Suprema subserviência
Quando a autoridade é perdida, um Poder deve sorver até a última gota da abjeção
*Roberto Romano
10 Dezembro 2016 | 03h32
O Supremo Tribunal é conhecido como Corte política. Não
raro se excede na faina de agradar ao Executivo e ao Legislativo. Em sua
história os brasileiros encontram sentenças que envergonhariam qualquer
toga do planeta.
A Constituição de 1934 proíbe tribunais de exceção no capítulo 2,
25: “não haverá foro privilegiado, nem tribunais de exceção”.
Instaurada o Tribunal de Segurança Nacional, o deputado João Mangabeira
apresenta recurso ao Supremo. Por voto unânime os juízes declaram o
invento tirânico “em perfeito acordo com a Constituição da República”.
Um atalho na Carta permite a hermenêutica liberticida: “admitem-se,
porém, Juízos especiais em razão da natureza das causas”. E a bênção dos
magistrados é concedida sem data venia. O referido
tribunal persegue 1.420 pessoas: 533 no Distrito Federal, 222 do Rio
Grande do Norte, 165 em São Paulo, 95 em Pernambuco, 85 da Bahia. Entre
os “julgados”, Armando Sales, José Antônio Flores da Cunha, João
Mangabeira, Otávio Mangabeira, Luís Carlos Prestes, defendido pelo
grande Sobral Pinto. No caso de João Mangabeira ocorre façanha incomum
na história jurídica internacional: empatada a decisão, o presidente
Barros Barreto decide contra o réu. O Supremo Tribunal Militar corrige
em parte o escândalo e concede habeas corpus ao parlamentar.
Depois vêm as manobras em prol do parlamentarismo, com a demissão
de Jânio Quadros. O STF se cala, apesar do notório golpe aplicado por
militares. Em 1964, o mesmo silêncio tíbio quando Hermes Lima e Evandro
Lins e Silva são expulsos da Excelsa Corte pelo governo de fato. Procura
em vão quem busque nos anais daquele colégio uma nota mais dura contra o
AI-5, que suspende o habeas corpus em casos de crime político e contra a
ordem econômica, a segurança nacional, a economia popular. Tais crimes
são tipificados com pressuroso auxílio de quem redige uma Constituição
como a Polaca, o notório Francisco Campos. Nada relevante é dito pelo
Supremo contra a censura prévia em jornais, revistas, livros, peças de
teatro e músicas.
E seguimos a trajetória pouco sublime do Supremo. Por exemplo, no
apagão do período FHC. Questionada a constitucionalidade da multa (os
usuários não eram responsáveis pela imprudência governamental, que não
providenciou melhorias na rede), os juízes do STF definem que, sem
penalidades pecuniárias, os cidadãos deixam de colaborar. Logo… Na
reforma da Previdência sob Luiz Inácio da Silva, Joaquim Barbosa, o
herói da futura Ação 470, decreta em seu voto que “não existem direitos
adquiridos, caso contrário ainda estaríamos em regime de escravidão”.
Nenhuma data venia é apresentada por seus pares contra o sofisma, de enrubescer estudantes ainda no primeiro ano acadêmico.
O que acontece na tarde de 7 de dezembro de 2016 ressuscita o
velho serviçal dos outros dois Poderes, com resultado ainda pior para os
togados. Sob o ultimato de Renan Calheiros e do governo – chantagem
solta, pois sem a vitória de Renan surge a ameaça de não se votarem
cortes orçamentários – o Supremo se coloca como trampolim para ações
contrárias à cidadania que lhe paga e a quem deve servir.
Antes de continuar, uma reflexão. Illibatus, a, um,
no latim maltratado pelos membros do STF, tem o sentido de algo ou
alguém íntegro, inteiro, completo, ao qual nada falta, não enternecido
pela perversão ética. Como o candidus, do qual se origina o
atual “candidato”, o vocábulo indica a propriedade de não ser
conspurcado, de seguir um parâmetro virtuoso. Illibatus designa um ser sem travestimentos, enfeites, dissimulação. Seu antônimo é o termo improbus, aplicado a quem “comete uma falta contra a fides, sendo o equivalente de iniustus. A improbitas é a ruptura da fides, é o defeito de quem não honra promessas e corresponde ao francês malhonnêteté”. (J. Hellegouarc’h: Le Vocabulaire Latin des Relations et des Partis Politiques sous la République).
No Brasil, todo cargo público exige do candidato a “ilibada
reputação”. Esta lhe concede a efetividade plena do múnus encerrado no
ofício. Ninguém pode exercer uma função em fatias, pois tal fato seria
improbidade ética e política. Como, então, os juízes do STF guardam
Renan Calheiros no cargo de presidente do Senado, mas lhe retiram o
direito e o dever de substituir o chefe do Estado? Ocorre aí improbidade
de alguém. Ao ser empossado como senador, aquela pessoa promete cumprir
fielmente tudo o que seu cargo exige. Como não pode cumprir tal
promessa, existe improbitas de sua parte. E tal coisa é autorizada, ou melhor, sacralizada pelo guardião da Carta Magna?
Outro problema: Calheiros não pode substituir o chefe do
Executivo porque é réu e, portanto, sua reputação não é inteira, é
quebrada por algo muito grave. Mas numa República democrática o soberano
é o povo. Renan não pode assumir a Presidência, mas pode legislar para
os cidadãos, obrigando-os a cumprir normas das quais ele mesmo é acusado
oficialmente de se abster? Para os juízes do STF, quem é mesmo o povo? A
presidente Cármen Lúcia, num rasgo agora provado como demagógico,
proclama ao ser empossada algo assim como “Sua Excelência o Povo”.
Triste excelência, obrigada a seguir leis definidas por quem a elas não
obedece! O competente e sério jornalista José Nêumanne Pinto define a
decisão do fatídico dia 7/12 como “cusparada no povão”. Ele é muito
gentil com os integrantes da Suprema Corte.
No espetáculo de subserviência o STF faz mais: retoma sua amarga história de instrumentum regni.
Esquecem os magistrados: quando a autoridade é perdida, um Poder deve
sorver até a última gota da abjeção. A Câmara dos Deputado prepara
medidas contra as sentenças do STF. A continuar o sumiço de sua própria auctoritas, aquela Corte logo terá membros seus nas penitenciárias. Por ousar a condenação de larápios do dinheiro público.
O realismo político à custa da cidadania sempre termina em tragédia. Ou comédia.
*Autor de 'Razão de Estado e Outros Estados da Razão',Editora Perspectiva
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