‘Golpes financeiros e jurídicos’ resultam da secular concentração de poder no Executivo
- Valéria Nader
- 30/07/2008
Cruzadas moralistas, quando muito salvacionistas, é o que
parece estar resultando da intensa exposição midiática dos
últimos episódios de corrupção descobertos em nosso país. Não
seria preciso ir muito além?
O professor de Ética e Filosofia da Unicamp Roberto Romano,
em magistral análise, retoma as origens seculares desses
episódios que vêm se desenrolando ‘espetacularmente’. Se é no
período FHC que começou a se pronunciar uma burguesia com forte
caráter financeiro, cujos vínculos com o capitalismo
internacional tornaram-se ainda mais diretos – um resultado da
aceleração da ‘privataria’ -, a sua origem deve ser buscada bem
mais remotamente, ainda sob a égide do Império.
Segundo Romano, nosso poder Executivo herdou as
características de um poder moderador que foi transposto para o
Brasil não como um poder neutro, mas como um poder superior aos
demais. Além de irresponsável no sentido jurídico da palavra,
concentrava em si todas as políticas públicas. Originou-se aí a
tradição da promiscuidade público-privada e da onipotência do
chefe do Executivo.
É assim que a atual crise mundial, que leva à privatização dos
recursos públicos e à sua transferência para as mãos do capital
financeiro, encontrou terreno tão fértil no Brasil. E é também por
isso que a Polícia Federal, que deveria estar a serviço do
Judiciário, transformou-se em precioso instrumento de propaganda
do Executivo.
Confira abaixo.
Correio da Cidadania: Com a aceleração da implantação do
neoliberalismo no país, especialmente a partir da era FHC,
ascendeu ao poder uma nova burguesia, a qual, diversa daquela que
predominou no período desenvolvimentista, possui forte caráter
financeiro e tem vínculos ainda mais diretos com o capitalismo
internacional. Qual o nexo que o escândalo ‘Daniel Dantas’
estabelece entre esse contexto e o atual estágio de
desenvolvimento do capitalismo em nosso país?
Roberto Romano: Em primeiro lugar, não creio ser este um
problema somente brasileiro, mas sim mundial, chegando-se a uma
questão grave, a da soberania nacional. Há uma crise dos Estados,
onde, para cada um deles, com suas histórias, está chegando um
momento no qual não conseguem mais exercitar integralmente os
três monopólios: o da força física, o da ordem jurídica e o dos
impostos. Temos uma ‘quase quebra’ entre a sociedade e as máquinas
estatais.
Com isso, o Estado, ao mesmo tempo em que precisa de recursos
financeiros para manter suas atividades (por exemplo, os EUA
precisam manter sua indústria armamentista, de tecnologia de
ponta etc.), não tem de onde tirá-los, a não ser dos impostos, já
altíssimos. Sendo assim, o favorecimento ao capital financeiro é
uma fonte que, claro, traz um endividamento inédito, até para os
próprios EUA. Para se auto-financiarem, os Estados se endividam
cada vez mais junto ao capital financeiro.
E o que é oferecido em troca? Este ponto é complicado, pois, entre a
lógica do capital financeiro e a social, há uma ruptura, não há
uma continuidade imediata. Também temos o outro setor da economia, o
da produção de alimentos. Note como na Rodada de Doha os Estados
desenvolvidos não abrem mão dos subsídios, pois eles constituem
uma maneira de os Estados se financiarem a si mesmos, não tanto uma
questão eleitoral. Este é um aspecto da questão.
Podemos notar, assim, que se trata de uma crise mundial, que não pode
ser definida apenas em termos ideológicos. A China é um país
oficialmente comunista, porém está entrando nessa lógica de
maneira acelerada. E aqui no Brasil, ela não é inaugurada somente
no governo FHC. No período do Sarney já havia esse privilégio ao
capital financeiro. O Plano Cruzado foi uma tentativa de salvar o
Estado sem os remédios "heróicos" aplicados no período de FHC e de
Lula, como, por exemplo, via a desestruturação dos direitos
trabalhistas, dos salários, e a reforma da previdência.
Eu não diria, portanto, com muita tranqüilidade que se trata
primeiramente de uma questão ideológica neoliberal, para além
dos resultados. Acho que há uma lógica dos próprios Estados, que
não estão conseguindo se manter como tais. Aí entram milhões de
causas, desde econômicas até questões de crescimento da
sociedade, que não mais se apresenta como aquela existente no
começo do século XX. Salvo pequenas nações, as populações hoje
estão na escala dos milhões. E essas pessoas precisam da segurança
do Estado, de educação, de saúde e mais uma série de coisas.
Porém, ocorre que o Estado precisa escolher entre salvar a si mesmo
ou servir à população. Como ele precisa de recursos para manter
imensas burocracias e toda uma indústria (armamentista,
tecnológica e outras), necessita fazer uma opção. Obviamente,
essa opção não se dá em favor da saúde, da educação e da segurança da
população. Sempre que o Estado puder economizar recursos, o fará.
E seguirá fazendo essa parceria com o capital financeiro, o que
lhe permite acumular dívidas cada vez maiores.
CC: É dessa lógica que proliferam situações como a que vivemos
no país agora, onde o caso Daniel Dantas é, na verdade, apenas uma
ponta de um iceberg?
RR: O escândalo, na verdade, é muito mal enfocado. Peguemos
somente do ponto de vista do Congresso. Daniel Dantas possui uma
bancada maior que a do próprio Lula.
Pode-se medir a importância de um personagem social pelos seus
amigos, aliados e inimigos. Se somarmos esses três grupos, no que se
refere a Dantas, no Congresso Nacional, vemos que é uma pessoa que o
polariza por inteiro. E é evidente que um indivíduo totalmente
responsável por uma série de desvios é um elo de uma cadeia muito
mais ampla.
CC: Um elo de uma superestrutura que vem lá de trás, da formação do Estado nacional brasileiro.
RR: Exatamente. A centralização do poder no Rio de Janeiro,
já no período do Império, no século 19, e a necessidade de manter
um território imenso como o nosso fizeram com que o Estado
precisasse se garantir. O primeiro ato de D. João VI no Brasil foi
criar o Banco do Brasil, com a idéia de financiar o Estado
brasileiro e emitir moeda sem lastro. Ou seja, já começaram ali os
escândalos. Não por acaso, o Banco do Brasil foi à bancarrota logo
depois.
CC: Em suma, estamos diante de um ‘modus operandi’ secularmente arraigado.
RR: Exato. E o que é essa lógica? Temos uma dimensão espacial
de Império, temos tamanho comparável aos EUA, à Europa inteira, à
Rússia. Essa imensidão precisa de controle, armado e
burocrático, o que obriga o Estado, dessa forma, a se financiar.
Como precisa fazer isso, ele açambarca, na velha tradição
absolutista, os impostos nas mãos, e não os devolve aos
municípios e estados. E aí temos esse conúbio do público e do
privado.
Minha esposa, Maria Sylvia Carvalho Franco, mostra em seu livro
"Homens livres na ordem escravocrata" que vereadores e o
prefeito emprestarem dinheiro para os municípios fazerem obras
era uma prática comum no século 19. E quando eles emprestavam esse
dinheiro, havia dois efeitos muito deletérios. O primeiro é que a
população via esses atos como favores, criando um forte impulso
para a formação das oligarquias nacionais e regionais. O
segundo é que o processo também se invertia: se a população
emprestava quando o município precisava, por outro lado, quando a
população precisava, o município também emprestava. Ou seja, a
população podia se apossar do cofre público, já que era, em tese,
favorecedora desse cofre.
CC: Armou-se, portanto, nesses primórdios, a arena para a promiscuidade público-privada?
RR: Claro, já tínhamos essa dialética, o que não mudou até
hoje. O governo Lula continua arrecadando 70% dos impostos e não
os distribuindo corretamente para estados e municípios. Quando
se tem essa crise mundial dos Estados, que leva à privatização dos
recursos públicos e à sua transferência para as mãos do capital
financeiro, o Brasil apresenta terreno fértil para a sua
propagação.
Vejamos que numa federação como a americana, em que os estados e
municípios têm maior autonomia, é mais difícil para o governo
assumir uma política escancaradamente pró-capital financeiro.
Aqui, tem-se a concentração dos poderes no Executivo, que exerce
uma ditadura praticamente permanente. Sendo assim, quando o
presidente ou o ministro bate o martelo, não há quem ouse se
levantar contra.
Dessa forma, quase todos os planos econômicos de "salvação" foram
verdadeiros golpes de Estado em nosso país. Golpe de Estado não
significa somente colocar soldados nas ruas espetacularmente e
derrubar o presidente. Existem maneiras mais sutis, pode-se dar um
golpe mudando, por exemplo, a estrutura jurídica. Quando existem
operários, professores, trabalhadores, com direitos adquiridos
de aposentadoria, e mudam-se as regras, está se mudando o direito
da população, a norma do Estado. Está sendo dado um golpe.
CC: Seguindo um pouco essa trilha dos ‘golpes de Estado’ e da
centralização de poder pelo Executivo, como o senhor enxerga a
ação da Polícia Federal no escândalo Dantas? É reveladora de
alguma ingerência abusiva do Estado na vida dos cidadãos?
RR: Acho que sim, pois é tradição do Estado brasileiro essa
onipotência de seu chefe. O poder Executivo no Brasil herdou as
características de um poder moderador, que, além de
irresponsável no sentido jurídico da palavra, concentrava em si
todas as políticas públicas.
Todos falam do lápis vermelho de D. Pedro II como se fosse piada, mas
ele servia para que se interviesse no Legislativo, no Judiciário
(e a Constituição de 1824 dava a ele poderes para mudar juízes e
tudo mais), enfim, transformava-o num super-homem de Estado. Tal
concentração faz com que se tenham os três monopólios
tradicionais do Estado (da força física, da norma jurídica e dos
impostos) concentrados nas mãos do Executivo. Isto é, não existe
nenhuma política pública no Brasil compartilhada pelos três
poderes. Tudo é decisão do Executivo. No caso desse monopólio da
força física, o Executivo usa e abusa.
Portanto, a PF é um instrumento do Executivo federal que deveria
estar a serviço do Judiciário. Como ela tem essa visão de hegemonia
do Executivo, e os próprios integrantes dos outros poderes
também, existe essa tentação permanente do presidente da
República, do ministro da Justiça ou ainda da chefia da Polícia
Federal (nesse caso é mais grave ainda, pois os integrantes da PF se
julgam os próprios presidentes da República) de fortalecer,
propagandear, as políticas do Executivo.
Dois fatos interessantes: quando a Folha de S. Paulo fez uma
crítica, muito tênue, ao governo Collor, ele mandou a PF invadir o
jornal. Foi um dos seus tremendos elementos de desgaste, inclusive.
Já quando, no período do Plano Cruzado, era necessário manter a sua
propaganda, colocavam-se delegados da PF prendendo boi pra cima e
pra baixo.
Quer dizer, temos essa duplicação de funções da PF, que é ao mesmo
tempo um instrumento mantenedor do monopólio da força física,
preferencialmente na mão do Executivo, e também um instrumento
de propaganda desse poder. É tudo meticulosamente feito para dar
essa sensação, seja pela espetacularização, falta de respeito
aos direitos individuais, humilhação dos presos etc.
Parece-me que, nesse caso, é evidente ser o descontrole da PF um
sintoma do descontrole das relações do Estado brasileiro. Não
existem três poderes harmônicos e soberanos agindo conjuntamente,
mas sim uma hegemonia do Executivo sobre os outros dois.
CC: Acrescentaria ainda a esse ‘descontrole da PF’ a visão
crítica de que a ação um tanto performática da polícia estaria
enveredando por um perigoso caminho salvacionista, como se, ao
prender corruptos, o problema da corrupção estivesse
solucionado. Como encarar essa crítica? Enfrentar as
‘quadrilhas’ não é também importante no processo de luta?
RR: Nessa medida, acredito que a espetacularização do
trabalho da polícia e sua transformação em propaganda do
Executivo ajudam realmente a desviar o foco desse ponto mais
fundamental.
Inclusive, no programa Roda Viva da TV Cultura do qual participei,
disse algo no mesmo sentido, de que temos duas possibilidades de
entender o processo de corrupção no mundo inteiro, e no Brasil
particularmente.
A corrupção tem uma estrutura sincrônica e uma diacrônica. A
primeira está em todos os setores da sociedade, incluindo até a
Igreja, e é a possibilidade de apropriação de recursos
coletivos por grupos ou indivíduos. Lembro-me, no caso da Igreja,
por exemplo, quando a CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil)
foi prejudicada pelo seu tesoureiro, que roubou o dinheiro da
conferência, fato que dificultou o processo de aposentadoria de
vários religiosos. Mesmo dentro das igrejas, sempre há uma riqueza
coletiva e, consequentemente, uma disputa por sua apropriação e
aplicação.
Portanto, temos em todos os setores da sociedade essa facilidade
de quem está na direção de algum organismo (religioso, político,
esportivo) de se apropriar do fundo coletivo. Esse é o aspecto
sincrônico, tudo ocorre ao mesmo tempo. Enquanto o Eurico Miranda
mete a mão no dinheiro do Vasco, o Daniel Dantas está brincando em
outro campo, e o bispo Edir Macedo, por sua vez, em outro, tudo
sincronicamente. E o que é mais grave, com dutos entre estes
setores. À medida que um grupo se torna poderoso, ele procura
relações, passa recursos, troca favores e vai concretizando essa
rede. Se fosse possível puxar por um novelo, traríamos o país todo
pelo mesmo fio de lã. Esse aspecto sincrônico continua vigente e é
muito difícil dizer que essa realidade mudará ao som de três
cantigas.
Já o aspecto diacrônico é a tomada de consciência de aspectos
dessa sincronia. O Ministério Público, a PF e a imprensa
descobrem um escândalo: a partir daquele momento, tal escândalo
passa a receber um foco privilegiado, que vai até certo ponto, para,
posteriormente, cair quase que na impunidade. Ninguém sofre
nada. O foro privilegiado, por exemplo, só existe por causa da
corrupção. Depois de um tempo, aparece outro escândalo e, logo
depois, mais um. Quer dizer, temos uma sucessão cronológica em
termos diacrônicos que muitas vezes faz esquecer esse aspecto
sincrônico, que é fundamental.
O que me parece fundamental é que a PF tem atuado quase
exclusivamente na base da diacronia. Ela descobre um caso,
depois outro, mas, se existe um trabalho que mapeia
sincronicamente toda a questão, eu não conheço. Tenho muitas
dúvidas, cujas respostas não existem. Não há condições
tecnológicas para o mapeamento sincrônico, o que nos faz sentir
impotentes. No meu entender, isso traz a nossa curiosidade, o
ressentimento, o desejo de vingança. Ver o Maluf algemado dá um
prazer muito grande, mas esquecemos que dois dias mais tarde ele
estará solto e ficaremos sozinhos com o nosso prazer.
CC: Perde-se, desafortunadamente, portanto, a dimensão maior do problema.
RR: Exatamente. Parte-se não para a lógica racional, mas sim
para a lógica das paixões. É o que a espetacularização faz, ela
movimenta o ódio, o ressentimento, a inveja, essas paixões
primárias de todo ser humano. No entanto, o problema continua lá. E
depois vem o aspecto mais perverso, aquela pregação de que a
democracia não resolve, que a impunidade existe e é absoluta,
insuperável, e que, portanto, não vale a pena lutar contra a
corrupção, pela justiça social, pelos valores, pois, afinal, todo
mundo é corrompido, ‘salvo eu’.
Este é o ponto que parece mais grave. Cria-se uma subjetividade
inocente que é absolutamente hipócrita. É como considerarmos
meia dúzia de familiares e amigos autênticos como santos e o resto
do mundo, pecadores. E aí se duplica o prazer da punição, da
humilhação. Tal receita, Savonarola já tentou em Florença, na
época do Renascimento, e não deu certo. Aliás, ele acabou queimado.
Os corruptos da sua época continuaram corruptos e muito
importantes. Essa receita do justiciamento, e não da justiça,
muitas vezes pregada, é bem ruim.
CC: Nesse sentido, o que o senhor pensa dessa ‘lista suja’ de
candidatos, recém divulgada? Ela não é reveladora dessa ‘receita
do justiciamento’?
RR: Considero essa lista um erro. Se temos um processo desses,
no qual magistrados colocam a público uma lista, temos em última
instância a denegação do direito do devido processo legal. Temos
pessoas que estão sendo acusadas por erro burocrático, por
distração, algo perfeitamente humano, ou por culpa de terceiros,
quer dizer, a pessoa foi implicada num crime e não teve coragem ou
tempo suficiente para cortar a coisa no momento certo.
E o que acontece? A democracia grega é sempre um exemplo para nós. Na
Grécia, existia uma pena que era a da atimia, que vem de 'timós', que
se refere à coragem e à honra do ser humano. O cidadão acusado de
atmia perdia todos os direitos civis e políticos. Não podia ser juiz,
testemunha, nada. Podia ser morto que não haveria crime.
Essa pena podia atingir desde o sujeito que tinha de prestar contas e
não o havia feito corretamente até o acusado de prostituir seu
corpo, questão que na Grécia era referente ao homossexualismo
masculino. Essas pessoas eram condenadas sem julgamento. Os
juristas modernos dizem ser assustador terem existido culpados que
recebiam pena sem passar pelo devido processo legal.
Portanto, essa questão da atmia ajudou poderosamente a corroer os
laços internos da democracia grega. No momento em que qualquer um
pode ser acusado de desonrado, todos podem. A partir disso, a
amizade, o respeito, vão desaparecendo.
É evidente que nessa lista existem assassinos, ladrões do erário
público etc., mas será que, com toda certeza – pois, num processo
legal, não pode haver dúvida -, você diria que todos eles são
corruptos e larápios do tesouro público? E aí vem a pergunta: onde
está a justiça?
CC: Nessa linha, faria uma conexão com a ação do STF, que foi
moralmente criticado, mas juridicamente considerado correto
por muitos ao mandar soltar o banqueiro Dantas, face à falta de provas
evidentes na justificativa da prisão preventiva. Em sua opinião,
o ministro Gilmar Mendes agiu acertadamente?
RR: Eu acredito que sim. Como diria o advogado, com todo o
respeito, não cabe ao juiz nem ao promotor público assumir esse
papel de denúncia e quase de acusação pública de candidatos, como
não cabe, coloco no mesmo barco, o que o Ministério Público acabou
de fazer com o MST lá no Rio Grande do Sul.
Deve-se agir segundo fatos e levá-los até o direito. Leva-se o fato
até o juiz, que, por sua vez, decide ser ele digno de louvor ou de
sanções negativas. Não cabe ao MP essa atitude de punir um
movimento social ou um corrupto antes da decisão judiciária. O
sistema de justiça mínimo, essencial, tem três fases que de
maneira alguma podem ser negligenciadas, sob pena de não termos
mais justiça, ou de ficarmos com apenas uma caricatura dela. E
essas três fases são a acusação, a defesa e um juiz mediador entre
ambos. Se qualquer um destes elementos faltar ou abusar de suas
prerrogativas, não há justiça.
Portanto, neste caso da lista suja, acho que está havendo uma falta de
obediência ao múnus próprio dos juristas e juízes. No caso do MST, é
a mesma coisa. São situações diferentes, mas a perda de rumo é
muito similar.
CC: Associando esse ato do Ministério Público no Rio Grande do
Sul à questão da ingerência do Estado, não teria sido omisso o
governo Lula diante de uma ação tão ostensiva, ao contrário da
prisão de Dantas, inicialmente avalizada pelo governo?
RR: Neste caso, precisamos pensar novamente sob a ótica do
Estado dirigido hegemonicamente pelo Executivo. Eu sou
partidário do Estado democrático de direito, que significa não
ser autônomo o Estado em relação à sociedade, mas sim a expressão
da complexidade social, não podendo tornar-se superior e
curador da sociedade. Mas temos a perda do Estado ligado aos três
poderes, o que resulta exatamente nisso: o Estado curador e,
dentro dele, um Executivo que possui a tutela de todo o resto.
Quando tal processo se dá, aparece a lógica da divisão e da facção. E
não é por acaso que a PF se define como várias facções. No MP há
também várias tendências e facções, vários partidos inclusive.
Existem procuradores de esquerda, conservadores, de todo tipo, e o
poder do presidente separado, concorrendo com eles para
dominá-los, tratando essas questões, de Estado, como se fossem
políticas e de facções.
Portanto, assim como pega bem junto à opinião pública e a setores
mais conservadores, usando um termo brando, prender um Daniel Dantas
(com o devido refluxo depois), não pega bem o presidente ir contra
os promotores do Rio Grande do Sul. Este pensamento de que "o que é
bom para mim, é bom para meu grupo, meu poder", escapa da lógica do
bem coletivo, do Estado.
Nesse caso, sempre se louva e se admira a agilidade política de
raciocínio do presidente Lula, que de fato é ágil. Mas note: nesses
últimos tempos, muito raramente sua agilidade vai no sentido de
promover o bem do Estado e da sociedade. Quase sempre é dirigida a
manter a sobrevivência de si mesmo e de seu grupo político.
CC: Ou seja, mais uma vez, temos uma situação plenamente coerente sob a ótica do ‘modus operandi’ do Executivo.
RR: Exatamente. Elias Canetti, naquele magnífico livro
"Massa e poder", caracteriza o poderoso como sobrevivente. Quer
dizer, a partir do momento em que ele tem poder e o exerce, mandando
prender, matar, enviando corpos à guerra, vai assumindo uma espécie
de volúpia de eternidade, que é irreal, pois nenhum ser humano
pode tê-la. Ele analisa muito bem a personalidade de Schreber, que
é um juiz e tem esse devaneio de divindade, essa soberba,
arrogância. O poderoso se alimenta da vida dos governados. Ou
seja, "tudo que puder ser feito para que eu permaneça no poder, eu
farei, e tudo aquilo que for prejudicial à permanência minha e do
meu grupo, não farei". Isso me parece muito grave.
O mesmo presidente que põe na cabeça o boné do MST em Brasília,
fazendo toda aquela encenação, cala-se quando acontece algo como o
ocorrido no Rio Grande do Sul. O que poderia acontecer caso ele se
manifestasse? Evidentemente, alguns setores diriam que está
interferindo em outro poder, usando métodos do Chávez e tudo mais.
Esse não é um problema nosso e nem da cidadania, mas sim do cidadão
Luiz Inácio da Silva. Ele que deve assumir se vai ter um programa ou
não.
Chegamos a esse ponto com o PT. Com a ‘Carta aos brasileiros’,
ficamos sabendo que o PT entrou nessa lógica mundial de quebra da
soberania dos Estados nacionais. Assumiu plenamente um
retrocesso em relação a um programa defendido durante vinte anos.
Houve uma quebra de confiança tremenda em relação ao público
interno. Conseguiram, Palocci e cia., a confiança do investidor
externo, leia-se capital financeiro, à custa da quebra da palavra
com o cidadão interno.
Sempre gosto de dizer que ‘countability’ significava na
Inglaterra, nos EUA e na França confiança e prestação de contas ao
cidadão que paga impostos e mantém o país. O governante que não
desfruta da confiança de seus cidadãos tem uma palavra que não
vale nada para ninguém. Nesse caso, tivemos a quebra da palavra que
está no programa do PT até hoje. Por outro lado, há a propaganda
para, digamos, remediar essa quebra da República. Portanto, é
claro que a propaganda será ampliada, dando espaço para esses magos
como Duda Mendonça, João Santana e outros.
CC: Esta lógica ressaltada, com o descompasso entre os poderes a
partir da tutela do Executivo - e também o descompasso
intra-poderes, na medida em que a polícia manda prender, com o aval
de instâncias inferiores do judiciário e do governo (mesmo com
seu recuo posterior), e o supremo manda soltar -, caracteriza a
seu ver um quadro de crise institucional?
RR: Benjamin Constant, o liberal francês, criou o Poder Moderador
porque houve uma ditadura do Legislativo, a Jacobina, que deu no
Robespierre, no Terror, no fim da Revolução Francesa e no
retrocesso de suas conquistas. A escravidão, por exemplo, que tinha
sido abolida, voltou, além de outros fatos semelhantes.
Como resultado dessa ditadura do Legislativo e como reação
contrária, tivemos a ditadura do Executivo, com Napoleão. Assim,
quando passou o reinado de Napoleão, Constant pensou em um poder
moderador que servisse para coordenar os três, evitando
hegemonia de um ou outro. Poderia ser exercido por um rei,
presidente da república etc., pois seria um poder neutro, capaz de
resolver esse excesso de poder de um em detrimento de outro,
exatamente para evitar uma ditadura.
O poder moderador foi transposto para o Brasil e aplicado não como
um poder neutro, mas como um poder superior aos demais. Na carta de
1804, a idéia de poder moderador é a de um poder superior aos
demais.
Existem distintos modelos de Estado: o ditatorial (que pode ser de
um grupo ou indivíduo), o liberal-democrático, o liberal, o
totalitário, enfim, modelos não faltam. No entanto, se temos uma
proposta de Estado republicana e democrática, devemos ter os
três poderes contrabalançados. Caso contrário, podemos sofrer
com a ditadura de um deles.
Ora, no nosso caso, temos o poder Executivo hegemônico, usando as
prerrogativas de um poder moderador-superior, interferindo na
vida dos outros poderes e, como resultado, chegamos à reação
desses outros contra ele. E nosso modelo é pior ainda, pois os
deputados e senadores não são nada mais nada menos que
representantes das oligarquias regionais encarregados de
trazer recursos para suas regiões. O que temos no Congresso, no
relacionamento do Executivo com o Legislativo? Ou chantagem,
do tipo "se não passar verbas para a Bahia, não votamos no seu
projeto", ou cooptação de deputados e senadores pelo Executivo.
Não temos outro modelo. Isso exalta a corrupção, gera insegurança
institucional permanente.
A Inglaterra está em crise como nós, mas lá podemos contar com o
papel de cada um dos poderes. Lá, o poder Judiciário depende do
Parlamento e não existe supremo tribunal. O poder do povo,
representado no parlamento, é superior ao poder judiciário.
Dessa forma, o cidadão e o próprio político têm uma expectativa
de performance no poder. Aqui, o Executivo legisla, através das
medidas provisórias. Com isso, abre para o Legislativo as
possibilidades da chantagem ou da cooptação. E diante de tais
leis, que não emanam do Legislativo, o que pode fazer o Judiciário?
Ele não carrega uma expectativa de comportamento político,
enquanto poder de Estado. Ele julga caso a caso.
De certo modo, voltamos àquilo que Max Weber chamou de justiça do
Cádi, a Constituição está lá para ser adorada, mas o que decide é o
caso a caso, o dia-a-dia. Assim, não se cria uma expectativa de
comportamento e de esperança; o cidadão comum que queira entrar
com processo não sabe o que será depois, porque não tem
expectativa.
Nessa onda de ‘autoritarismo’, tem-se algo que nem no período da
ditadura existia, essa inédita invasão de escritórios de
advocacia. Este também é um ponto deletério no meu entender. Fui
preso político e não tenho notícia de escritórios de advogados
invadidos pelas forças repressivas. Na época, a ditadura
torturava, desconhecia os direitos dos presos, atenuava ao máximo
as prerrogativas dos advogados, que não podiam realizar
visitas na hora em que queriam, entre outras ilegalidades. Mas
entrar num escritório de advocacia para pegar papéis é algo que
está se tornando inédito.
O pior é que vejo o ministro Tarso Genro dizendo que o presidente da
República está com o projeto que garante a inviolabilidade
dos escritórios aprovado pelo Legislativo, mas que, se ele e Lula
perceberem que haverá uma facilitação do crime, vetam o projeto.
Isso é o fim do mundo. Vindo de uma cabeça jurídica como a do Tarso
Genro, parece-me um retrocesso pior que a Carta aos brasileiros.
O PT conta com militantes que foram presos durante a ditadura e que
são presos ainda hoje. Possui toda uma ala de setores mais radicais
que precisam de advogados. Essas pessoas vão ficar com qual tipo de
advogado? Com aquele permitido pelo Executivo? Isso para mim tem
um nome: escancaramento a toda ditadura futura. Acho isso muito,
muito, perigoso.
CC: Estamos, portanto, diante de novos e sorrateiros golpes de Estado?
RR: É isso mesmo. Veja, é próprio das ditaduras mais
virulentas que o advogado seja desprezado, assim como o espírito
de defesa. Lembro-me do livro de Graciliano Ramos, "Memórias do
cárcere", em que havia um advogado que se acreditava como tal, que
pensava existirem leis respeitadas. Quando ele é preso e atravessa o
pátio do quartel, ao chegar do outro lado, já não acredita em nada
disso, pois é próprio da ditadura corroer a confiança no direito e
na justiça. Tenho muito medo desse tipo de conseqüência.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
Colaborou o jornalista Gabriel Brito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.