Flores

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sábado, 3 de novembro de 2018

Outro pedido de entrevista, no qual os bons modos foram abandonados pela entrevistadora. Respondi as perguntas, mas não deixei de indicar a falha no trato. A jornalista não publicou a entrevista. Já tenho um caderninho com nomes de pessoas assim, que imaginam ser obrigação de quem é procurado aceitar todo tipo de tratamento, prazos que o jornalista tem, não o entrevistado, etc. Creio que o material seja interessante para meditação.

 
Boa tarde. Sou repórter do Jornal Acrítica, no Amazonas, e estou escrevendo sobre política e fake news. Como falado ao telefone, envio abaixo as perguntas sobre o tema abordado:
 
- Esta é uma eleição cujas principais fontes de informação são notícias forjadas. Qual o risco disso pra democracia e para o país?
- As fake news tomaram os Estados Unidos e acabaram elegendo Trump, não é?
- Ao que podemos atribuir o fato de que as pessoas optam em acreditar mais em correntes de whatsapp, por exemplo, do que na grande mídia?
- Por que a tendência de acreditar no que queremos? 
Quais medidas enérgicas que o TSE e TRE podem tomar nesse fim de eleição para combater a propagação de notícias falsas?
- Qual o papel do poder público no combate às fake news?
- Qual a responsabilidade do cidadão na propagação de uma notícia falsa?
- Nesta semana  foi noticiado que grupos de empresários estão bancando mensagens anti-PT em grupos de whatsapp. Podemos ver o ato como uma união contra partido ou uma união por um "ideal"?
- Quais caminhos o Brasil pode seguir para tentar reverter a crise política instalada?
- Desde o anúncio do segundo turno, temos notícias de mulheres, gays e religiosos agredidos sob gritos do nome de um dos candidatos. Isso mostra o que podemos esperar em caso de vitória do candidato de extrema direita?
- O que significaria uma vitória do PT neste segundo turno?
- As manifestações contra Bolsonaro e PT revelam uma união pelo bem comum, pelo mesmo ideal, ou uma união pelo ódio comum pelo fato de odiarem o mesmo partido ou o que o candidato representa? 
De antemão, agradeço a atenção. Estou com o deadline para as 17h desta sexta-feira, dia 19.
 
 
 
 
 
 
O senhor tem razão, peço desculpas. Agradeço por atendido tão prontamente meu pedido de entrevista.

Melhores cumprimentos, 


Em qui, 18 de out de 2018 às 17:27, romanor@uol.com.br <romanor@uol.com.br> escreveu:
Prezada Sra. Suelen: não conheço muito bem os costumes em Amazonas. Aqui no Sul, quando enviamos uma correspondência para alguém, declinamos o nome da pessoa. Noto que a senhora não usa tal recurso de comunicação. Estranho muito, porque nas poucas vezes em que estive aí, para palestras e outros afazeres, percebi um polimento de atitudes exemplar. Com meu estranhamento, seguem as respostas, na medida do possível.

1) A democracia é um regime político e jurídico sempre em risco. Para que ela se mantenha é preciso que os cidadãos acreditem nas palavras das autoridades e dos concidadãos. Sem tal confiança, desaparece o convívio leal, se universalizada o engodo e a descrença. Uma república democrática requer a fé pública. Sem fé pública, nenhum negócio privado, nenhum laço familiar, nenhuma estrutura política pode ser mantida. Os indivíduos e grupos regridem à guerra de todos contra todos, agora com armas não apenas físicas, mas morais: mentiras, dissimulação, armadilhas. Sem fé pública até mesmo andar em uma cidade se torna um ato de coragem desmedida e ocasião de medo. Em economia, investidores estrangeiros notam perigo quando se trata de aplicar seus recursos num país no qual os setores do Estado (Executivo, Legislativo, Judiciário) não garantem a soberania da lei. A mentira que serve à propaganda dissolve os laços de obediência e civilidade na ordem social e política. Mentira sempre existiu no mundo humano, como aliás a corrupção e outras mazelas. É justamente por tal motivo que são criadas as leis. Se, num Estado e sociedade, a mentira supera o domínio da lei, ela não pode crescer e se tornar uma realidade na qual se vive e não apenas se sobrevive aos ataques e armadilhas de todos contra todos. A mentira "pequena" atrai outras maiores. Se não for dominada, a prática da mentira geral é um veneno que impede todo convívio honesto e respeitável. Numa sociedade e numa política absolutamente mentirosas, caímos no que diz Santo Agostinho na Cidade de Deus: não nos diferenciamos de qualquer quadrilha de ladrões, mesmo que nos imaginemos honestos.

2) As fake news apenas potencializam as guerras e danos já existentes em uma sociedade. Quando elas surgem, o coletivo já está adoecido, prestes a se dissolver em inúmeras facções inimigas. Fake News são eficazes quando os cidadãos já deixaram de acreditar nas autoridades políticas, judiciárias, econômicas, religiosas. Em crise de desemprego de setores da classe média e trabalhadora , como era o caso dos EUA antes das eleições presidenciais, as fake news movem o rancor, as esperanças, os preconceitos dos ressentidos com o statu quo. Eu não diria que as feke news tomaram os EUA na sua totalidade. Milhões não votaram em Trump, aliás, um número de votos superior ao que ele conseguiu foi dado a Clinton. Esta última ganhou nas urnas mas perdeu no Colégio Eleitoral. Assim, nem todos os norte americanos caíram nos truq ues das fake news, e ainda hoje não caem.

3) Boa parte de ressentimento contra o status quo, incultura, superstição e desesperança. No caso brasileiro, pesquisa recente mostra que 30 por cento de nossa gente nunca abriu um livro. É sintomático, porque a cultura da internet se move no plano do slogan que emprega preconceitos. A propaganda sempre obedece a lei seguinte: a maior mentira deve ser veiculada da maneira mais breve possível, e agradável. Um exemplo clássico de propaganda breve e eficaz é o "I like Ike", com o qual o governo norte americano salvou a popularidade de um presidente militar e pouco afeito à liderança política de massas. Nada que uma leitura atenta de Goebbels e Walter Lipmann não ajude a entender.
4) O dogmatismo é profundamente inserido na estrutura anímica do ser humano. E além do dogmatismo, o autoritarismo perpassa todo ente humano. Queremos que os demais aceitem nossas ideias e teses, não queremos aceitar a deles: ser obedecido e seguido, além de louvado, é uma forma universal de sentimento de poder. É por tal motivo que todas as teorias modernas do Estado exigem um contrato inaugural, mesmo que fictício. A guerra de todos contra todos tem origem no fato de que todo homem é lobo para os demais. Com o contrato, é decidido que nenhum mandará nos demais e todos obedecerão as regras que proíbem o assassinato, os roubos, a violência corporal e anímica. Como  os pensadores que fundaram o Estado moderno são realistas, eles apresentam, logo após o pacto geral, os instrumento de governo para obrigar a todos a honrar a palavra dada. Daí os podres da Justiça, da Polícia, dos Impostos, etc. Todo indivíduo, se não tiver coerção da lei e a ignorar, pode a qualquer momento retornar ao reino da guerra universal, ou seja, da morte coletiva. A democracia deve ser muito exigente, mais ainda do que outros regimes, na imposição das leis.

5) Se os tribunais eleitorais, algo quase desconhecido no resto do mundo, tivessem a confiança dos cidadãos, bastaria que eles exigissem de todos os candidatos o cumprimento da lei. Como o inverso ocorre em nossa pátria, resta o caminho da polícia e das penalidades financeiras. Entretanto, mesmo tais providência estão longe do poder judiciário que se encarrega das eleições. Então, assistimos a guerra dos que solapam as leis em proveito próprio, a falência ética dos partidos políticos, a revolta e desconfiança da cidadania. A impotência togada, que não garante a lei, a disciplina, a obediência aos ditames legais.

6)O cidadão que ajuda poderosos a mentir é cúmplice e ator de crimes contra a vida coletiva. Num país sério eles deveriam ser punidos com rigor, por exemplo perdendo os direitos cidadãos por um período ou para sempre.

7)Creio que já foi respondido acima.

8) Lutar para que o país seja de fato uma federação republicana e democrática. Enquanto o Brasil for de fato uma ditadura do Executivo federal, onde ele concentra os impostos e as políticas públicas, tratando Estados e municípios como derrotados em uma guerra, pouco progrediremos em termos de prática da responsabilidade com recursos e pessoas.

9) O preconceito e a matança de mulheres, homossexuais, indígenas e outros setores perseguidos é comum no Brasil. O clima atual apenas acentua a violência cotidiana que impera na sociedade brasileira, aumentada pelo fanatismo religioso que, de fato, aumentou desmesuradamente nos últimos tempos. Dias tremendos virão logo, para o nosso país.

10)Um milagre, mas se tal fato ocorrer, o país será muito difícil de ser governado, visto o acirramento ideológico que tomou conta de todos os setores nacionais.

11) É próprio da democracia, como diz o grande jurista democrático Norberto Bobbio, a tensão entre palácio e praça. Os palácios servem para governar, as praças para conseguir o poder...nos palácios. Nas praças, as passeatas, comícios, demonstrações de massa são a regra. No palácio, a praça é visto como fato ameaçador. Mas ódios existem nos palácios e nas praças. É por tal motivo que todos os grande pensadores da ética e da política recomendam a amizade como corretivo ao ódio. " A maior muralha de proteção de um povo é a amizade entre cidadãos". Os ódios abrem fendas na muralha, abrem o caminho da matança coletiva, das guerras civis e dos atentados. Uma sociedade saudável pratica a amizade. Uma sociedade à beira da morte, usa o ódio como veneno.

Cordialmente
Prof. Roberto Romano, Prof. Titular aposentado de Ética e Política, Unicamp.

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