Flores

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segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Fragmento de um prefácio às Obras de Giordano Bruno programada pela Ed. Perspectiva. O texto inteiro está com a Editora e não é possível saber se a edição será publicada. Em tempos de pandemia e de perseguição à cultura, Bruno não é a elhor opção dos negacionistas governamentais. Roberto Romano

 Giordano Bruno. 

Um pensamento digno das Bacantes. Tal frase é dita por Hegel ao comentar os textos de Giordano Bruno. Logo a seguir o filósofo indica que as publicações esparsas do peregrino dominicano seriam idênticas às que pertencem  ao misticismo fanático (Schwärmerei), algo a ser afastado pela ciência. ([1]) Tais retratos têm fabricação datada e serviram para capturar as figuras mais controversas da modernidade, de Bruno a Spinoza. Tendo como base hipóteses antigas, retomadas na polêmica entre Lessing e Mendelssohn sobre o suposto panteísmo spinozano, Jacobi edita trechos selecionados evocando o escrito intitulado A Causa, Principio e Uno. ([2]) O equívoco sempre ronda a filosofia e a sua hermenêutica. Assim, muitos “ismos” são fabricados para glória da taxinomia aristotélica e alegria dos bibliotecários.. O panteísmo atribuído a Spinoza, que ricocheteia na leitura romântica de Giordano Bruno, é lugar comum pouco demonstrado, muito difundido sem sofrer a crítica estrita dos textos.

 

Jacobi amplia a suposta doutrina com antecedentes polêmicos trazidos do século 17, por exemplo, os ataques de Pierre Bayle. Dada por estabelecida a forma de pensamento panteísta em Spinoza, predecessores de tal figura noética são procurados. Assim, Bruno teria previsto a substância infinita de spinozana. Do predecessor delirante, brotam os descendentes românticos e idealistas como Schelling, Coleridge, e outros. Apesar de todo interesse votado por Hegel ao pensamento de Bruno,  sua atitude é clara: trata-se, para ele, de uma divagação onírica,  ou oceano revolto de pesadelos. Notemos que, de início,  Hegel julga honrar nosso herói com o qualificativo trágico trazido pelo teatro de Eurípides. Na sua obra de juventude, fronteira de uma filosofia contrária ao romantismo, Hegel define a própria verdade como dança onde deliram as bacantes. ([3]) 

 

Além do teatro, com a lembrança de Euripides em seu momento mais pungente, as Bacchae, na qual a dissolução dos corpos e das mentes atinge um ápice insuportável, Hegel atribui a Bruno uma outra forma cultural, agora o neoplatonismo. Uma fonte de Bruno seria Proclus, o místico que ajudou a levar adiante a reação contra a estrutura platônica do universo e da alma. A busca do Uno, que Hegel identifica em Bruno, teria sua origem especulativa em Proclus, para o qual “a inteligência é algo substancial que, na sua unidade a tudo contem : a a vida é o criador, o produtivo, a inteligência como tal é precisamente este algo que a tudo inverte, que faz tudo retornar à unidade”. E assim, temos a tese sobre o spinozismo antecipado de Bruno: “seus pensamentos filosóficos”, adianta Hegel, “somados ao entusiasmo pela natureza, por sua divindade, e pela presença nela da razão (…) são assim em geral uma filosofia spinozista, panteísta”. O universo para Bruno seria “um animal infinito no qual tudo vive e se move de maneiras diversas”.

 

A legenda de certo Bruno spinozista avant la lettre segue continua após Hegel na História da Filosofia. Um autor relevante para o pensamento materialista do século 19, Ludwig Feuerbach, ([4]) repete a tese panteísta, dando como base a substância de Spinoza. ([5]) Naturalmente, a referida substância é vista sob a optica hegeliana, como  infinitude que serve como base do Espirito. No caso de Feuerbach, ao contrário de Hegel, o espírito humano natural, não o divino. O leitor não está ainda livre, nestas considerações sobre a tradução de Bruno pela Editora Perspectiva, do idealismo alemão e de suas querelas contra as figurações românticas. Tal desvio de rota se justifica e as razões as darei adiante.



[1] Hegel, G.W. F. : “Bruno” in Vorlesungen über der Geschichte der Philosophie.  Frankfurt am Main, 1970, Werke in zwanzig Bänden, Suhrkamp Verlag, 20, T. III, p. 24.

[2] Nesta edição, página ? e seguintes.

[3] Das Wahre ist so der bacchantische Taumel, an dem kein Glied nicht trunken ist, und weil jedes, indem es sich absondert, ebenso unmittelbar auflöst, – ist er ebenso die durchsichtige und einfache Ruhe”.  “O verdadeiro é o frenesi báquico, no qual nenhum membro foge da embriaguez,. Como cada membro se dissolve imediatamente ao separar-se da roda, tal frenesi é ao mesmo tempo um repouso translúcido e simples”.  Note-se na frase o termo, oriundo da química imperante na época : Auflösung. A dissolução trágica do Todo mostra o trabalho do negativo, da morte e do sofrimento. Bruno, um pensador atormentado, teria intuido o movimento substancial da natureza e do divino. Hegel não precisaria de muito esforço para traçar, anacronicamente, o retrato do Nolano romântico que ainda hoje resiste em estudos especializados sobre sua filosofia. Cf. Hegel, G.W. F : Phänomenologie des Geistes, Werke in zwanzig Bänden, Shurkamp Verlag, 3, p. 46.

[4] Vorlesungen über die Geschichte der neueren Philosophie, von G. Bruno bis G.W.F. Hegel (Erlangen, 1835, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1974.

[5] Tomasoni, Francesco: Ludwig Feuerbach : Entstehung, Entwicklung und Bedeutung seines Werke ( Münster/New York, Waxmann Verlag GmbH, 2015) p. 150.

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