O
fanatismo é zelo cego e apaixonado, nascido de crenças endurecidas e que faz
cometer atos ridículos, injustos e cruéis, não apenas sem vergonha ou remorso,
mas com uma espécie de alegria e consolo. O fanatismo é a recusa de qualquer
convívio social livre e democrático.
Imaginemos
um enorme templo onde a cada metro exista um altar a certo deus inimigo de
outros, postos em altares próximos. A guerra entre os vários seguidores não se
limita ao interior do templo mas segue fora dele, prejudica a todos os alheios
aos cultos ali praticados. A técnica usada pelos adeptos de todos os deuses é o
paradoxo. Paradoxo é termo grego que significa ir contra o pensamento comum. Absurdos
são usados pelos fanáticos para
maravilhar ou trazer medo aos que não partilham
suas crenças. As falas paradoxais são acompanhadas de gestos paradoxais,
prodígios, promessas, milagres. O medo, sobretudo o de perder a vida e o
sentido da vida. Os fanáticos costumam aterrorizar os ainda não atraídos por
seus dogmas. Do inferno às ameaças de morte, na receita do fanatismo o medo é o
fermento que faz crescer a massa.
O medo
divide os ameaçados física ou moralmente pelo fanático. Este não aceita a condição
de minoria e tenta desorientar a maioria, gera guerra e secessão. Um meio para
tal fim é a calúnia, a injúria, mentiras
sobre os que não vivem na seita e, mesmo, dos que nela vivem mas não aprovam
totalmente seus métodos e certezas. A luta do fanático para impor dogmas começa
na perseguição dos que, em vez de acreditar na sua palavra, procuram a verdade
fora dos círculos por ele dominados. O medo faz o fanático indicar vítimas
propiciatórias, as quais devem ser massacradas para que seu partido seja aceito
ou aplacado. Não existe fanatismo sem execuções físicas ou morais dos alheios
ou contrários à fé sectária. Quanto mais justa e prudente uma pessoa, mais será
ela candidata ao ataque dos fanáticos. As crianças e os velhos são também
destinados ao sacrifício, porque as primeiras estão longe de serem militantes
ágeis do fanatismo, e os segundos deixaram a idade em que podem ser úteis à
causa assassina.
O
fanatismo surge em todas as sociedades, classes, situações humanas. Nas igrejas
e partidos políticos encontram-se fanáticos e pessoas prudentes. Numa crise
social, política ou econômica, no entanto, os fanáticos ganham relêvo, aproveitam
o medo da sociedade para aprofundar o embate de todos contra todos. O fanatismo se instala no mundo islâmico ou
cristão, católico ou protestante, ateu ou religioso. O fanático adere a certezas
que ele jamais critica e tenta impor aos demais. O fanático nunca duvida. Sua
fala e atos sempre são afirmativos, sua
escrita não conhece o sinal de interrogação, mas apenas o de exclamação. Seu discurso
não busca persuadir pois sempre quer mandar sem réplicas. O fanático é surdo
para as falas que não repetem suas doutrinas. Ele não ouve razões alheias que,
no seu entender, são crime a ser punido com castigos físicos, morais, ou a
morte. Elias Canetti, em Massa e Poder, fala dos poderosos
que acumulam corpos mortos, para que o seu apenas sobreviva. Ela também recorda
os que acumulam riquezas, o famoso que
acumula aplausos ao seu nome. Ele não fala, nem seria preciso, do fanático que
acumula espinhas curvadas diante de sua prática aterrorizante. O fanático
também acumula corpos de crianças, mulheres, jovens e idosos imolados à sua
crença. A sua lógica é a seguinte: existem lados na sociedade. E nestes lados
vivem o bem e o mal. O bem, por definição, está no acampamento do fanático. O
mal, claro, reside nos setores que não o reconhecem.
O
fanático é hipócrita, pois usa a máscara da religião, da democracia, do bem
comum social, da justiça, para minar os mesmos valores em nome de seus desejos.
O fanático ignora toda amizade efetiva. Para ele, quem não aceita seus ultimatos são inimigos.
Amigos, e sempre temporários, só os que pertencem no momento ao seu círculo sectário.
O fanático não valoriza partidos políticos ou religiosos, mas vive e lavora em
regime de facção, prestes a dar golpes nos coletivos que ele considera
inimigos. O fanático se revela corrupto e não é responsável: se calunia, rouba, mata, tudo é feito em nome da Causa que, por definição jamais pode
ser criticada pelos outros mortais. Se estes últimos falam em nome próprio, o
fanático sempre se julga a voz de Deus, da História, da Ideologia, da Raça. E,
como pressuposto, sua divindade, sua história, sua raça e ideologia são
“superiores”. Os seus decretos de vida e
morte são inapeláveis. O fanático não aceita o Estado e a sociedade porque, na
sua mente, só ele encarna o verdadeiro Estado e a verdadeira sociedade : ambos
definidos pela sua crença. O fanático, como o terrorista, não reconhece
autonomia e independência dos poderes porque ele se julga legislador, executor,
julgador e carrasco. Sua lei não pode ser pensada ou discutida. O fanático é o
executivo sem amarra externa, legislativa ou judicial. O próprio fanático é
molécula das ditaduras mas, ao contrário das ditaduras comuns, a dele precisa
durar eternamente.
O
fanático não reconhece cidadanias, pois deseja mansos rebanhos comandados por
ele. O fanatismo não tem base na ordem natural ou humana. Ele é uma distorção
subjetiva, ocorrida na mente e na vontade. Como não pode se impor pelos meios
da fala e do exemplo, ele só consegue mandar com violência física ou moral o que aprofunda o medo da morte cívica ou
biológica. O fanático não reconhece autoridade alheias : religiosa,
intelectual, política. Ele é o princípio e o fim de toda autoridade. O
fanatismo não encontra lugar no prudente pensamento e mora nas paixões do
orgulho, do poder, no que os gregos chamam pleonexia (pleon echein): ele não
aceita nem reconhece limites. O fanatismo é satânico. Lemos no Paraíso
Perdido que Lucifer é o pai da arrogância e do orgulho, marcas do
pandemônio gerado pelo fanatismo. Só quem pertence à seita deve mandar, enriquecer,
ser honrado.
O
fanático ignora as virtudes coletivas da simpatia, despreza o termo e a
realidade da misericórdia e do respeito. Se não encontra espinhas dóceis, além
das ameaças usa o insulto, os palavrões
contra quem pensa diferente dele. Seu Deus cruel fala uma só lingua e decreta o
certo e o errado na integralidade, nada
resta para a opção das pessoas. Quem não segue seus caminhos está condenado à
morte, sem compaixão. Assim, é certo para o fanático destruir os inimigos da
sua fé. Ele não aceita a igualdade jurídica nem a diferença de idéias. O fruto
do fanatismo não é um povo pacífico, amigo e fraterno, mas a divisão, a
perseguição mútua, o sacrifício dos dissidentes. O fruto do fanatismo é a
guerra civil. Para o sectário faccioso, governantes que não se dobram aos seus
ditames são tiranos e devem ser depostos ou mortos. O fanático não aceita
eleições em que ele perde, só as que vence, sempre está à espreita de um golpe
de Estado se os eleitores não o escolhem. O fanático ignora a coexistência dos
opostos, mas louva a perseguição à diferença. O fanático pode se alojar na
esquerda, direita, centro da política. Ele endurece toda prática e discurso,
pois odeia o debate, o diálogo, a tolerância.
O que é
o fanatismo? É o efeito de uma consciência falsa que abusa das coisas mais
nobres e sujeita a política, a religião, as artes, as ciências aos caprichos de
sua imaginação febril, às suas paixões do orgulho, ambição, desejo de mando.
Quais
são os componentes do fanatismo?
1) as
certezas aceitas sem exame. Para afirmar uma idéia, é preciso estudar a sua
história, a sua consistência lógica, a sua adequação à realidade. Mas as noções
fanáticas são paradoxais, e não raro vão contra a racionalidade humana, o
estudo, a comprovação factual. Elas têm mais a forma de imaginação delirante do
que pensamento.
2) Dogmas
obscuros e delirantes geram seitas que
se guerreiam e lutam para que o coletivo inteiro se torne inimigo dos seus
inimigos. Batalhas sectárias se transformam em guerras civis.
3) Uma
fonte do fanatismo é o moralismo. O moralista, ao contrário da pessoa moral,
limpa o exterior mas guarda a sujeira como num túmulo. O moralista tem o odor
da morte em tudo o que faz e diz. Ele, neste sentido, é fundamentalista: a letra vale mais do que o espírito.
4) Outra
fonte do fanatismo é a incomprensão dos deveres. O ser humano vive num complexo
de ordens e leis, dentre as quais ele deve optar se quiser o respeito dos semelhantes.
O fanático não tem a experiência da vacilação e da escolha, aceita normas e as
impõem sem refletir. Daí, suas certezas serem duras e, ao mesmo tempo, tolas.
5) O fanático usa a intolerância já existente nas
religiões e partidos e a transforma, de relativa em absoluta.
6) Uma
fonte do seu recrutamento é o fato seguinte : as seitas fanáticas são perseguidas.
Como são perseguidas, só entendem a lingua da perseguição, ignoram o diálogo.
7) Porque
muito sofrem, os fanáticos adquirem impassibilidade: eles não sofrem com a dor
alheia. Aprendem a ser implacáveis.
8) O fanatismo
oferece segurança, ao contrário da liberdade que só tem desafios a
proporcionar.
9) “O
fanático”diz a Enciclopédia de Diderot, “faz um mal maior à humanidade do que
o impio. Estes últimos pretendem se livrar de todo jugo. Já o fanático quer
ampliar seus ferros para toda a terra”.
Todas
essas marcas do fanatismo podem ser lidas na Enciclopédia francêsa comandada
por Denis Diderot, pensador das Luzes no século 18. A responsabilidade do
verbete é de Deleyre, um colaborador de Diderot. Algo da minha lavra foi posto
nas frases acima.
O
Brasil vive uma crise inédita de sociedade e de Estado. Tal crise inclui uma
urbanização intensa, pois ainda em 1960 nosso país pouco ia além da franja do Oceano
Atlântico. Logo após a inauguração de Brasília tivemos um enorme crescimento de
cidades no interior. Todas elas são carentes de políticas públicas (água,
esgôto, segurança, saúde, escola, cultura, etc). Com a centralização excessiva
das mesmas políticas públicas no Executivo federal, os impostos saem das
cidades mas só retornam pelo apadrinhamento de lobbies e políticos. Muitos deles cobram uma taxa dos municípios
tendo em vista sua reeleição. As massas urbanas, carentes de quase tudo, têm no
entanto acesso às informações: a imprensa cresceu bastante, o rádio e a TV trazem
contínuas notícias, a internet pode ser acessada em qualquer lugar afastado.
No
mesmo passo em que as massas urbanas se informam e amadurecem, a máquina do
Estado brasileiro é anacrônica, centralista, favorece a corrupção. Não existe elo
federativo de fato em nosso país, mas um império do poder central, que retira
dos Estados e munícipios toda autonomia efetiva. A burocracia gigantesca
favorece o desperdício de recursos, o apadrinhamento de grupos econômicos e
políticos. O poder de Estado brasileiro existe para garantir privilégios aos
que integram os três poderes. Se fossem cortados todos os privilégios dos que
operam o poder, alguns trilhões sobrariam para as políticas públicas. Cito
apenas os carros, motoristas, gasolina, pedágios e outros enfeitos usados por
vereadores, prefeitos, secretários, deputados estaduais, federais, senadores,
ministros, magistrados, etc. Outro abuso encontra-se nas contas de publicidade
dos governos, do município ao Palácio do Planalto. Tais gastos, supostamente
para informar a opinião pública em assuntos relevantes para a saúde, educação,
segurança, etc. na verdade constituem meios de propaganda e intimidação da
cidadania, paradoxo e medo, portanto. Cito por último (a lista seria
interminável), os “cargos em confiança” em número inédito e desconhecido no
mundo. Eles representam na verdade cabos eleitorais a serviço de políticos e
partidos, fontes de corrupção perene. Todos esses abusos são aceitos, apoiados,
louvados pelos fanáticos, pois servem à Causa, ajudam a conseguir o alvo final
que é o de impor o poder ao todo da sociedade.
Nossos
partidos políticos são máquinas anacrônicas e pouco democráticas. Elas são
dominadas por grupos de velhos políticos que nelas mandam com mão férrea.
Alguns estão nos postos diretivos há décadas e décadas. Temos aí verdadeiros
proprietários dos partidos pois controlam as alianças, os apoios ou oposições
aos governos, as candidaturas, as propagandas, e sobretudo os cofres. Nas
agremiações não existem corretivos aos desmandos dos dirigentes, não ocorrem
eleições primárias, a fiscalização pelos filiados é quimera. A Justiça
eleitoral, por sua vez, emperra o processo das eleições com mandamentos pouco
democráticos e mostra ineficiência na fiscalização das contas partidárias.
Fala-se muito em financiamento público de campanha. Mas sem democratizar os
partidos, sem exigir que as direções sejam mudadas a cada dois anos pelo menos,
a ditadura dos grupos poderosos será mantida e ampliada pela suposta reforma
política e seu tipo de financiamento. Agora mesmo, num arroubo de descaso pela
crise econômica que mostra sinais terríveis, o fundo partidário foi aumentado
de maneira inusitada. Como os atuais dirigentes são donos dos cofres, imaginemos
o que pode ocorrer se o financiamento for totalmente garantido pelos
contribuintes, em termos de corrupção, arbítrio, abuso do poder pelos donos dos
partidos. Os oligarcas partidários mandam nas candidaturas, nas alianças, nos
cofres. Mandam também na propaganda eleitoral “gratuita” que leva bilhões da
vida econômica, paga marqueteiros aos milhões, mente de modo desavergonhado e
intimida eleitores. O medo surge novamente, nas operações de marketing
político. Basta ver o que ocorreu na última campanha presidencial quando
mentiras e medo partilharam as imagens da TV, as ondas do rádio, as páginas de
jornais dependentes dos recursos financeiros governamentais.
A
máquina do Estado emperrada, os partidos autocráticos dão as costas à
cidadania, sobretudo à juventude. Esta foge das agremiações e não recebe nelas
acolhida. Se entram para os partidos é para cumprir tarefas, obedecer aos donos
do organismo à espera de uma possível candidatura a cargo público. Os jovens,
nos partidos, não aprendem a liderar, mas a obedecer servilmente. Daí a nossa
carência de novos estadistas. Peço aos senhores que enumerem mentalmente o
número de nossos líderes nacionais. Com certeza, a conta não supera os dedos
das mãos.
Estado
com imensa burocracia emperrada, partidos ossificados, juventude expulsa ou
fugindo da política.
Agora,
temos uma terrível novidade entre nós. Partidos que chegaram ao poder nacional
decretam a divisão do país entre “eles”e “nós”. Ou seja, só merece respeito
quem segue os nossos ditames. Os “outros”, por definição, pertencem às hostes
inimigas. Esta é a palavra que deslancha o fanatismo, que estimula a secessão,
que provoca a guerra civil, que justifica os golpes de Estado.
Termino.
O que disse é o bastante para evocar os labirintos de nossa vida pública. O
perigo maior é o crescimento da lógica fanática. O jurista alemão Carl Schmitt,
idealizador do confronto político entre “amigo”e “inimigo” e justificador de Hitler,
está em voga em muitos ambientes nacionais. Ele já esteve na moda na era Vargas
quando Francisco Campos, leitor de Schmitt, idealizou a Polaca, constituição
fascista que instaurou um Estado que ignorou todos os direitos da cidadania,
sobretudo o direito à divergência em relação ao governo.
Na
ordem democrática não existe a divisão entre “nós”e “eles”, entre o “nosso
lado”e o “deles”. Todos são responsáveis pela vida comum, todos merecem
respeito. Em Francogallia,
tratado jurídico que ajudou a instaurar o moderno Estado democrático, Francisco
Hotmann resume o ponto ao dizer que “é essencial à liberdade que as questões
coletivas sejam administradas sob o conselho e autoridade de quem deve suportar
seu risco, pois segundo antigo ditado, o relativo a todos deve ser aprovado por
todos’”. Althusius afirma o mesmo : “é
justo que o relativo a todos, seja resolvido por todos”(Política). A tese de
fundo reside na certeza de que o governante detém o uso do poder, mas a sua
fonte é o povo, a quem deve prestar contas. O governo que se deixa levar pela
diferenciação entre “nós”e “eles” não passa de uma facção fanática. Lutemos
para que o Brasil não seja estraçalhado pelas seitas, mas seja a terra comum de todos,
livres e iguais.
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