A comparação da existência humana com o teatro é figura retórica batida na cultura ocidental. Já no tratado sobre As Leis (644 d-e) Platão move o simile em sentido cênico. O debate platônico ganha força no tema da escolha pelas vias do bem e do mal. “Concordamos” diz o ateniense “que se os homem são capazes de governar a si mesmos (ἄρχειν αὑτῶν ) eles são bons, mas se incapazes são maus”. Vamos usar uma ilustração para explicar o fato, adianta o ateniense. “Cada não um possui dentro de si dois antagonistas e loucos conselheiros, o prazer e a dor?”. E além disso “cada um possui opiniões sobre o futuro, cujos nomes gerais encontram-se nas “expectativas”; e o que precede a dor é chamado medo e o que precede o prazer chama-se confiança e ademais de tudo isso há o ‘cálculo’ que diz qual deles é bom, qual ruim; e o ‘cálculo’ quando se tornou um decreto público da polis (δόγμα πόλεως) chama-se ‘lei’(νόμος) ?”.
Até aqui temos os conceitos que se tornaram a essência da ordem política ocidental e vigoram até hoje. O verbo “governar” tem o sentido plural de ordenar o coletivo e cada indivíduo, refreando as paixões de massas e lideranças rumo ao sucesso ou ao desastre, o prazer e a dor. E também aqui surge algo que muita gente imagina ter sido inventada por Imanuel Kant: a autonomia da vontade frente às leis do Estado. O estado de alma que implica flutuação (algo importante na ética spinozana) também entra no quadro descrito pela soberbo escritor Platão. Trata-se da confiança traduzida em expectativas. Mas o principal é o elemento do cálculo, algo nuclear em toda política. Líderes que não calculam perdem o poder. Mas também multidões desprovidas de calculo são obras de pura ficção. Só é possível mandar em massas após o calculo das paixões dominantes entre os governados. Estes últimos só obedecem porque avaliam os riscos e benefícios trazidos pelas lideranças. A lei é o cálculo de todos que se tornou uma certeza, dogma da cidade. Só no pequeno trecho das Leis temos assunto para muitas dissertações. Passemos adiante.
Logo após ter nomeado a lei, alma do corpo social e político, Platão remete o leitor para o plano cósmico ou divino com a metáfora do teatro. “Vamos supor: cada uma das criaturas vivas é uma engenhosa boneca dos deuses, movidas como brinquedo por eles ou para um propósito sério – porque de tal assunto nada sabemos. Mas sabemos que as afecções internas a nós, como se fossem molas ou cordas (νεῦρα) nos movem e, sendo opostas umas às outras, puxam umas contra as demais em atos opostos; ai reside a linha divisória entre bondade e maldade”. No livro Sétimo das mesmas Leis, Platão insiste: “o homem é um joguete nas mãos de Deus, e tal é a sua melhor parte”. Ao retomar o símile do boneco Platão afirma: trata-se de um assunto sério, mas sério do que tudo o que é sério. No Filebo (50b) temos a fórmula do problema: “mostramos que nos lutos e tragédias e comédias, não apenas nos palcos, mas em toda tragédia e comédia da vida, e em inúmeras outras coisas, a dor se mistura ao prazer”.
Os cínicos, escola mais caluniada de nossa cultura, tornam o tema algo comum, quase banal. Rudolf Helm assinala o uso da metáfora nos textos de Luciano, a grande fonte da sátira na história do Ocidente. ([1]) Ernst Curtius acrescenta uma lista avantajada de autores clássicos e cristãos que aludem ao ícone do teatro na ordem pública. Interessa sobretudo o monumento escrito por João de Salisbury –o Policraticus– referência obrigatória quando se trata do tiranicídio. O autor ajudou a expandir a sentença sobre o theatrum mundi. A técnica do artista, o fingimento, desempenha função relevante nas lutas contra o poderoso cujo mando pode ter origens legítimas ou não. O indivíduo ou grupo que almeja matar o governante abusivo deve fingir como no teatro. No livro 3, capítulo 15 daquele tratado, o autor se ocupa com o tirano por usurpação que tomou o poder por astúcia e violência. “Devemos viver de um modo com o amigo, de outro com o tirano. De qualquer modo, não convêm adular o amigo, mas é lícito acariciar (mulcere) ( ) as orelhas do tirano. Pois é permitido lisonjear a quem é permitido matar. Não apenas é lícito matar o tirano como é equitativo e justo. Quem toma o gladio é digno de matar pelo gladio. Mas por ´tomar´ se entenda : quem o usurpa por sua própria temeridade ou recebe de seu senhor o poder de o utilizar. Quem recebe de Deus o poder conserva as leis, é servidor da justiça e do direito. Quem o usurpa rebaixa os direitos, submete as leis à sua vontade”. Não só o tirano usurpador pode ser morto, mas também o legítimo cujo exercício vai contra a lei e a justiça. O tirano “oprime o povo de modo violento (...) a lei é dom divino, forma de equidade e justiça, imagem da vontade divina, guardiã da salvação, fortaleza dos povos, regra das magistraturas, exclusão e termo dos vícios, pena contra a violência e toda injustiça (...) O príncipe combate pelas leis e pela liberdade do povo, o tirano acha que nada se faz se não se rejeita as leis e não se leva o povo à servidão. O príncipe é imagem da divindade mas o tirano figura a força contrária, a perversidade diabólica”.
A adulação, forma desprezível de comportamento político, se justifica pela prudência: dissimular sentimentos importa para conseguir a confiança do governante ilegítimo. É o teatro a serviço da justiça. Curtius adianta a seguinte consideração sobre a contínua presença da metáfora teatral, incluindo aí o célebre trecho de As you Like It
[1] Helm, Rudolf: Lukian und Menipp (Leipzig, Druck, B.G. Teubner, 1906; Romano, Roberto: Silêncio e Ruído, a Sátira e Denis Diderot (Campinas, Editora Unicamp, 1999). A fonte imediata das reflexões acima encontra-se no clássico de Ernst Curtius: Europäische Literatur und lateinisches Mittelalter (A Franche A.G. Verlag, 1948). Uso a edição francêsa : La littérature Européene et le Moyen-Âge latin(Presses Universitaires de France, 1956).
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