‘O Brasil não é uma federação, não é uma democracia liberal e nem é uma democracia’
Autor de 'Brasil: Igreja contra Estado' aborda a perseguição do clero aos liberais na Europa e no Brasil e defende que é urgente a reafirmação da laicidade no País
Entrevista com
Roberto Romano, filósofo
José Maria Mayrink e Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo
17 de novembro de 2019 | 01h29
Autor de Brasil: Igreja contra Estado, o filósofo Roberto Romano,
de 73 anos, analisa as consequências da disputa da Igreja com os
governos pela soberania na República. E assim procura traçar um retrato
da evolução do país 130 anos depois da queda da Monarquia e da
perseguição do clero aos liberais na Europa e no Brasil. É urgente, ele
diz, a reafirmação da laicidade no País. Mais ainda: a única saída é a
reafirmação do ideal iluminista da educação de todos, de uma educação
universal e fundamental. "Não como direito, mas como prerrogativa do
exercício da soberania". Leia, a seguir a sua entrevista:
Na Holanda, transformam igrejas em lanchonetes. Aqui, expandem-se os evangélicos. Isso é consequência de uma Igreja de obras em vez de uma Igreja de fé?
São várias causas, uma delas é essa, mas
não é preponderante. Tem um dado antropológico que todo mundo conhece: a
Igreja Católica é um milagre de mobilização dos cinco sentidos humanos.
Você pega uma cerimônia católica e, quando ela é oficiada corretamente,
move esses cinco elementos. Com o Concílio Vaticano 2.º houve um certo
encolhimento da Liturgia, tanto que certos bispos, muito arrojados do
ponto de vista político, como d. Aloísio Lorscheider, por exemplo,
resistiram até o final a essas mudanças litúrgicas. Dom Lorscheider
celebrava missa em latim. Ele era muito desconfiado. E tem um problema
do culto. Não é por acaso que o espertalhão do Edir Macedo usa elementos
do culto da umbanda e do catolicismo e fez um sincretismo cultural, que
dá muito certo, pois tem milênios atrás dele. Eu não diria que é a
única explicação, mas que é uma explicação importante é. Se você não
mobiliza. O (Friedrich) Nietzsche é que diz que o catolicismo é
uma espécie de enciclopédias das culturas do Mediterrâneo: tem
praticamente tudo. Se você não mobiliza, não tem força para retirar o
alimento do quotidiano dos fiéis.
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Após o Concílio vaticano 2.º a Igreja tenta se fazer voz dos despossuídos, isso impacta de que forma a relação da Igreja com essas pessoas? As pessoas enxergam na Igreja um caminho de salvação ou mais um ator político?
Acho que é
mais como ator político que tem toda a história da razão da Igreja e
menos da razão da salvação. O Talles de Azevedo, que era um sociólogo
bem conservador, fez em 1950 um levantamento a serviço dos bispos sobre a
Igreja no Brasil. Ele alertava que o catolicismo ia passar por crise
fortíssima, porque não tinha enraizamento mais no quotidiano das
pessoas. Eis a razão do slogan dos bispos: 'Brasil: País de missão'. Foi
de 1950 em diante. E as ações se redobraram em termos de tentativa de
chegar até as massas via elemento cultual. O problema é que, quando
estava se desenvolvendo esse movimento missionário para dentro do
Brasil, veio o Concílio. E o Concílio, de fato, tem certas coisas que
você precisa ter muita cautela, do ponto de vista da antropologia. Um
exemplo: uma senhora está acostumada a rezar o terço durante a missa - e
isso foi ensinado para ela a vida inteira. Aí chega um jovem pároco e
proíbe. Não pode mais rezar o terço na missa. O jovem pároco, que está
entusiasmadíssimo com as novidades do Concílio, retira todas as imagens
da parede. A igreja vira uma igreja protestante, sem ter o nome de
protestante. O livro de oração que era rezado durante a missa, porque o
padre estava lá fazendo a função dele, também é proibido. Eu
testemunhei, pessoalmente, quase um prazer sádico de certos sacerdotes
jovens em desenganar essas coisas. O Rubens César Fernandes tem um
livrinho sobre Bom Jesus da Lapa. Ele é um bom antropólogo e nota esse
clero um pouco voltairiano diante de uma massa de fiéis que estão
vivendo, no máximo, no século 19, nesse movimento de culto aos santos,
de milagres. O que o Rubens diagnostica é o aumenta da separação entre a
igreja e os fiéis.
A Igreja foi para um lado e seu rebanho ficou parado?
Ficou parado.
Isso abriu espaço para que outros atores pudessem dialogar com esse rebanho?
Exatamente.
E de formas mais eficazes, de forma administrativa e pastoral
inclusive. O frei Raimundo, que estudava a questão do pentecostalismo,
advertiu isso. E o Pedro Ribeiro de Oliveira acentuou. No caso da
Igreja Católica, se você tem uma atitude iluminista por parte do clero –
de recusa do catolicismo tradicional –, além de uma estrutura
burocrática extremamente forte. Esses cultos pentecostais, inclusive
dentro da Igreja, diminuíram muito essa mediação hierárquica dentro do
clero. O fiel tem muito mais possibilidade de agir dentro da Igreja como
missionário, como pastor. Eu sempre me lembro de uma vez que fui
visitar um irmão meu em Bauru. Ele me levou para o centro para
reconhecer a cidade. E, na praça da Matriz, constatei uma coisa
interessante: para chegar na porta da Matriz você tem de subir 30
degraus, no mínimo. Quando você chega lá, a porta da Igreja está fechada
porque não é o horário. E aí tem um aviso: atendimento na paróquia é de
tal hora a tal hora, uma perfeita organização burocrática e impessoal.
Aí eu dei a volta e, no traseiro da Matriz, tinha uma igreja do Edir
Macedo. A porta estava no rez do chão, na calçada, estava aberta e duas
pessoas convidando para entrar. Não precisa ser grande antropólogo ou
sociólogo para perceber os resultados dessa ação, dessa atitude
pastoral. O problema é a técnica de pastoreio.
Professor, é possível estabelecer uma relação entre o movimento ultramontano no século passado, quando exige liberdade para a Igreja, com a posição de um pentecostalismo, que exige liberdade para si a fim de impor sua soberania sobre o Estado?
Você é leitor também do (Max)
Weber. E há uma coisa muito interessante em Weber e sobretudo no
Judaísmo Antigo, que é a disputa do Palácio com o Templo. Isso vem de
lá. Você disputa e aquele caso de Samuel, 2 é paradigmático: para hoje,
para os protestantes, para Edir Macedo e para a Igreja Católica,
sobretudo. Qual o governo de Israel? O governo dos juízes. Samuel é um
juiz honesto, reto e bom, mas os filhos de Samuel são ladrões, vendem
sentenças. O povo fica incomodado com isso e quer mudar. Ele pede a
nomeação de um rei, como nos outros povos. Aí Samuel consulta Deus. E
Deus diz: ‘Não é você que eles estão recusando, é a minha soberania que
está sendo questionada'. Então, veja, esse é um ponto que o Weber
insiste muito citando os Atos dos Apóstolos: ‘É preciso obedecer mais a
Deus do que aos homens’. Esse é o princípio – diz o Weber – de toda a
hierocracia e de todo o poder que resistiu até a idade dos direitos dos
homens aos poderes ilegítimos e legítimos do Estado. A soberania, quando
se trata dessa disputa, está entre Deus e o Estado e não entre aquela
igreja ocasional,a Igreja Católica ou a igreja protestante. Quando o
papa ou Igreja diz que fala em nome de Deus – e, veja, esse é um ponto
seríssimo na briga do Carl Schmitt com o sistema liberal. A ideia de
representação que o Carl Schmitt tem é o da Igreja Católica. O papa
representa Jesus Cristo. Não tem essa história de o papa representar o
povo, o Parlamento etc. E, no caso da representação liberal, essa
passagem para o povo é essencial. Tanto que um fato que não é muito
discutido no movimento ultramontano é a perseguição ao catolicismo
liberal alemão, ao (Johann Joseph Ignaz von) Döllinger. O nosso Rui Barbosa o editou, aumentando enormemente seu livro (O papa e o Concílio: a questão religiosa),
que teve consequências no século 20. Se não existisse a
supercentralização em Roma, se não existisse essa condenação do
modernismo e do liberalismo, com certeza o movimento católico alemão não
estaria adstrito ao Zentrum (partido católico alemão que buscava aplicar a doutrina social da Igreja),
ele teria uma dimensão muito mais ampla em termos políticos. O que
ocorreu com a Concordata do Império? Foi proibida a atividade política
dos católicos alemães e, quando digo católico, não digo apenas padres,
mas os fiéis também, o que potencializou enormemente o poder de Hitler e
de outros.
O senhor está se referindo à Concordata de 1933?
Sim.
Era um partido altamente obediente às diretrizes imediatas de Roma.
Você impediu que os católicos tivessem uma formulação liberal. É por
isso que o Schimitt tinha tanta raiva do liberalismo, pois até mesmo
dentro do catolicismo ele se insinuou. E aqui no Brasil, nesse período, o
que está sendo questionado é o pensamento liberal. os liberais foram
esmagados.
O senhor quer dizer como consequência do movimento ultramontano?
O
que está no centro dessa questão é a afirmação, voltando a uma questão
antiga, a da soberania do papa. O cardeal Belarmino tentou ajustar a
dose com a soberania indireta do papa, mas essa tese, que está no centro
do movimento ultramontano é essencial para entender o que é a Igreja
Católica no século 19 e no século 20.
Essa mesma Igreja que reivindica a liberdade no Brasil, tinha uma relação quase de proximidade com a Monarquia. O que significou para Igreja a Proclamação da República. Ela acaba criando as condições para que a Igreja se desenvolva mais no País?
Esse é um ponto que está
ligado e resultam da cisão da Reforma e do reforço do estado nacional.
Não tem apenas a questão de 'cada povo a religião de seu príncipe', mas a
da soberania do Estado estar sendo imposta por meio da razão do Estado.
Ela começa com Henrique VIII fazendo a sua Igreja, mas essa questão
está no centro da monarquia francesa - com o galicismo - e o padroado na
Espanha e em Portugal. O padroado é a manifestação mais clara da razão
de Estado. O Estado é soberano sobre os corpos e as almas. Não só sobre
os corpos. Essa é uma tese que o Hobbes desenvolve muito bem no Leviatã.
O soberano é que ensina, é ele que promove as políticas públicas. O
papa apenas ensina o Evangelho, Jesus cristo, que é do mundo
extraterrestre. Tanto é que o Hobbes vai dizer que a soberania do papa é
o último fantasma do Império Romano. O padroado é a afirmação do
absolutismo monárquico de uma maneira escrachada. E, aqui, no Brasil o
padroado funcionou sempre no sentido de impor a política do Estado.
Quando houve aquela polêmica do ensino religioso no Brasil - e ela
existe até hoje -, o Pereira Barreto lembrava que, no Império, para a
Igreja dar aula de religião, ela tinha de pagar a lamparina, tinha de
manter as salas. Não era o Estado que pagava. E, inclusive, no período
da regência do padre Feijó, você tem a presença laica do Estado como um
poder superior. Houve um fechamento gradativo de ordens religiosas, que
eram vitais para a Igreja, e a proibição da entrada de estrangeiros e de
noviços no País. Caía-se no instituto da mão morta: se não havia mais
ninguém para tomar conta do convento, o Estado tomava conta desses bens.
Um elemento essencial para a expansão da Igreja eram as ordens
religiosas. Os dominicanos pediram licença para fazer um convento no Rio
e d. Pedro II disse: ‘Não, não quero representantes de Torquemada no
meu Império’. Alguém lembrou a ele, que os que estavam pedindo licença a
ele eram da ordem francesa, que eram ligados ao socialismo cristão, mas
ele não os deixou ficar no Rio, mas em Uberaba. Havia uma aplicação
estrita desse absolutismo. Esse é um termo que muitas vezes não aparece
na avaliação do Estado imperial brasileiro, mas ele é um absolutismo
retardado. Foi instaurado aqui um absolutismo aqui
contrarrevolucionário, contra a Revolução Francesa, a Revolução Inglesa e
a Revolução Americana. O principal elemento recusado dessas revoluções
está na Constituição de 1824: a irresponsabilidade do chefe do Estado. É
um grito de guerra contra a accountability francesa, inglesa e
americana. Esse absolutismo continua gerando seus frutos, inclusive o
enfraquecimento institucional da Igreja Católica. Quando se vê o
ultramontanismo no ambiente europeu, ele teve uma determinada face, mas
aqui ele não teve os mesmo obstáculos que apareceram na Inglaterra, na
França e mesmo nos Estados Unidos. Essa subordinação da igreja aqui ao
Estado foi muito mais forte. Tanto que é impensável na Europa uma pena
como a que foi atribuída a d. Macedo (Costa) e outros condenados a trabalhos forçados (na Questão Religiosa, durante o império).
É uma coisa violenta. Por isso, entende-se aquela frase tão estranha
dos bispos: ‘Veio a República e renovou a face da Terra’. O padroado era
uma gaiola de ouro, pois, efetivamente, a soberania do Estado era muito
mais forte. E aí chega a ambiguidade dos positivistas. Eles, como bons
românticos, tinham o ideal da ordem social contra o liberalismo e as
revoluções modernas, contra a metafísica liberal. Não existe indivíduo
ou liberdade individual, existe a sociedade. Eles viram na Igreja
Católica uma oportunidade de manter - enquanto eles não estabelecessem
na sociedade o culto positivista - uma aliada, donde aquele voto dos
positivistas contra o divórcio. Ficou clara a negociação ali. O divórcio
não é só uma questão legal, mas uma visão de sociedade. Nessa guerra
entre Igreja e Estado, os positivistas abriram um franco para a Igreja.
Eles tentaram impedir o avanço da Igreja atrasando ao máximo a ideia de
universidade. Os positivistas foram em grande parte responsáveis pelo
atraso na instalação de universidades no Brasil, porque eles tinham medo
de que a Igreja transformasse a universidade em um catecismo católico, e
eles foram muito mais a favor dos institutos de pesquisa e da educação
tecnológica. Até o século 20, o País ficou sem universidades. Em São
Paulo, a universidade foi criado por liberais.
Como foi a reação da Igreja com a participação de católicos na política da República?
A
lógica ultramontana vem até hoje. E a mesma lógica que ela empregou
para acabar com os liberais alemães, ela empregou aqui em todos os
setores da cultura, como a cruzada da boa imprensa, a cruzada do cinema,
enfim, em todos os setores da cultura se estabeleceu um cânon que devia
ser seguido pelas pessoas. No caso dos partidos políticos, os
candidatos tinham de passar por uma autorização dela por meio da Liga
Eleitoral Católica. Você chegava na porta da igreja em época da eleição e
tinha a lista de candidatos espíritas, comunistas, socialistas em que o
católico não podia votar. Antes de agir sobre partidos, ela tinha uma
linha geral e toda essa liga eleitoral católica e esses cânones
culturais tinham como base o Syllabus, a condenação do liberalismo. Se
você compulsa a Revista Eclesiástica Brasileira e a Revista Vozes, que
depois adquiriu tonalidades supostamente de esquerda, verá que ela é
militantemente contra o modernismo, contra o liberalismo e contra os
socialismo. O livro do (Juan) Donoso Cortés (filósofo ultraconservador espanhol) sobre liberalismo, socialismo e catolicismo foi editado pela Vozes em 1959 (Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo). Isso eu joguei na cara do (Leonardo)
Boff e ele ficou furioso comigo. Você tinha condenação pelo Syllabus do
modernismo: para ser professor da PUC de São Paulo até os anos 1960 era
preciso fazer um juramento antimodernista. Se você não fizesse, não era
nomeado. Tem figuras fantásticas que eu tenho dívida pessoal, como d.
Paulo (Evaristo Arns), que me salvou do esquadrão da morte,
mas, quando ele veio para São Paulo, ele tinha o mesmo pensamento da
Vozes de Petrópolis. Foi no trato pastoral que ele foi modificando sua
postura. Outro que é interessante é d. (Pedro) Casaldáliga. Ele
era um padre franquista. Ele veio para cá combater o comunismo. Aqui
ele mudou sua posição. A linha oficial da Igreja, desde o período Vargas
até o golpe de estado de 1964 era antimodernista, antiliberal e
antidemocrática.
Isso mesmo com a influência de Jacques Maritain?
Jacques
Maritain é uma tentativa muito delicada de atenuar esse pensamento
ultraconservador. É uma tentativa de ler o tomismo com uma lente, que eu
não diria moderna, mas um pouco mais aberta para o trato. Mas, mesmo
assim, há uma espécie de tomismo no centro do pensamento do Maritain que
ainda é eclesiocêntrico. Num livro que eu acho maravilhoso dele,
Distinguir para Unir os Graus do Saber, ele tenta - ainda contra o
diálogo com a ciência moderna - estabelecer uma escala de saberes, pela
sua hierarquia, uma coisa complicada. Ele tenta salvar a hierarquia
dentro do Estado e da sociedade, coadunando-a com a democracia. Ele não
era tão bem recebido nas hostes curiais e não tinha grande divulgação.
Aqui no Brasil foi a editora Agir que mais o divulgou e o Tristão de
Athayde da segunda fase. O Tristão de Athayde da época da revista Ordem
certamente colocaria o Jacques Maritain na fogueira. Esse é um episódio
complicado, esse compromisso com o pensamento autoritária. Há um fato
interessante: os grande pensadores conservadores – salvo o Donoso Cortés
–, como o Joseph de Maistre, tinham a mesma visão instrumental do
catolicismo do Augusto Comte. Tanto que o Maistre teve rusgas imensas e
condenações da própria Cúria. Ele tem o texto sobre a soberania do papa,
e o papa percebeu rapidamente que a Igreja entrava ali como a mão do
gato para assegurar ali um poder autoritário, contrarrevolucionário. No
caso do século 20, você tem católicos, como o Carl Schmitt, que
forneceram material para o pensamento autoritário. Diz-se que o Schimitt
rompeu no fim da vida com a Igreja. Rompeu coisíssima nenhuma, pois as
bases do seu pensamento permaneceram as mesmas. Esse é um ponto que vai
render muito. Já tem alguns estudos feitos sobre o quanto o pensamento e
a prática de um Francisco Campos tem a ver com o pensamento do Carl
Schmitt. Ele não era um desconhecido no Brasil. A prova mais clara você a
tem no Raízes do Brasil, do Sérgio Buarque de Holanda, algo gravíssimo
que endossa o Carl Schmitt, que é a teoria do inimigo, como se fosse
uma questão de menor importância. Não é. Esse pulo do século 19 e a
situação do ultramontanismo e do Estado brasileiro da passagem do
Império para a República é bem consentâneo com a situação geral da
Igreja e dos poderes de Estado. Mas aqui tinha essa fraqueza da Igreja: o
padroado, que funcionava a pleno vapor a contrário do que estava
acontecendo na França e na Alemanha.
A Igreja ‘se liberta’ com a República e consegue crescer com a República. Ao mesmo tempo estabelece parceria com alguns setores da República, notadamente o positivista. Quando a Igreja é afetada pelas transformações da sociedade, ela é sacudida ainda por outro processo, que é o conciliar, o do Vaticano 2º. Como é que muda – se é que muda – a relação da Igreja com o Estado após a constituição pastoral Gaudium et Spes, do papa Paulo VI?
Temos várias tentativas de entender essa
política macro da Igreja , o Weber é uma delas, e tem outros, como o
Karl Mannheim, que procuram explicar esse funcionamento externo e
interno da Igreja. A explicação do Mannheim é extremamente mecânica e eu
acho lógica de mais, mas se trata de um pensador bastante atento ao que
ocorre. Ele sempre dizia que a Igreja Católica se constitui de um
centro conservador e múltipla periferias experimentais. Se você tem uma
experiência que não dá certo, esse núcleo conservador modifica essa
experiência. Então você tem, por exemplo – vamos levar adiante a análise
do Mannheim – a Igreja no começo do século 20 fazendo a experiência dos
padres operários. Não deu certo. Os padres operários viraram
comunistas, abandonaram a Igreja. Então, corta a experiência dos padres
operários. A Igreja ensaiou um namoro com a Action Française. Não deu
certo, pois a Action Française mostrou que a razão de estado era
superior à razão da Igreja. A Igreja voltou atrás. O Integralismo aqui
no Brasil também. Há um namoro. Eu diria que a revista Ordem é uma
revista integralista e tem seus infiéis: o Tristão de Athayde era um
deles, mas o Gustavo Corção continuou nessa visão do integralismo. A
Igreja percebeu os prejuízos que um empenho integralista acarretaria
para ela quanto instituição. Esse movimento do centro para as periferias
é uma coisa que explica demais, mas não explica muito. Você pode
recobrir com fatos, mas é muito complicado você ter uma autoconsciência
tão grande do centro, pois na verdade esse centro também é cheio de
contradições e disputas. Sempre você teve, desde a instalação do
cardinalato, esse problema seríssimo de política interna da Igreja do
papado com a Cúria. Qualquer análise da Igreja sempre tem de cair nessa
questão do poder da Cúria e do poder do papa. A Igreja não tem o modelo
parlamentar que foi defendido durante o renascimento e no caso do
Döllinger. Você não tem o parlamentarismo eclesiástico, mas tem a
concentração de poderes da base da Igreja na Cúria e, conforme tem uma
hegemonia, vai para um lado ou para outro. E o papa tem de pular
miudinho conforme o caso. Aquele livro sobre o papa e o Mussolini mostra
essa dificuldade. O papa com uma tentativa voluntária de uma política e
essa política é administrada Cúria. Aqui no Brasil isso foi facilitada
pelo Estado em detrimento da Igreja. Tanto que os bispos perceberam essa
fraqueza interna da Igreja, que eles fundam a CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil) . A CNBB é um momento importantíssimo de
concentração do poder interno da Igreja e não é contra o papa. Aí tem
uma questão bastante ambígua que vem do conúbio da Igreja com
instrumentos de iniciativa do Estado. A ideia da Sudene aparece em uma
reunião de bispos com o Celso Furtado. Havia uma espécie de confiança na
ação da Igreja, que era muito retribuída. O Estado, por sua vez, tem
também suas crises. Ele não é um monobloco, por isso, tenho receio
dessas explicações sociológicas tão lógicas. O Estado vai também
sofrendo tensões internas e modificações internas. Por mais que os
liberais tenham sido vencidos, eles não foram totalmente vencidos. A
Constituição de 1891 foi um marco importante em termos de política
pública no Brasil e até hoje é uma marco que serve de referência.
Os republicanos afirmavam princípios como os da Federação, da Educação Pública, da melhoria da representação, da laicidade e da subordinação do Poder Militar ao Civil. Hoje temos ainda o desafio da inclusão social das massas trabalhadoras na divisão da riqueza e na representação política. Quais as promessas foram cumpridas pela República e quais ainda estão por cumprir?
A minha posição é bastante dura. O
Brasil não é uma federação, não é uma democracia liberal e nem é uma
democracia. E isso tem origens em nossa história. E isso tem origem no
fato de não conhecermos uma entidade chamada município. Perdoem-me
aqueles que acham que existem, mas o município é uma invenção do Império
Romano. Eram as cidades importantes para a defesa e expansão de Roma -
pois as que não eram importantes eram dizimadas e destruídas. Rom propõe
um foedus (tratado, uma aliança), uma federação e essas
cidades mantinham a sua religião, as suas finanças, a sua moeda, as suas
formas administrativas e as suas forças beligerantes. Com o
aprofundamento da federação, do foedus, foi concedido gradativamente a
cidadania romana. O mais geral resultou do mais particular. Você tem a
expansão do Império Romano por toda a Europa e tem municipalidades como
Londres, Lisboa, Paris, Lyon que são importantes, resistentes e com
prática milenar de autonomia. Quando você tem a centralização monárquica
no Estado central, o que você tem? Uma inimizade visceral em relação
aos municípios. O (Alexis de) Tocqueville explica de uma maneira muito
bonita no Antigo Regime e a Revolução essa passagem: o rei não pode
suportar a autonomia dos municípios, que é uma espécie de concorrência.
Então, ele proíbe a eleição de prefeitos e vereadores. Tempos depois,
ele vende para os municípios o direito de escolher prefeitos e
vereadores, só que, diz o Tocqueville, esses prefeitos tinham menos
poder do que um inspetor de finanças reais. A marcha da centralização é
inexorável. O que acontece no Brasil? Em 1500 estamos no auge da
centralização monárquica. Você cria entrepostos guerreiro, entrepostos
comerciais e missionários. Você não cria municípios no sentido da
realidade municipal européia, com sua autonomia, seu dinheiro e seus
costumes.
Mas pela morfologia do País, eles criam autonomia?
Exato.
Um dado que me chama atenção. É por que a Constituição europeia não foi
aprovada. Não o foi porque os municípios mais importantes a vetaram,
porque não queriam que o dinheiro deles fossem parar na Bulgária. Até
hoje tem uma presença muito forte dos municípios no cotidiano da
administração da coisa pública. Aqui no Brasil você não tem isso. Aqui
há evolução dos municípios, mas os municípios são cassados em seus
direitos e há uma superexpropriação dos impostos que ficam com o poder
central e não retornam aos municípios. Você tem uma elite local que
supre os serviços públicos. Minha mulher conta que Lorena e
Guaratinguetá mandavam muito dinheiro para o Rio. E assim ficavam sem
escola, sem hospital, sem cemitério. Aí, os fazendeiros emprestavam para
os municípios. A mão de obra era deles, era mão de obra escrava; o
material era comprado no Rio ou em São Paulo, e o dinheiro era deles. E é
claro que eles eram vistos como gente muito boa, que merecia estar no
poder. Muito rapidamente essa lógica se inverte. Se quando o município
precisa eu empresto, quando eu preciso o município tem de me emprestar. É
a famosa indistinção do cofre público com o privado. Essa realidade é a
realidade perene dos chamados municípios brasileiros. isso continuou
durante a República e hoje. Por que você acha que todo ano tem marcha de
prefeito para Brasília para ganhar mais 0,2% no Fundo de Participação
dos Municípios? Você tem uma pirâmide totalmente invertida. A federação
que deveria receber a menor parcela dos recursos vindos dos impostos ,
recebe a maior parte e distribuiu de acordo com a adesão dos municípios e
dos chefes oligarcas regionais à política de quem estava no poder no
momento, seja ele esquerda, direita, centro, alto ou baixo. Você tem uma
realidade estrutural do Estado brasileiro que não é federativa. Não tem
nada que lembre a ideia de um foedus, sobretudo a autonomia e isso se
transmite para os Estados - as Províncias não eram autônomas. Basta a
mínima observação da federação americana ou da federação alemã para ver
que aqui nós somos um monobloco jurídico. Nós dependemos até da reunião
dos santos togados para definir a vida dos municípios e de cada um...
Nos Estados Unidos, na Alemanha, cada Estado tem sua legislação própria
em termos de saúde, de educação e em termos penais. Aqui, não. Brasília
locuta,, causa finita. Tem tudo aquilo que não é liberal e não é
democrático e não é federativo. Gosto de lembrar o querido Montesquieu
quando ele está pensando na Rússia: países com enormes extensões e
populações não podem ser democrático, só podem ser despóticos. Ele
estava pesando na Catarina II, que o Diderot disse: 'Vossa majestade é
déspota'. E estragou amizade que tinha com ela. O Brasil tem isso, não é
que o presidente da República tende a ser um déspota. As instituições
federais são despóticas. Veja, não há uma questão relativa a municípios
brasileiros que não termine no Supremo Tribunal Federal. A decisão é
concentrada lá. Tem razões: os nossos dirigentes do Império tinham muito
medo de o Brasil se esfacelar em diversas repúblicas, como seus
vizinhos sul-americanos. E, de fato, justificou-se prática e
teoricamente essa superconcentração do poder central com essa
necessidade de manter a integridade do território nacional. Cumprimos em
parte essa função. Essa fronteira em parte é desprotegida, pois não
temos instrumentos autônomos para defendê-la.
A representação também um fracasso na República?
Eu
acho que sim, dada a superconcentração do poder nos três poderes. A
moda é criticar a Presidência da República e, de fato, ela tem… mas eu
sempre digo que ela é um gigante de pé de barro. Tem superpoderes, mas
depende de aprovação do Congresso e do sistema de justiça, que é
negociador e maleável. Quem é o grande filtro para que o eleitor
municipal tenha os seus desejos atendido pelos ministérios e pela
Justiça? São os senhores oligarcas. Não me diga que não tem mais
oligarquia. Não tem mais os grandes, como Antônio Carlos Magalhães, mas
tem um de quinta categoria, como o Renan Calheiros. Você tem no Brasil,
de norte a sul, a presença dos oligarcas, que são o filtro. Os
vereadores do passado tiravam do bolso e aplicavam.
E famílias?
Tem
uma família sem o poder das oligarquias regionais. O presidente quer
impor sua família em um espaço que é o das oligarquias e ele não vai
conseguir resolver isso com três medidas. Os militares não conseguiram:
tiveram de fechar o Congresso. O Congresso brasileiro foi o que menos
tempo se manteve fechado na história da América do Sul. É um poder que
sempre veio da mediação. Sempre dizem que o brasileiro não sabe votar.
Eu sempre digo para quem fala isso: se você tivesse um filho de 2 anos
que precisasse de creche na periferia, você votava em quem? Naquele que
vai trazer a creche. Essa cumplicidade é estabelecida quase que
imediatamente entre o eleitor e o mediador dos recursos. A ética
brasileira é essa. É a ética da cumplicidade forçada. O cidadão do
município é um refém. Se ele tem um prefeito que encampa causas sociais,
creches etc, ele tem no seu município uma pessoa chamada promotor
público, que desde a sua autonomia se arrogou a ser um superpoder no
município. Qualquer coisa que o prefeito faça que rompa com as
convicções do promotor público, ele ameaça com um processo de
improbidade administrativa. Veja, muita vezes você tem uma solução que
vira um problema. Essa autonomia do Ministério Público precisa ser
repensada.
E a promessa de Educação da República?
Aí
você tem uma coisa interessante, pois nem tudo que é doutrinário se
realiza na prática. Por exemplo: Primeiro ponto: que educação? Os
positivistas valorizavam a educação técnica das grandes massas para a
modernidade. Eles tudo fizeram para incentivar esse tipo de educação. Há
trabalhos que comparam a inversão de recursos em São Paulo e no Rio
Grande do Sul, governado pelo Júlio de Castilhos. Vê-se que lá era muito
maior o dinheiro investido em educação, mas em educação técnica. Aqui
precisamos pensar o que é fracasso e o que é realização de uma doutrina.
E o fracasso de uma doutrina invalida a própria doutrina. A educação de
tipo democrático e liberal teve uma vertente importante no Estado de
São Paulo. Perderam para o Getúlio, mas fizeram a USP e botaram no
brasão da USP: 'A ciência vence'. E fizeram institutos isolados de
ensino no interior de São Paulo a quem se deve a pujança do Estado no
interior. E parte desses institutos isolados, que depois viraram a
Unesp, tinham conexões com a agricultura. E no Estado de São Paulo só
funcionou porque tinha autonomia. Quando se tem um Estado com recursos
econômicos e científicos e vontade política você tem desenvolvimento.
O que seria uma posição republicana?
Você
chama a atenção da doutrina para recusar a prática fracassada. Eu não
vejo desigualdade entre amigos e inimigos e eu vejo a res pubica como
lugar da igualdade e dos direitos. Mas aquilo que é chamado de
republicano muitas vezes não é, pois está sendo a favor de determinados
interesses e grupos.
Seria o combate aos privilégios?
A
questão dos privilégios é a questão da Educação. Que privilégio e qual
educação? Há um dito do historiador Christopher Hill que é ‘liberdade
para quem? E para fazer o quê?”. São perguntas que temos de fazer. Isso é
de fato republicano ou é slogan que eu estou aplicando a uma realidade
que não é nada republicana? Democrático? Eu acho que temos uma retórica
política extremamente dogmática. Nós acreditamos que falando a palavra a
coisa ocorre. Eu pensava hoje nesse negócio da condenação em segunda
instância e estava lendo cartas de leitores de vários jornais. Muitos
insistem sobre os pobres. Entre a realidade e a consciência, como diz o
(G.W.F.) Hegel, há um intervalo. A coruja de Minerva só levanta seu voo
no entardecer. Quando fui preso, nós fomos colocados no pavilhão de
presos comuns e vários entre nós tínhamos curso universitário. Sabe como
os carcereiros resolveram? Botaram um papelão em nossa porta: 'cela
especial'. Nesse sentido, eu tenho muito acatamento ao Padre Vieira: no
Brasil não tem homem repúblico. Porque nós não temos nenhum dos
elementos que formem a liberdade e autonomia do cidadão municipal. O
poder de fora, o poder central age como o vencedor da guerra que
distribui o botim. Quando se tem uma guerra fiscal é que determinados
Estados que percebem que o poder central está levando recursos para
outros Estados e outros setores que não interessam. A Lei Kandir, existe
a lei, ela não é cumprida, e o Poder federal não paga e executa Estados
e Municípios, que são devedores e credores ao mesmo tempo. Mas o guante
está do lado do poder federal. Como vai falar de República em uma
situação como essa?
Se fôssemos fazer um novo manifesto republicano, que tipo de valores o senhor acha que deviam ser reafirmados pela pessoas?
O
primeiro ponto que eu diria é uma retomada das Luzes do século 18, que
assistiram ao nascimento de uma grande federação, que é a americana, e a
uma modificação democrática considerável em solo europeu. Eu diria que
uma proclamação fundamental será aquilo que está no texto do Diderot,
que foi copiado pelo constitucionalista americano: ‘Nós o povo”.
Primeiro ponto que eu acho essencial é deixar bem claro que a soberania é
do povo, popular. O segundo ponto é que as instituições estão a serviço
dessa soberania e não o contrário. Terceiro: para que essa soberania
popular se exerça, é necessário também o ideal iluminista da educação de
todos, a educação universal e fundamental. Não como direito, mas como
prerrogativa fundamental do exercício da soberania. Veja, autores como
Diderot - todos os autores liberais próximos do pensamento democrático -
eram favoráveis à instrução pública básica. Tanto que, na editora
Perspectiva, quando editávamos a obra do Diderot, eu fiz questão que
fosse editado o Projeto para universidade para a Rússia, onde esse ideal
está posto. O saber tem de ser de fato uma exigência do povo soberano,
pois o povo que não tem saberes não é soberano. Ele é usurpado dessa
soberania pelos indivíduos e grupos de interesse. Para que você governe,
é necessário que você tenha essas leis, que boa parte das pregações de
tipo fanático e religiosas devem ser reduzidas à dimensão do particular.
E não o que está acontecendo agora. Um coisa insuportável, mesmo tendo
uma constituição de origem republicana é ter cultos públicos em próprios
públicos. Há cultos religiosos na Câmara Municipal de São Paulo e na
Câmara dos Deputados, onde tem missa e culto evangélico. Isso tem de ser
abolido imediatamente. O segundo ponto é a separação radical de igreja e
Estado. Essa é uma teses de ordem iluminista. Sou dos pouco adeptos do
século 18 aqui no Brasil e vou continuar sendo. Um tratado que acho
fundamental em termos de educação é o do Condorcet sobre eleições. Ele
desenvolve o paradoxo de Condorcet que esteve muito em voga na reeleição
de Bush e está voltando por causa do Trump. Em uma eleição plural, com
mais de três candidatos, vence o que tem a maioria dos votos contra si. O
Condorcet diz que é preciso ter uma maneira de escrutínio mais técnico e
republicano, e o eleitor capaz de dominar o cálculo de probabilidades,
se não ele vai ser um soberano que come na mão do ministro. Esse ideal,
que foi chamado de ideal ingênuo das Luzes da educação, é um ponto
importante. Se o eleitor não condições de controlar o mínimo da educação
e da administração pública, ele está escolhendo o quê? Ele está
exercendo qual soberania?
A opção disso é a ditadura?
É
a ditadura de intelectuais, a ditadura de militares, de juristas, de
pequenas castas que se julgam elites. Inclusive a ideia de elite aqui no
Brasil é de tal maneira distorcida que não dá nem mesmo para ser usada.
Um autoritário é um autoritário. Como voltar à semântica mínima das
palavras. É uma questão prática, de vontade. isso eu aprendi com
Immanuel Kant, aprendi com Fichte, que se trata de uma questão de
vontade de verdade. Se você se compraz na mentira, se você se compraz no
mundo da ilusão, da terra plana, tudo bem, mas nós estamos caminhando
para a morte. A instrução sempre foi um requisito fundamental de
democracia e soberania. Um dos problemas mais sérios que eu vejo na
cultura brasileira é que, tanto na esquerda quanto na direita, você
desvalorizou o conhecimento. Voltando à questão dos positivistas e do
ensino técnico. Qual a última iniciativa nacional que trate das questões
mais amplas dos saberes, da técnica à cultura no Brasil? O 5 S. Depois
não tem mais nada de educação de massas. E o cinco S teve evolução
própria do Brasil. Uns deram certo, como Senai, outros nem tanto. Eis
uma etapa que já tem 50 anos. E não tem mais iniciativa nacional de
formação de massas, que compram iphone e galaxy e compram informação não
checada. E aí a repetição. E discordo quando se diz que essa massa não
tem dirigentes. Ela tem sim. Individualidades e grupos, como o Steve
Banon, tem papel importante na coordenação desse tipo de comunicação,
como na China, o Estado tem papel importante para fazer essa
coordenação. Não é um fenômeno indistinto e anônimo que se tem nesse
universo. O pedantismo era manipulado contra e a favor da Igreja
Católica. A maneira de você fazer alguém calar a boca até o século 20
era você citar 30 livros, pois aí o outro ficaria com medo. Agora você
coloca o Instagram que tem 2 milhões de seguidores. Como você vai
discutir com 2 milhões de seguidores? Você não existe. É o pedantismo
cósmico. A quantidade de autores que você punha boca agora foi
substituída pela quantidade de seguidores. Você tem razão por ter 2
milhões de seguidores. Eles são organizados.Você tem um retrocesso
civilizacional tremendo. E volto à questão, sem a educação não tem
saída. É o despotismo das massas. Das massas que não são mais massas
físicas. Não se mede mais pelo fato de o lugar ficar preto de gente, mas
pela quantidade de likes e dislikes. E aí eu sou um fã sem remissão do
Umberto Eco.
O senhor não tem o otimismo do Norbert Elias com a civilização?
Não tenho. Não tenho o otimismo do (Jürgen)
Habermas. Eu acho que diálogo é uma coisa, mas quando você tem forças
agindo, o diálogo cessa. O poder é uma questão de força. Se você não usa
a força, alguém vai usar. Nesse sentido eu sou muito do século 18 e
muito do Maquiavel. Eu acho que a idealização do Habermas da coisa
pública, aquilo é coisa de anjo, aquilo não é a República dos homens. O
Rousseau dizia que a democracia é o poder que cabe aos anjos e os mais
angélicos são os anjos do Habermas. Eu entendo porque ele propõe essa
solução, a via do diálogo, porque ele está saindo de dois totalitarismo,
o soviético e o nazista. Eu entendo, mas..
E como não cair em algo subjetivo e arbitrário ao estabelecer o que é o imperativo categórico, sem ancorá-lo como Habermas faz, no diálogo?
Veja,
o imperativo categórico supõe o juízo e o juízo supõe a passagem
estética das informações. Se você não tem esses elementos, no processo
educativo, você não tem como atenuar a força. O Kant tem uma passagem
que acho excepcional. Acaba com o Summerhill em três minutos. Como a
gente tem de ensinar o menino e a menina agir livremente: dá um pedaço
de pau na mão dele ou dela e manda esculpir uma figura. Ele descobre
rapidamente que ele precisa obedecer a estrutura do pedaço de pau para
aplicar àquela estrutura o que ele quer. Ele precisa de obstáculo para
exercitar a vontade a inteligência. Quando tudo é dado, praticamente é
dado esse aparelho (celular) você não sabe o que custou em termos de
tecnologia e extração de minérios para fazer máquina, e aprende que tem
de fazer assim e assim, e põe a senha e solta o verbo inculto para todo
mundo, e se acha de uma originalidade infinda, mas são repetições de
bilhões da mesma tolice contente toda a vida.
O diálogo não é uma tentativa de substituir o que há de arbitrário na subjetividade?
O
diálogo pressupõe a oposição das vontades, se não, não é diálogo. O
Maritain tem uma frase maravilhosa. A Salomé dançava para os festeiros
do Herodes, mas agradava. Saltava e placuit. Saltava e agradava. Não
dizia que os amava ou dialogava com eles. É sintomático que a forma de
comunicação é like e dislike. Você não pergunta por que está gostando,
se o sujeito disse o diabo da outra horda, do seu inimigo, esse é um
ponto interessante de sincronia, na mesma momento – (Elias) Canetti estabelece a diferença entre horda fuga e horda de perseguição (em Massa e Poder)
–, mas na internet a mesma horda que está perseguindo está sendo
perseguida. Se está no site dos amigos do PT, os canalhas do PSL são
horrorosos e os bolsonaristas também. Ou seja, não há diálogo possível,
não há comunidade léxica vocabular, salvo nesse sentimento primitivo que
é o ódio e que é uma forma de vontade. E aí volto à questão clássica da
filosofia: para que você tenha governo é necessário um mínimo de filia
entre os governados.
O processo da educação não é um processo lento e demorado demais?
Infelizmente
é. É um processo de centenas de anos. O salto tecnológico do século 20 é
algo fantástico, proporcionado pela internet. Foi preparado por
centenas de anos. Essa é a rapidez tecnológica: rapidamente nós nos
apropriamos dos livros e rapidamente nós nos apropriamos desses meios de
comunicação. A diminuição da taxa de pedantismo é muito complicado e
foi preciso muito trabalho de crítica e de luta. E, no caso da internet,
vai precisar da escola e de um monte de coisa.
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