Flores

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terça-feira, 6 de novembro de 2018

Entrevista antiga, dada ao Correio da Cidadania em 2008. Muitos problemas alí apontados agora ressurgem com maior perigo. Na época, a entrevista passou desaoercebida. Afinal, "estávamos no poder". Talvez valha a pena retomar a reflexão feita naqueles dias aparentemente felizes....Roberto Romano

‘Golpes financeiros e jurídicos’ resultam da secular concentração de poder no Executivo

Cru­zadas mo­ra­listas, quando muito sal­va­ci­o­nistas, é o que pa­rece estar re­sul­tando da in­tensa ex­po­sição mi­diá­tica dos úl­timos epi­só­dios de cor­rupção des­co­bertos em nosso país. Não seria pre­ciso ir muito além? 
 
O pro­fessor de Ética e Fi­lo­sofia da Uni­camp Ro­berto Ro­mano, em ma­gis­tral aná­lise, re­toma as ori­gens se­cu­lares desses epi­só­dios que vêm se de­sen­ro­lando ‘es­pe­ta­cu­lar­mente’. Se é no pe­ríodo FHC que co­meçou a se pro­nun­ciar uma bur­guesia com forte ca­ráter fi­nan­ceiro, cujos vín­culos com o ca­pi­ta­lismo in­ter­na­ci­onal tor­naram-se ainda mais di­retos – um re­sul­tado da ace­le­ração da ‘pri­va­taria’ -, a sua origem deve ser bus­cada bem mais re­mo­ta­mente, ainda sob a égide do Im­pério.
Se­gundo Ro­mano, nosso poder Exe­cu­tivo herdou as ca­rac­te­rís­ticas de um poder mo­de­rador que foi trans­posto para o Brasil não como um poder neutro, mas como um poder su­pe­rior aos de­mais. Além de ir­res­pon­sável no sen­tido ju­rí­dico da pa­lavra, con­cen­trava em si todas as po­lí­ticas pú­blicas. Ori­ginou-se aí a tra­dição da pro­mis­cui­dade pú­blico-pri­vada e da oni­po­tência do chefe do Exe­cu­tivo.
É assim que a atual crise mun­dial, que leva à pri­va­ti­zação dos re­cursos pú­blicos e à sua trans­fe­rência para as mãos do ca­pital fi­nan­ceiro, en­con­trou ter­reno tão fértil no Brasil. E é também por isso que a Po­lícia Fe­deral, que de­veria estar a ser­viço do Ju­di­ciário, trans­formou-se em pre­cioso ins­tru­mento de pro­pa­ganda do Exe­cu­tivo. 
 
Con­fira abaixo. 
 
Cor­reio da Ci­da­dania: Com a ace­le­ração da im­plan­tação do ne­o­li­be­ra­lismo no país, es­pe­ci­al­mente a partir da era FHC, as­cendeu ao poder uma nova bur­guesia, a qual, di­versa da­quela que pre­do­minou no pe­ríodo de­sen­vol­vi­men­tista, possui forte ca­ráter fi­nan­ceiro e tem vín­culos ainda mais di­retos com o ca­pi­ta­lismo in­ter­na­ci­onal. Qual o nexo que o es­cân­dalo ‘Da­niel Dantas’ es­ta­be­lece entre esse con­texto e o atual es­tágio de de­sen­vol­vi­mento do ca­pi­ta­lismo em nosso país?
 
Ro­berto Ro­mano: Em pri­meiro lugar, não creio ser este um pro­blema so­mente bra­si­leiro, mas sim mun­dial, che­gando-se a uma questão grave, a da so­be­rania na­ci­onal. Há uma crise dos Es­tados, onde, para cada um deles, com suas his­tó­rias, está che­gando um mo­mento no qual não con­se­guem mais exer­citar in­te­gral­mente os três mo­no­pó­lios: o da força fí­sica, o da ordem ju­rí­dica e o dos im­postos. Temos uma ‘quase quebra’ entre a so­ci­e­dade e as má­quinas es­ta­tais. 

Com isso, o Es­tado, ao mesmo tempo em que pre­cisa de re­cursos fi­nan­ceiros para manter suas ati­vi­dades (por exemplo, os EUA pre­cisam manter sua in­dús­tria ar­ma­men­tista, de tec­no­logia de ponta etc.), não tem de onde tirá-los, a não ser dos im­postos, já al­tís­simos. Sendo assim, o fa­vo­re­ci­mento ao ca­pital fi­nan­ceiro é uma fonte que, claro, traz um en­di­vi­da­mento iné­dito, até para os pró­prios EUA. Para se auto-fi­nan­ci­arem, os Es­tados se en­di­vidam cada vez mais junto ao ca­pital fi­nan­ceiro. 

E o que é ofe­re­cido em troca? Este ponto é com­pli­cado, pois, entre a ló­gica do ca­pital fi­nan­ceiro e a so­cial, há uma rup­tura, não há uma con­ti­nui­dade ime­diata. Também temos o outro setor da eco­nomia, o da pro­dução de ali­mentos. Note como na Ro­dada de Doha os Es­tados de­sen­vol­vidos não abrem mão dos sub­sí­dios, pois eles cons­ti­tuem uma ma­neira de os Es­tados se fi­nan­ci­arem a si mesmos, não tanto uma questão elei­toral. Este é um as­pecto da questão. 

Po­demos notar, assim, que se trata de uma crise mun­dial, que não pode ser de­fi­nida apenas em termos ide­o­ló­gicos. A China é um país ofi­ci­al­mente co­mu­nista, porém está en­trando nessa ló­gica de ma­neira ace­le­rada. E aqui no Brasil, ela não é inau­gu­rada so­mente no go­verno FHC. No pe­ríodo do Sarney já havia esse pri­vi­légio ao ca­pital fi­nan­ceiro. O Plano Cru­zado foi uma ten­ta­tiva de salvar o Es­tado sem os re­mé­dios "he­róicos" apli­cados no pe­ríodo de FHC e de Lula, como, por exemplo, via a de­ses­tru­tu­ração dos di­reitos tra­ba­lhistas, dos sa­lá­rios, e a re­forma da pre­vi­dência. 

Eu não diria, por­tanto, com muita tranqüili­dade que se trata pri­mei­ra­mente de uma questão ide­o­ló­gica ne­o­li­beral, para além dos re­sul­tados. Acho que há uma ló­gica dos pró­prios Es­tados, que não estão con­se­guindo se manter como tais. Aí en­tram mi­lhões de causas, desde econô­micas até ques­tões de cres­ci­mento da so­ci­e­dade, que não mais se apre­senta como aquela exis­tente no co­meço do sé­culo XX. Salvo pe­quenas na­ções, as po­pu­la­ções hoje estão na es­cala dos mi­lhões. E essas pes­soas pre­cisam da se­gu­rança do Es­tado, de edu­cação, de saúde e mais uma série de coisas. 

Porém, ocorre que o Es­tado pre­cisa es­co­lher entre salvar a si mesmo ou servir à po­pu­lação. Como ele pre­cisa de re­cursos para manter imensas bu­ro­cra­cias e toda uma in­dús­tria (ar­ma­men­tista, tec­no­ló­gica e ou­tras), ne­ces­sita fazer uma opção. Ob­vi­a­mente, essa opção não se dá em favor da saúde, da edu­cação e da se­gu­rança da po­pu­lação. Sempre que o Es­tado puder eco­no­mizar re­cursos, o fará. E se­guirá fa­zendo essa par­ceria com o ca­pital fi­nan­ceiro, o que lhe per­mite acu­mular dí­vidas cada vez mai­ores. 

CC: É dessa ló­gica que pro­li­feram si­tu­a­ções como a que vi­vemos no país agora, onde o caso Da­niel Dantas é, na ver­dade, apenas uma ponta de um ice­berg?
 
RR: O es­cân­dalo, na ver­dade, é muito mal en­fo­cado. Pe­guemos so­mente do ponto de vista do Con­gresso. Da­niel Dantas possui uma ban­cada maior que a do pró­prio Lula.
Pode-se medir a im­por­tância de um per­so­nagem so­cial pelos seus amigos, ali­ados e ini­migos. Se so­marmos esses três grupos, no que se re­fere a Dantas, no Con­gresso Na­ci­onal, vemos que é uma pessoa que o po­la­riza por in­teiro. E é evi­dente que um in­di­víduo to­tal­mente res­pon­sável por uma série de des­vios é um elo de uma ca­deia muito mais ampla. 

CC: Um elo de uma su­pe­res­tru­tura que vem lá de trás, da for­mação do Es­tado na­ci­onal bra­si­leiro.
RR: Exa­ta­mente. A cen­tra­li­zação do poder no Rio de Ja­neiro, já no pe­ríodo do Im­pério, no sé­culo 19, e a ne­ces­si­dade de manter um ter­ri­tório imenso como o nosso fi­zeram com que o Es­tado pre­ci­sasse se ga­rantir. O pri­meiro ato de D. João VI no Brasil foi criar o Banco do Brasil, com a idéia de fi­nan­ciar o Es­tado bra­si­leiro e emitir moeda sem lastro. Ou seja, já co­me­çaram ali os es­cân­dalos. Não por acaso, o Banco do Brasil foi à ban­car­rota logo de­pois. 

CC: Em suma, es­tamos di­ante de um ‘modus ope­randi’ se­cu­lar­mente ar­rai­gado.
RR: Exato. E o que é essa ló­gica? Temos uma di­mensão es­pa­cial de Im­pério, temos ta­manho com­pa­rável aos EUA, à Eu­ropa in­teira, à Rússia. Essa imen­sidão pre­cisa de con­trole, ar­mado e bu­ro­crá­tico, o que obriga o Es­tado, dessa forma, a se fi­nan­ciar. 

Como pre­cisa fazer isso, ele açam­barca, na velha tra­dição ab­so­lu­tista, os im­postos nas mãos, e não os de­volve aos mu­ni­cí­pios e es­tados. E aí temos esse co­núbio do pú­blico e do pri­vado. 

Minha es­posa, Maria Sylvia Car­valho Franco, mostra em seu livro "Ho­mens li­vres na ordem es­cra­vo­crata" que ve­re­a­dores e o pre­feito em­pres­tarem di­nheiro para os mu­ni­cí­pios fa­zerem obras era uma prá­tica comum no sé­culo 19. E quando eles em­pres­tavam esse di­nheiro, havia dois efeitos muito de­le­té­rios. O pri­meiro é que a po­pu­lação via esses atos como fa­vores, cri­ando um forte im­pulso para a for­mação das oli­gar­quias na­ci­o­nais e re­gi­o­nais. O se­gundo é que o pro­cesso também se in­vertia: se a po­pu­lação em­pres­tava quando o mu­ni­cípio pre­ci­sava, por outro lado, quando a po­pu­lação pre­ci­sava, o mu­ni­cípio também em­pres­tava. Ou seja, a po­pu­lação podia se apossar do cofre pú­blico, já que era, em tese, fa­vo­re­ce­dora desse cofre. 

CC: Armou-se, por­tanto, nesses pri­mór­dios, a arena para a pro­mis­cui­dade pú­blico-pri­vada?
RR: Claro, já tí­nhamos essa di­a­lé­tica, o que não mudou até hoje. O go­verno Lula con­tinua ar­re­ca­dando 70% dos im­postos e não os dis­tri­buindo cor­re­ta­mente para es­tados e mu­ni­cí­pios. Quando se tem essa crise mun­dial dos Es­tados, que leva à pri­va­ti­zação dos re­cursos pú­blicos e à sua trans­fe­rência para as mãos do ca­pital fi­nan­ceiro, o Brasil apre­senta ter­reno fértil para a sua pro­pa­gação. 

Ve­jamos que numa fe­de­ração como a ame­ri­cana, em que os es­tados e mu­ni­cí­pios têm maior au­to­nomia, é mais di­fícil para o go­verno as­sumir uma po­lí­tica es­can­ca­ra­da­mente pró-ca­pital fi­nan­ceiro. Aqui, tem-se a con­cen­tração dos po­deres no Exe­cu­tivo, que exerce uma di­ta­dura pra­ti­ca­mente per­ma­nente. Sendo assim, quando o pre­si­dente ou o mi­nistro bate o mar­telo, não há quem ouse se le­vantar contra. 

Dessa forma, quase todos os planos econô­micos de "sal­vação" foram ver­da­deiros golpes de Es­tado em nosso país. Golpe de Es­tado não sig­ni­fica so­mente co­locar sol­dados nas ruas es­pe­ta­cu­lar­mente e der­rubar o pre­si­dente. Existem ma­neiras mais sutis, pode-se dar um golpe mu­dando, por exemplo, a es­tru­tura ju­rí­dica. Quando existem ope­rá­rios, pro­fes­sores, tra­ba­lha­dores, com di­reitos ad­qui­ridos de apo­sen­ta­doria, e mudam-se as re­gras, está se mu­dando o di­reito da po­pu­lação, a norma do Es­tado. Está sendo dado um golpe. 

CC: Se­guindo um pouco essa trilha dos ‘golpes de Es­tado’ e da cen­tra­li­zação de poder pelo Exe­cu­tivo, como o se­nhor en­xerga a ação da Po­lícia Fe­deral no es­cân­dalo Dantas? É re­ve­la­dora de al­guma in­ge­rência abu­siva do Es­tado na vida dos ci­da­dãos?
RR: Acho que sim, pois é tra­dição do Es­tado bra­si­leiro essa oni­po­tência de seu chefe. O poder Exe­cu­tivo no Brasil herdou as ca­rac­te­rís­ticas de um poder mo­de­rador, que, além de ir­res­pon­sável no sen­tido ju­rí­dico da pa­lavra, con­cen­trava em si todas as po­lí­ticas pú­blicas. 

Todos falam do lápis ver­melho de D. Pedro II como se fosse piada, mas ele servia para que se in­ter­vi­esse no Le­gis­la­tivo, no Ju­di­ciário (e a Cons­ti­tuição de 1824 dava a ele po­deres para mudar juízes e tudo mais), enfim, trans­for­mava-o num super-homem de Es­tado. Tal con­cen­tração faz com que se te­nham os três mo­no­pó­lios tra­di­ci­o­nais do Es­tado (da força fí­sica, da norma ju­rí­dica e dos im­postos) con­cen­trados nas mãos do Exe­cu­tivo. Isto é, não existe ne­nhuma po­lí­tica pú­blica no Brasil com­par­ti­lhada pelos três po­deres. Tudo é de­cisão do Exe­cu­tivo. No caso desse mo­no­pólio da força fí­sica, o Exe­cu­tivo usa e abusa. 

Por­tanto, a PF é um ins­tru­mento do Exe­cu­tivo fe­deral que de­veria estar a ser­viço do Ju­di­ciário. Como ela tem essa visão de he­ge­monia do Exe­cu­tivo, e os pró­prios in­te­grantes dos ou­tros po­deres também, existe essa ten­tação per­ma­nente do pre­si­dente da Re­pú­blica, do mi­nistro da Jus­tiça ou ainda da chefia da Po­lícia Fe­deral (nesse caso é mais grave ainda, pois os in­te­grantes da PF se julgam os pró­prios pre­si­dentes da Re­pú­blica) de for­ta­lecer, pro­pa­gan­dear, as po­lí­ticas do Exe­cu­tivo. 

Dois fatos in­te­res­santes: quando a Folha de S. Paulo fez uma crí­tica, muito tênue, ao go­verno Collor, ele mandou a PF in­vadir o jornal. Foi um dos seus tre­mendos ele­mentos de des­gaste, in­clu­sive. Já quando, no pe­ríodo do Plano Cru­zado, era ne­ces­sário manter a sua pro­pa­ganda, co­lo­cavam-se de­le­gados da PF pren­dendo boi pra cima e pra baixo. 

Quer dizer, temos essa du­pli­cação de fun­ções da PF, que é ao mesmo tempo um ins­tru­mento man­te­nedor do mo­no­pólio da força fí­sica, pre­fe­ren­ci­al­mente na mão do Exe­cu­tivo, e também um ins­tru­mento de pro­pa­ganda desse poder. É tudo me­ti­cu­lo­sa­mente feito para dar essa sen­sação, seja pela es­pe­ta­cu­la­ri­zação, falta de res­peito aos di­reitos in­di­vi­duais, hu­mi­lhação dos presos etc.

Pa­rece-me que, nesse caso, é evi­dente ser o des­con­trole da PF um sin­toma do des­con­trole das re­la­ções do Es­tado bra­si­leiro. Não existem três po­deres harmô­nicos e so­be­ranos agindo con­jun­ta­mente, mas sim uma he­ge­monia do Exe­cu­tivo sobre os ou­tros dois. 

CC: Acres­cen­taria ainda a esse ‘des­con­trole da PF’ a visão crí­tica de que a ação um tanto per­for­má­tica da po­lícia es­taria en­ve­re­dando por um pe­ri­goso ca­minho sal­va­ci­o­nista, como se, ao prender cor­ruptos, o pro­blema da cor­rupção es­ti­vesse so­lu­ci­o­nado. Como en­carar essa crí­tica? En­frentar as ‘qua­dri­lhas’ não é também im­por­tante no pro­cesso de luta?
 
RR: Nessa me­dida, acre­dito que a es­pe­ta­cu­la­ri­zação do tra­balho da po­lícia e sua trans­for­mação em pro­pa­ganda do Exe­cu­tivo ajudam re­al­mente a des­viar o foco desse ponto mais fun­da­mental.
In­clu­sive, no pro­grama Roda Viva da TV Cul­tura do qual par­ti­cipei, disse algo no mesmo sen­tido, de que temos duas pos­si­bi­li­dades de en­tender o pro­cesso de cor­rupção no mundo in­teiro, e no Brasil par­ti­cu­lar­mente. 

A cor­rupção tem uma es­tru­tura sin­crô­nica e uma di­a­crô­nica. A pri­meira está em todos os se­tores da so­ci­e­dade, in­cluindo até a Igreja, e é a pos­si­bi­li­dade de apro­pri­ação de re­cursos co­le­tivos por grupos ou in­di­ví­duos. Lembro-me, no caso da Igreja, por exemplo, quando a CRB (Con­fe­rência dos Re­li­gi­osos do Brasil) foi pre­ju­di­cada pelo seu te­sou­reiro, que roubou o di­nheiro da con­fe­rência, fato que di­fi­cultou o pro­cesso de apo­sen­ta­doria de vá­rios re­li­gi­osos. Mesmo dentro das igrejas, sempre há uma ri­queza co­le­tiva e, con­se­quen­te­mente, uma dis­puta por sua apro­pri­ação e apli­cação. 

Por­tanto, temos em todos os se­tores da so­ci­e­dade essa fa­ci­li­dade de quem está na di­reção de algum or­ga­nismo (re­li­gioso, po­lí­tico, es­por­tivo) de se apro­priar do fundo co­le­tivo. Esse é o as­pecto sin­crô­nico, tudo ocorre ao mesmo tempo. En­quanto o Eu­rico Mi­randa mete a mão no di­nheiro do Vasco, o Da­niel Dantas está brin­cando em outro campo, e o bispo Edir Ma­cedo, por sua vez, em outro, tudo sin­cro­ni­ca­mente. E o que é mais grave, com dutos entre estes se­tores. À me­dida que um grupo se torna po­de­roso, ele pro­cura re­la­ções, passa re­cursos, troca fa­vores e vai con­cre­ti­zando essa rede. Se fosse pos­sível puxar por um no­velo, tra­ríamos o país todo pelo mesmo fio de lã. Esse as­pecto sin­crô­nico con­tinua vi­gente e é muito di­fícil dizer que essa re­a­li­dade mu­dará ao som de três can­tigas. 

Já o as­pecto di­a­crô­nico é a to­mada de cons­ci­ência de as­pectos dessa sin­cronia. O Mi­nis­tério Pú­blico, a PF e a im­prensa des­co­brem um es­cân­dalo: a partir da­quele mo­mento, tal es­cân­dalo passa a re­ceber um foco pri­vi­le­giado, que vai até certo ponto, para, pos­te­ri­or­mente, cair quase que na im­pu­ni­dade. Nin­guém sofre nada. O foro pri­vi­le­giado, por exemplo, só existe por causa da cor­rupção. De­pois de um tempo, apa­rece outro es­cân­dalo e, logo de­pois, mais um. Quer dizer, temos uma su­cessão cro­no­ló­gica em termos di­a­crô­nicos que muitas vezes faz es­quecer esse as­pecto sin­crô­nico, que é fun­da­mental. 

O que me pa­rece fun­da­mental é que a PF tem atuado quase ex­clu­si­va­mente na base da di­a­cronia. Ela des­cobre um caso, de­pois outro, mas, se existe um tra­balho que ma­peia sin­cro­ni­ca­mente toda a questão, eu não co­nheço. Tenho muitas dú­vidas, cujas res­postas não existem. Não há con­di­ções tec­no­ló­gicas para o ma­pe­a­mento sin­crô­nico, o que nos faz sentir im­po­tentes. No meu en­tender, isso traz a nossa cu­ri­o­si­dade, o res­sen­ti­mento, o de­sejo de vin­gança. Ver o Maluf al­ge­mado dá um prazer muito grande, mas es­que­cemos que dois dias mais tarde ele es­tará solto e fi­ca­remos so­zi­nhos com o nosso prazer. 

CC: Perde-se, de­sa­for­tu­na­da­mente, por­tanto, a di­mensão maior do pro­blema. 
 
RR: Exa­ta­mente. Parte-se não para a ló­gica ra­ci­onal, mas sim para a ló­gica das pai­xões. É o que a es­pe­ta­cu­la­ri­zação faz, ela mo­vi­menta o ódio, o res­sen­ti­mento, a in­veja, essas pai­xões pri­má­rias de todo ser hu­mano. No en­tanto, o pro­blema con­tinua lá. E de­pois vem o as­pecto mais per­verso, aquela pre­gação de que a de­mo­cracia não re­solve, que a im­pu­ni­dade existe e é ab­so­luta, in­su­pe­rável, e que, por­tanto, não vale a pena lutar contra a cor­rupção, pela jus­tiça so­cial, pelos va­lores, pois, afinal, todo mundo é cor­rom­pido, ‘salvo eu’. 

Este é o ponto que pa­rece mais grave. Cria-se uma sub­je­ti­vi­dade ino­cente que é ab­so­lu­ta­mente hi­pó­crita. É como con­si­de­rarmos meia dúzia de fa­mi­li­ares e amigos au­tên­ticos como santos e o resto do mundo, pe­ca­dores. E aí se du­plica o prazer da pu­nição, da hu­mi­lhação. Tal re­ceita, Sa­vo­na­rola já tentou em Flo­rença, na época do Re­nas­ci­mento, e não deu certo. Aliás, ele acabou quei­mado. Os cor­ruptos da sua época con­ti­nu­aram cor­ruptos e muito im­por­tantes. Essa re­ceita do jus­ti­ci­a­mento, e não da jus­tiça, muitas vezes pre­gada, é bem ruim. 

CC: Nesse sen­tido, o que o se­nhor pensa dessa ‘lista suja’ de can­di­datos, recém di­vul­gada? Ela não é re­ve­la­dora dessa ‘re­ceita do jus­ti­ci­a­mento’?
 
RR: Con­si­dero essa lista um erro. Se temos um pro­cesso desses, no qual ma­gis­trados co­locam a pú­blico uma lista, temos em úl­tima ins­tância a de­ne­gação do di­reito do de­vido pro­cesso legal. Temos pes­soas que estão sendo acu­sadas por erro bu­ro­crá­tico, por dis­tração, algo per­fei­ta­mente hu­mano, ou por culpa de ter­ceiros, quer dizer, a pessoa foi im­pli­cada num crime e não teve co­ragem ou tempo su­fi­ci­ente para cortar a coisa no mo­mento certo. 

E o que acon­tece? A de­mo­cracia grega é sempre um exemplo para nós. Na Grécia, existia uma pena que era a da atimia, que vem de 'timós', que se re­fere à co­ragem e à honra do ser hu­mano. O ci­dadão acu­sado de atmia perdia todos os di­reitos civis e po­lí­ticos. Não podia ser juiz, tes­te­munha, nada. Podia ser morto que não ha­veria crime. 

Essa pena podia atingir desde o su­jeito que tinha de prestar contas e não o havia feito cor­re­ta­mente até o acu­sado de pros­ti­tuir seu corpo, questão que na Grécia era re­fe­rente ao ho­mos­se­xu­a­lismo mas­cu­lino. Essas pes­soas eram con­de­nadas sem jul­ga­mento. Os ju­ristas mo­dernos dizem ser as­sus­tador terem exis­tido cul­pados que re­ce­biam pena sem passar pelo de­vido pro­cesso legal.
Por­tanto, essa questão da atmia ajudou po­de­ro­sa­mente a cor­roer os laços in­ternos da de­mo­cracia grega. No mo­mento em que qual­quer um pode ser acu­sado de de­son­rado, todos podem. A partir disso, a ami­zade, o res­peito, vão de­sa­pa­re­cendo. 

É evi­dente que nessa lista existem as­sas­sinos, la­drões do erário pú­blico etc., mas será que, com toda cer­teza – pois, num pro­cesso legal, não pode haver dú­vida -, você diria que todos eles são cor­ruptos e la­rá­pios do te­souro pú­blico? E aí vem a per­gunta: onde está a jus­tiça? 

CC: Nessa linha, faria uma co­nexão com a ação do STF, que foi mo­ral­mente cri­ti­cado, mas ju­ri­di­ca­mente con­si­de­rado cor­reto por muitos ao mandar soltar o ban­queiro Dantas, face à falta de provas evi­dentes na jus­ti­fi­ca­tiva da prisão pre­ven­tiva. Em sua opi­nião, o mi­nistro Gilmar Mendes agiu acer­ta­da­mente?
 
RR: Eu acre­dito que sim. Como diria o ad­vo­gado, com todo o res­peito, não cabe ao juiz nem ao pro­motor pú­blico as­sumir esse papel de de­núncia e quase de acu­sação pú­blica de can­di­datos, como não cabe, co­loco no mesmo barco, o que o Mi­nis­tério Pú­blico acabou de fazer com o MST lá no Rio Grande do Sul. 

Deve-se agir se­gundo fatos e levá-los até o di­reito. Leva-se o fato até o juiz, que, por sua vez, de­cide ser ele digno de louvor ou de san­ções ne­ga­tivas. Não cabe ao MP essa ati­tude de punir um mo­vi­mento so­cial ou um cor­rupto antes da de­cisão ju­di­ciária. O sis­tema de jus­tiça mí­nimo, es­sen­cial, tem três fases que de ma­neira al­guma podem ser ne­gli­gen­ci­adas, sob pena de não termos mais jus­tiça, ou de fi­carmos com apenas uma ca­ri­ca­tura dela. E essas três fases são a acu­sação, a de­fesa e um juiz me­di­ador entre ambos. Se qual­quer um destes ele­mentos faltar ou abusar de suas prer­ro­ga­tivas, não há jus­tiça. 

Por­tanto, neste caso da lista suja, acho que está ha­vendo uma falta de obe­di­ência ao múnus pró­prio dos ju­ristas e juízes. No caso do MST, é a mesma coisa. São si­tu­a­ções di­fe­rentes, mas a perda de rumo é muito si­milar. 

CC: As­so­ci­ando esse ato do Mi­nis­tério Pú­blico no Rio Grande do Sul à questão da in­ge­rência do Es­tado, não teria sido omisso o go­verno Lula di­ante de uma ação tão os­ten­siva, ao con­trário da prisão de Dantas, ini­ci­al­mente ava­li­zada pelo go­verno?
 
RR: Neste caso, pre­ci­samos pensar no­va­mente sob a ótica do Es­tado di­ri­gido he­ge­mo­ni­ca­mente pelo Exe­cu­tivo. Eu sou par­ti­dário do Es­tado de­mo­crá­tico de di­reito, que sig­ni­fica não ser autô­nomo o Es­tado em re­lação à so­ci­e­dade, mas sim a ex­pressão da com­ple­xi­dade so­cial, não po­dendo tornar-se su­pe­rior e cu­rador da so­ci­e­dade. Mas temos a perda do Es­tado li­gado aos três po­deres, o que re­sulta exa­ta­mente nisso: o Es­tado cu­rador e, dentro dele, um Exe­cu­tivo que possui a tu­tela de todo o resto. 

Quando tal pro­cesso se dá, apa­rece a ló­gica da di­visão e da facção. E não é por acaso que a PF se de­fine como vá­rias fac­ções. No MP há também vá­rias ten­dên­cias e fac­ções, vá­rios par­tidos in­clu­sive. Existem pro­cu­ra­dores de es­querda, con­ser­va­dores, de todo tipo, e o poder do pre­si­dente se­pa­rado, con­cor­rendo com eles para do­miná-los, tra­tando essas ques­tões, de Es­tado, como se fossem po­lí­ticas e de fac­ções. 

Por­tanto, assim como pega bem junto à opi­nião pú­blica e a se­tores mais con­ser­va­dores, usando um termo brando, prender um Da­niel Dantas (com o de­vido re­fluxo de­pois), não pega bem o pre­si­dente ir contra os pro­mo­tores do Rio Grande do Sul. Este pen­sa­mento de que "o que é bom para mim, é bom para meu grupo, meu poder", es­capa da ló­gica do bem co­le­tivo, do Es­tado. 

Nesse caso, sempre se louva e se ad­mira a agi­li­dade po­lí­tica de ra­ci­o­cínio do pre­si­dente Lula, que de fato é ágil. Mas note: nesses úl­timos tempos, muito ra­ra­mente sua agi­li­dade vai no sen­tido de pro­mover o bem do Es­tado e da so­ci­e­dade. Quase sempre é di­ri­gida a manter a so­bre­vi­vência de si mesmo e de seu grupo po­lí­tico. 

CC: Ou seja, mais uma vez, temos uma si­tu­ação ple­na­mente co­e­rente sob a ótica do ‘modus ope­randi’ do Exe­cu­tivo. 
 
RR: Exa­ta­mente. Elias Ca­netti, na­quele mag­ní­fico livro "Massa e poder", ca­rac­te­riza o po­de­roso como so­bre­vi­vente. Quer dizer, a partir do mo­mento em que ele tem poder e o exerce, man­dando prender, matar, en­vi­ando corpos à guerra, vai as­su­mindo uma es­pécie de vo­lúpia de eter­ni­dade, que é ir­real, pois ne­nhum ser hu­mano pode tê-la. Ele ana­lisa muito bem a per­so­na­li­dade de Sch­reber, que é um juiz e tem esse de­va­neio de di­vin­dade, essa so­berba, ar­ro­gância. O po­de­roso se ali­menta da vida dos go­ver­nados. Ou seja, "tudo que puder ser feito para que eu per­ma­neça no poder, eu farei, e tudo aquilo que for pre­ju­di­cial à per­ma­nência minha e do meu grupo, não farei". Isso me pa­rece muito grave. 

O mesmo pre­si­dente que põe na ca­beça o boné do MST em Bra­sília, fa­zendo toda aquela en­ce­nação, cala-se quando acon­tece algo como o ocor­rido no Rio Grande do Sul. O que po­deria acon­tecer caso ele se ma­ni­fes­tasse? Evi­den­te­mente, al­guns se­tores di­riam que está in­ter­fe­rindo em outro poder, usando mé­todos do Chávez e tudo mais. Esse não é um pro­blema nosso e nem da ci­da­dania, mas sim do ci­dadão Luiz Inácio da Silva. Ele que deve as­sumir se vai ter um pro­grama ou não. 

Che­gamos a esse ponto com o PT. Com a ‘Carta aos bra­si­leiros’, fi­camos sa­bendo que o PT en­trou nessa ló­gica mun­dial de quebra da so­be­rania dos Es­tados na­ci­o­nais. As­sumiu ple­na­mente um re­tro­cesso em re­lação a um pro­grama de­fen­dido du­rante vinte anos. Houve uma quebra de con­fi­ança tre­menda em re­lação ao pú­blico in­terno. Con­se­guiram, Pa­locci e cia., a con­fi­ança do in­ves­tidor ex­terno, leia-se ca­pital fi­nan­ceiro, à custa da quebra da pa­lavra com o ci­dadão in­terno. 

Sempre gosto de dizer que ‘coun­ta­bi­lity’ sig­ni­fi­cava na In­gla­terra, nos EUA e na França con­fi­ança e pres­tação de contas ao ci­dadão que paga im­postos e mantém o país. O go­ver­nante que não des­fruta da con­fi­ança de seus ci­da­dãos tem uma pa­lavra que não vale nada para nin­guém. Nesse caso, ti­vemos a quebra da pa­lavra que está no pro­grama do PT até hoje. Por outro lado, há a pro­pa­ganda para, di­gamos, re­me­diar essa quebra da Re­pú­blica. Por­tanto, é claro que a pro­pa­ganda será am­pliada, dando es­paço para esses magos como Duda Men­donça, João San­tana e ou­tros. 

CC: Esta ló­gica res­sal­tada, com o des­com­passo entre os po­deres a partir da tu­tela do Exe­cu­tivo - e também o des­com­passo intra-po­deres, na me­dida em que a po­lícia manda prender, com o aval de ins­tân­cias in­fe­ri­ores do ju­di­ciário e do go­verno (mesmo com seu recuo pos­te­rior), e o su­premo manda soltar -, ca­rac­te­riza a seu ver um quadro de crise ins­ti­tu­ci­onal?
RR: Ben­jamin Cons­tant, o li­beral francês, criou o Poder Mo­de­rador porque houve uma di­ta­dura do Le­gis­la­tivo, a Ja­co­bina, que deu no Ro­bes­pi­erre, no Terror, no fim da Re­vo­lução Fran­cesa e no re­tro­cesso de suas con­quistas. A es­cra­vidão, por exemplo, que tinha sido abo­lida, voltou, além de ou­tros fatos se­me­lhantes. 

Como re­sul­tado dessa di­ta­dura do Le­gis­la­tivo e como re­ação con­trária, ti­vemos a di­ta­dura do Exe­cu­tivo, com Na­po­leão. Assim, quando passou o rei­nado de Na­po­leão, Cons­tant pensou em um poder mo­de­rador que ser­visse para co­or­denar os três, evi­tando he­ge­monia de um ou outro. Po­deria ser exer­cido por um rei, pre­si­dente da re­pú­blica etc., pois seria um poder neutro, capaz de re­solver esse ex­cesso de poder de um em de­tri­mento de outro, exa­ta­mente para evitar uma di­ta­dura. 

O poder mo­de­rador foi trans­posto para o Brasil e apli­cado não como um poder neutro, mas como um poder su­pe­rior aos de­mais. Na carta de 1804, a idéia de poder mo­de­rador é a de um poder su­pe­rior aos de­mais. 

Existem dis­tintos mo­delos de Es­tado: o di­ta­to­rial (que pode ser de um grupo ou in­di­víduo), o li­beral-de­mo­crá­tico, o li­beral, o to­ta­li­tário, enfim, mo­delos não faltam. No en­tanto, se temos uma pro­posta de Es­tado re­pu­bli­cana e de­mo­crá­tica, de­vemos ter os três po­deres con­tra­ba­lan­çados. Caso con­trário, po­demos so­frer com a di­ta­dura de um deles. 

Ora, no nosso caso, temos o poder Exe­cu­tivo he­gemô­nico, usando as prer­ro­ga­tivas de um poder mo­de­rador-su­pe­rior, in­ter­fe­rindo na vida dos ou­tros po­deres e, como re­sul­tado, che­gamos à re­ação desses ou­tros contra ele. E nosso mo­delo é pior ainda, pois os de­pu­tados e se­na­dores não são nada mais nada menos que re­pre­sen­tantes das oli­gar­quias re­gi­o­nais en­car­re­gados de trazer re­cursos para suas re­giões. O que temos no Con­gresso, no re­la­ci­o­na­mento do Exe­cu­tivo com o Le­gis­la­tivo? Ou chan­tagem, do tipo "se não passar verbas para a Bahia, não vo­tamos no seu pro­jeto", ou co­op­tação de de­pu­tados e se­na­dores pelo Exe­cu­tivo. Não temos outro mo­delo. Isso exalta a cor­rupção, gera in­se­gu­rança ins­ti­tu­ci­onal per­ma­nente. 

A In­gla­terra está em crise como nós, mas lá po­demos contar com o papel de cada um dos po­deres. Lá, o poder Ju­di­ciário de­pende do Par­la­mento e não existe su­premo tri­bunal. O poder do povo, re­pre­sen­tado no par­la­mento, é su­pe­rior ao poder ju­di­ciário. 

Dessa forma, o ci­dadão e o pró­prio po­lí­tico têm uma ex­pec­ta­tiva de per­for­mance no poder. Aqui, o Exe­cu­tivo le­gisla, através das me­didas pro­vi­só­rias. Com isso, abre para o Le­gis­la­tivo as pos­si­bi­li­dades da chan­tagem ou da co­op­tação. E di­ante de tais leis, que não emanam do Le­gis­la­tivo, o que pode fazer o Ju­di­ciário? Ele não car­rega uma ex­pec­ta­tiva de com­por­ta­mento po­lí­tico, en­quanto poder de Es­tado. Ele julga caso a caso. 

De certo modo, vol­tamos àquilo que Max Weber chamou de jus­tiça do Cádi, a Cons­ti­tuição está lá para ser ado­rada, mas o que de­cide é o caso a caso, o dia-a-dia. Assim, não se cria uma ex­pec­ta­tiva de com­por­ta­mento e de es­pe­rança; o ci­dadão comum que queira en­trar com pro­cesso não sabe o que será de­pois, porque não tem ex­pec­ta­tiva. 

Nessa onda de ‘au­to­ri­ta­rismo’, tem-se algo que nem no pe­ríodo da di­ta­dura existia, essa iné­dita in­vasão de es­cri­tó­rios de ad­vo­cacia. Este também é um ponto de­le­tério no meu en­tender. Fui preso po­lí­tico e não tenho no­tícia de es­cri­tó­rios de ad­vo­gados in­va­didos pelas forças re­pres­sivas. Na época, a di­ta­dura tor­tu­rava, des­co­nhecia os di­reitos dos presos, ate­nuava ao má­ximo as prer­ro­ga­tivas dos ad­vo­gados, que não po­diam re­a­lizar vi­sitas na hora em que que­riam, entre ou­tras ile­ga­li­dades. Mas en­trar num es­cri­tório de ad­vo­cacia para pegar pa­péis é algo que está se tor­nando iné­dito. 

O pior é que vejo o mi­nistro Tarso Genro di­zendo que o pre­si­dente da Re­pú­blica está com o pro­jeto que ga­rante a in­vi­o­la­bi­li­dade dos es­cri­tó­rios apro­vado pelo Le­gis­la­tivo, mas que, se ele e Lula per­ce­berem que ha­verá uma fa­ci­li­tação do crime, vetam o pro­jeto. Isso é o fim do mundo. Vindo de uma ca­beça ju­rí­dica como a do Tarso Genro, pa­rece-me um re­tro­cesso pior que a Carta aos bra­si­leiros.
O PT conta com mi­li­tantes que foram presos du­rante a di­ta­dura e que são presos ainda hoje. Possui toda uma ala de se­tores mais ra­di­cais que pre­cisam de ad­vo­gados. Essas pes­soas vão ficar com qual tipo de ad­vo­gado? Com aquele per­mi­tido pelo Exe­cu­tivo? Isso para mim tem um nome: es­can­ca­ra­mento a toda di­ta­dura fu­tura. Acho isso muito, muito, pe­ri­goso. 

CC: Es­tamos, por­tanto, di­ante de novos e sor­ra­teiros golpes de Es­tado?
RR: É isso mesmo. Veja, é pró­prio das di­ta­duras mais vi­ru­lentas que o ad­vo­gado seja des­pre­zado, assim como o es­pí­rito de de­fesa. Lembro-me do livro de Gra­ci­liano Ramos, "Me­mó­rias do cár­cere", em que havia um ad­vo­gado que se acre­di­tava como tal, que pen­sava exis­tirem leis res­pei­tadas. Quando ele é preso e atra­vessa o pátio do quartel, ao chegar do outro lado, já não acre­dita em nada disso, pois é pró­prio da di­ta­dura cor­roer a con­fi­ança no di­reito e na jus­tiça. Tenho muito medo desse tipo de conseqüência. 

Va­léria Nader, eco­no­mista, é edi­tora do Cor­reio da Ci­da­dania.
Co­la­borou o jor­na­lista Ga­briel Brito.

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