A polissemia domina a maior parte dos discursos
políticos, sem que os seus locutores dela tenham consciência. Assim, quem se coloca no plano liberal,
afirma “a” liberdade em sentido unívoco. Olvida que existem várias liberdades,
inclusive a de negar a livre opção alheia. Vocábulos como justiça, igualdade,
esquerda ou direita, cobrem amplas redes semânticas, mas os militantes de um ou
de outro partido imaginam a sua integridade, desde que empregadas no círculo
dos que salvam a Nação, o Povo… Em nossos dias, fala-se de golpes e ditaduras.
E são esquecidos usos dos termos no passado recente. Tomo um só exemplo, o de
Lenine pai da esquerda. Poderia indicar outros exemplos, da direita ou do
centro. Mas como a esquerda está no governo (não no poder…) vale a pena
recordar seus ditos e feitos.
Lenine tinha pronta a doutrina sobre a ditadura. Para
ele, as leis do marxismo seriam necessárias como as naturais. Não seria
preciso, para o golpe que instaura a ditadura proletária, legitimidade institucional
ou das massas. Recorda Dominique Colas (“Lenine e a ditadura do Partido Único”
em M. Duverger, Ditaduras e Legitimidade, 1982) que em julho de 1918 ele manda
fuzilar ou deportar centenas de prostitutas que levam os marinheiros e oficiais
para os bares, para prevenir sublevações em Nijni Novgorod. Em agosto, ele exige a abertura de um campo
de concentração para aplicar “o terror de massa” sobre padres, guardas brancos,
kulakes. (Obras de Lenine, Editions Sociales de Paris, 1959, volume 44). Em
dezembro do mesmo ano ele se queixa de Maria Spiridonova, líder dos socialistas
revolucionários de esquerda, o que resulta na internação psiquiátrica da mesma
pessoa, uma das primeiras internadas pelo regime. Lenine assimila o cívico e o
policial : “o bom comunista é o bom techkista”. Importante o artigo 58 do
Código Penal que justifica o terror contra a oposição em 1922 (Obras, vol. 33)
Seguem a supressão da liberdade de imprensa, de associação, de reunião. “A
ditadura é um poder que se apoia diretamente na violência e não é ligada por
nenhuma lei. A ditadura revolucionária do proletariado é poder conquistado e
mantido pela violência, que o proletariado exerce sobre a burguesia”. (Obras,
vol. 28) O golpe de Estado se justifica, não se legitima porque confiar no
Congresso dos Sovietes “é uma ilusão constitucional”. (Obras, vol. 26) Nada de
vãs confiança nas leis. A solução correta e científica encontra-se na força:
“seria nossa perda e puro formalismo esperar o voto indeciso de 21 de outubro;
o povo tem o direito e o dever de decidir tais questões não por votos mas pela
força; o povo tem o direito e o dever, nos momentos críticos da revolução, de
guiar seus representantes, até os melhores, em lugar de os esperar”. (Obras,
vol. 28)
Em O Estado e a Revolução a máquina opressiva do Estado burguês é desmantelada
pela ditadura proletária. Mas com o poder ditatorial proletário, o Estado não
tende a ser dissolvido. A culpa é do proletariado, preso nas malhas do atraso
feudal, das camadas pequeno burguesas, cuja figura maior é o kulak que é preciso eliminar. (Obras, vol. 28) Em 1918 ainda, ele
responde as críticas dos mencheviques e comunistas de esquerda sobre o seu
autoritarismo ditatorial, críticas nas quais eles recordam César e Napoleão 3º.
No texto “As tarefas imediatas do poder dos sovietes” (Obras, vol. 27) Lenine
prova que não há incompatibilidade entre ditadura pessoal no poder soviético. A
ditadura pessoal foi na história “ o agente da ditadura das classes
revolucionárias”. A ditadura jacobina foi compatível com a democracia burguesa.
E chega a negativa do que afirmara O Estado e a Revolução: como não se definem como anarquistas, os soviéticos
aceitam os constrangimentos do Estado para ir do capitalismo ao socialismo. Não
há, pois, contradição alguma entre a democracia soviética e a ditadura com
recurso ao poder personalizado. (Obras, vol. 27)
A ditadura é técnica que organiza o político de
maneira eficaz. A ditadura continua, no Estado, o que se efetiva nas fábricas :
“é preciso dizer que toda grande indústria mecânica, que constitui justamente a
fonte e a base material de produção socialista exige uma unidade rigorosa de
vontade, absoluta, que regula o trabalho comum de centenas, de milhares e dezenas
de milhares de homens” (Obras, vol. 27) A fábrica é o modelo proposto por
Lenine para o partido e para o Estado. Ao se organizar e organizar o social, o
militante “adquire uma vontade única do milhar, da centena de milhares ou do
milhão de militantes de vanguarda, que se torna a vontade da classe”. Mesmo em O
Estado e a Revolução, a ditadura teria por alvo fazer da sociedade “um
só escritório, uma só fábrica”. Ela deve ser exercitada pelo partido que tem o
mesmo fim, o funcionamento da usina política.
A organização é tudo. A massa e o proletariado são
movidos pelo partido. “Sem a organização a classe operária é zero”, afirma
Lenine. (Obras, vol. 19) Importa, para aquele tipo de pensamento, a equação :
classe proletária=Partido=poder soviético.(Obras, vol. 44) Mas o que fazer com
os operários opostos ao golpe de
outubro, os insurgentes de Kronstadt e tantos mais? A ditadura não é feita para
reunir os inimigos em aliança, mas para os eliminar. Igual receita vale para os
refratários, mesmo se eles pertençam ao proletariado, em cujo nome a ditadura
foi instituída. Se os tipógrafos se erguem contra o “seu” poder, eles devem ser
eliminados como…insetos. E vem o que une Lenine e os fascismos nas campanhas
pela “depuração”. No caso do nazismo, tratava-se de depurar a raça branca dos
supostos parasitas (judeus, ciganos, homossexuais e outros). Em Lenine trata-se
de depurar a classe em si de todos os que a impedem de se tornar “para si”,
submetida à disciplina e à liderança dos dirigentes, e do ditador supremo. Assim,
os tipógrafos que se levantaram contra o partido são ditos, por ele, “insetos
nocivos” a serem eliminados. No texto “Como organizar a emulação?” ele lista
todos os piolhos e assemelhados que devem desaparecer : os ricos, os
vagabundos, os operários que não se submetem ao partido, os “intelectuais
histéricos”. Todos esses setores são apenas sujeira que deve ser limpa. O meio
de fazer tal limpeza encontra-se nos fuzilamentos, nas deportações, nos trabalhos
degradantes. A ditadura deve limpar (cistka) as instituições feudais. A
ditadura leninista repousa sobre a destruição do outro, ela pretende possuir o
monopólio da verdade. A “legitimação” é fornecida pela força, pelo terror
institucionalizado em proveito do partido.
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