro, Deus do esquecimento”. Ele inflava a voz; sustentatva os sons; os visinhos se punham nas janelas, colocávamos nossos dedos nos ouvidos, acrescentava, aqui é preciso pulmões; um grand eorgão; um volume de ar”. Diderot usa com maestria o aturdimento da religiosa forçada, inclusive na lembrança dos versos do libreto. Ela canta as “tristes preparações” de um enterro. Na opera de Rameau o enterro é de Castor, na Religiosa,  Simonin canta a sua própria descida ao túmulo, o convento,  “tristes preparativos…”. TÉLAIRE(no mais profundo luto):  “Tristes preparativos, pálidas tochas, dia mais tremendo que as trevas, astros lúgubres dos túmulos, nã verei mais vossas claridades fúnebres, tu que vês meu coração perdido, pai do dia, ó Sol, ó meu pai, não quero outro bem que Castor, e renuncio à luz”. O sobrinho troca o dia pela noite: “noite mais tremenda que as trevas…”.

Pode-se dizer que o conhecimento da música, em Diderot, era a média dos cultivados naquela arte. Quando escrevia as Lições de Cravo e retomava a redação do Sobrinho, ouviu sinfonias e música de câmera de Carl Philipp Emanuel Bach, Stamitz, Haydn e Mozart. O que Diderot sabe de música, deve a Rameau, pelo menos nos grandes elementos. Diz Diderot sobre a distinção entre ruído e som, distinção bem ramista, mas com alguma diversidade: “o ruido é um, o som pelo contrário não fere nunca só o nosso ouvido. Ouvimos com ele outros sons concomitantes que chamamos harmônicos” (Mémoires sur differents sujets de mathématiques, citados por Béatrice Durand Sendrail, Diderot, écrits sur la musique, Ed. Jean-Claude Lattès, 1987).

A música entra como metáfora nos textos teóricos e epistemológicos de Diderot. À metáfora visual, a mais enraizada na cultura metafísica do Ocidente, Diderot substitui outras, auditivas, ligadas ao tato, etc. Desde Platão o recurso às metáforas emprestadas da percepção sensorial é algo banal. “Para julgar”, escreve Diderot, “é preciso ter ao menos duas coisas presentes, o objeto que parece permanecer sob os olhos do entendimento, enquanto ele se ocupa com a qualidade que afirmará ou negará” (Entretien entre Diderot e d´Alembert). À semelhante metáfora visual, Diderot acrescenta, corrigindo-a, a metáfora auditiva e musical :”Eu penso. É o que me faz às vezes comparar as fibras de nossos orgãos a cordas vibratórias sensíveis. A corda vibratória, sensível, oscila, ressoa durante bom tempo depois que foi pinçada. É esta oscilação, esta espécie de ressonância necessária que segura o objeto presente, enquanto o entendimento se ocupa da qualidade que lhe convem. As cordas vibratórias têm ainda uma propriedade, a de fazer as outras fremir. É assim que uma primeira idéia chama a segunda”. (Idem, sempre no texto de Béatrice Sendrail Durand, op. cit).

O juízo deixa o plano do olhar do intelecto, mas o da percepção dos sentidos todos, num concerto de várias percepções. O sujeito humano é uma espécie de cravo bem temperado. Os seus defeitos encontram-se na falta de ajuste de suas cordas vibratórias e na execução medíocre oferecida pelos diversos “cravistas” que não sabem tocar a si mesmos. Se a metáfora do olho intelectual dava ao sujeito pensante um papel ativo, no modelo diderotiano o sujeito que percebe tem um papel mais passivo diante dos agentes externos que o fazem ressoar. Perceber não é mais julgar, é deixar-se comover pelos vários agentes do mundo. Para explicar ao aluno imaginário de suas Lições de Cravo, o autor Diderot usa exemplos do mundo exterior, no domínio estético e moral: “a discórdia faz [na harmonia] o mesmo papel que no universo; é a dor que torna o prazer picante; é a sombra que faz valer a luz; a fadiga fornece ao gozo a sua doçura; é o dia nebuloso que embeleza o dia sereno; é o vício que serve de fardo à virtude; é a feiúra de marca o brilho da beleza; é por oposição que os caracteres se distinguem; é no claro escuro que consiste a magia da pintura; os poetas de gosto refinado não deixaram de jogar uma idéia triste no meio de imagens risonhas e voluptuosas. Estas tornam-se mais interessantes. Um pouco de ruido longinquo empresta um encanto inconcebível ao silêncio; um ser pensativo relegado ao canto de uma solidão, aumenta a solidão. Uma felicidade que nada altera, torna-se enfadonha” (Lições de Cravo, Sendrail, p. 24). Todos estes exemplos são usados por Diderot para dar uma idéia da música e da harmonia.

E no Sobrinho: “o ponto importante, difícil ao qual um bom pai deve sobretudo se apegar, é de não dar ao seu filho vicios que o enriqueçam, ridiculos que o tornem precioso aos grandes, todo mundo faz isto, se não for sistemáticamente como eu, pelo menos com o exemplo e lição; mas lhe marcar a justa medida, a arte de esquivar da vergonha, da desonra, das leis; são dissonâncias na harmonia social que é preciso colocar, preparar e salvar. Nada mais aborrecido e superficial que uma série de acordes perfeitos. É preciso alguma coisa que belisque, que separe o feixe e espalhe os raios”.  A educação deve salvar na criança o que dela faz uma dissonância no corpo social.

Música em Diderot e em Platão:

Em Diderot a música tem papel ambiguo, falando-se em termos políticos. Ela pode ser um fator de coesão social e fermento de dissolução. Diz ele sobre a música na Grécia antiga (Carta à Senhorita de La Chaux): “Em Atenas, os jovens davam quase todos dez ou doze anos à música; e um músico que tem como auditor e juiz apenas músicos, um trecho sublime devia naturalmente jogar toda uma assembléia no mesmo frenesi pelo qual são agitados os que o executa em nossos concertos. Mas é da natureza de todo entusiasmo o fato de se comunicar e de crescer com o número de entusiastas. Os homens têm, então, uma ação recíproca uns sobre os outros, pela imagem enérgica e viva que todos oferecem  da paixão pela qual cada um deles está transportado”.

Esse trecho refere-se à República e às Leis, onde são descritos o papel da música na cidade e o lugar que ela tem na educação. (Rep. II, 376d, III, 400 a-b; Leis VII, 802a). Segundo Platão, a música conduz ao melhor e ao pior. Ela pode arruinar a ética, mas também pode exaltar a coragem e a virtude. O legislador deve se interessar por ela, prevenindo o mal, impedindo a música lasciva, decadente, favorecendo a música ética, que serve como instrumento de coerção moral sobre as massas. A música pode unir indivíduo e sociedade, é o meio pelo qual comungam e se exprimem coletivamente os indivíduos do corpo social. Esta imagem da sociedade ateniense comungando na escuta de sua música seduziu Diderot. A música produz uma política correta.

Mas ela também é sensibilidade, ou melhor, sensualidade. E esta última, na ordem social, faz o papel de fermento de desordem. Os personagens diderotianos romanescos ou tomados pela música sem os corretivos da razão, tornam-se “deslocados”. É o caso do sobrinho. Se em Platão este lado da música suscita desconfiança, em Diderot ele nunca foi pejorativo, no entanto. A música, então, não é negativa em termos políticos ou éticos, ela é ambigua, pois une e separa os indivíduos e grupos. O sobrinho é um anarquista, mas também é um virtuose, o que supõe uma disciplina, pelo menos mínima.



Teatro

Alguns comentadores adiantam que Diderot seguiu para o romance, porque fracassou no teatro. E outros seguem adiante tentando mostrar que o elemento satírico sucede ao patético do teatro diderotiano, como é o caso do Pai de Família.  Mas outros autores, como Jacques Chouillet indicam que o Sobrinho pode, perfeitamente, ser o correspondente do patético que encontra-se no Elogio de Richardson. Assim, os comoventes quadros morais e apologia da bondade, na peça de teatro e nas lágrimas vertidas pelas heroínas virtuosas e sofredora de Richardson,  podem coexistir com a “pantomima dos miseráveis” do Sobrinho.

No centro do texto do Sobrinho temos uma peça teatral, Os Filósofos, de Palissot. Em 1760, esta peça foi apresentada com triunfo, enquanto a peça de Diderot, O Pai de Familia, obtem um sucesso moderado. A peça maldosa vence a boa. A afronta ao partido da Enciclopédia não foi lavada. Jean-François frequentava o financista Bertin, protetor de Palissot e as pessoas de seu partido. A ordem seguida por Diderot é fazer Jean-François, Rameau o louco, indicar Palissot, como infâme, adulador, parasita, etc. Jean-François, recem expulso por Bertin, serve perfeitamente ao papel. Desta situação real/teatral, saem os temas do diálogo: o desnudamento do pacto social que torna possível indivíduos desprezíveis como Bertin e Palissot, a crítica da mentira, a reabilitação do gênio, a busca de um princípio pedagógico, a definição do bem soberano, a busca da liberdade impossível.  Há um lado crudelíssimo no texto: Jean-François perdeu seu filho logo depois dos eventos insinuados no Sobrinho. No texto, ele ainda não tinha morrido, de modo que soa como uma profética desgraça a descrição do pai como a pessoa que suborna o próprio filho.  Assim, por um só personagem, estamos no centro de todos os problemas contemporâneos, no ponto crucial em que a estética encontra a moral, a pedagogia, a política.


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