Quando se fala na crítica
do pedantismo, o ponto cultural e política de referência é o Renascimento.
Definidas as técnicas da impressão, editores e acadêmicos lançam a corrida ao
livro, à fama, aos lucros. A passagem de manuscritos gregos e romanos ao prelo,
seu trabalho de escrita na análise filológica e histórica, demandam imenso
labor coletivo. Mas tudo é feito tendo em vista a venda dos volumes, seja aos
potentados do poder, aos donos das finanças, aos proprietários das religiões,
em especial a protestante com a Biblia. Gradativamente o livro se “democratiza”
e atinge setores cada vez mais amplos, anunciando a nova era científica,
humanística, estatal.
Entre os ávidos consumidores
das letras surgem indivíduos que delas se nutrem mas, sem equilíbrio
psicológico ou social, se empanturram. A figura do pedante é o elemento perene
da ironia intelectual, do século 16 aos nossos dias. Ainda na Encyclopédie,
Diderot afiança que o pedante é alguém “de uma presunção gárrula que fadiga os
outros com o exibicionismo de seu saber em todo gênero, e pela afetação de
estilo e maneiras”. Seriam os pedantes os culpados da má fama das letras, assim
prejudicando a erudição correta.
O avanço técnico trazido
pela imprensa foi um salto enorme em termos civilizatórios. Permitiu descobrir
os pretéritos (do Ocidente, do Oriente) e o futuro, com invenções ou
apropriações de saberes já existentes nas sociedades as mais diversas. As novas
propostas de estudo cosmológico na física, nas matemáticas, na geografia, na
medicina, na arte náutica, etc., mudaram a face do mundo humano e natural, nem
sempre para a melhoria ética, como constataram escritores que seguiam Erasmo,
um pouco mais tarde Pascal e outros.
A critica do pedantismo
seguiu a primeira via citada, a do uso errado da erudição para exibicionismos
que, não raro, traziam o ridículos aos seus autores. Tal é a via seguida por
Montaigne. A outra, segue o caminho de Francis Bacon, amigo das técnicas, das
máquinas e acérrimo adversário dos saberes livrescos.
Montaigne critica o
pedantismo porque ele é um jeito de “mobiliar a cabeça com a ciência”.
Mobiliar, sabemos, tem o sentido de repetir na mente procedimentos costumeiros,
institucionais. A memória entra no aprendizado pedante. Nada que não tenha sido
o ensino de Giordano Bruno, assumido pelo jesuíta Mateo Ricci, tal como relata
Francis Yates. Mobiliar, alojar na própria cabeça fórmulas estabelecidas, o
ponto define uma concepção espacializada do saber, o que dele extrai a sua
ponta aguda, o entendimento, ou wit, “uma alma mais viva e desperta”diz
Montaigne. O conhecimento pedante diminui o vigor intelectual, atenua a força
do pensamento devido ao descanso no que foi forjado pelos escritores
pretéritos. De tanto viver com o mundo passado, o pedante se torna estranho às existências
presentes, tornando-se ridículo. Professores pedantes recebem salários por
tornar a consciência dos alunos pesada de citações, piores. O aluno pedante
recebe e faz circular certa moeda “inútil para qualquer uso”senão o
exibicionismo acadêmico ou social. Um
livro na biblioteca ou na memória é algo externo ao intelecto, ao juízo
próprio. Além disso, eles pode trazer a vaidade, a tolice de um saber vácuo. O
essencial, adianta Montaigne numa sentença que será mantida por I. Kant,
encontra-se no juízo. Quem dele não é assistido, dirá ainda Kant, é o perfeito
idiota. O pedante não faz experiências, ele repete as alheias, sendo marcado
pela opinião, a famosa doxa exorcizada nos diálogos platônicos.
Repetir ou inventar? A
oposição, na qual Montaigne prefere o segundo termo, encontra em Francis Bacon
uma outra via, que também valoriza o intelecto, mas o encaminha às novas formas
técnicas do saber. Segundo Bacon, Aristóteles o ditador escolástico, adequava o
mundo à sua lógica e não vice-versa. Donde a inanição do saber por ele
representado. Assim, vem a invenção do Novo Organum, no qual se procura indicar
o caminho da indução, ou seja, a saída da mente para o mundo externo. Bacon
critica o perene onanismo dos intelectos votado ao saber pedante. Nele, os acadêmicos
admiram o próprio espirito e dele não saem. Duas vias existem na ciência: a que
vai da experiência aos axiomas muito gerais. A outra se eleva da experiência
aos axiomas que se tornam gerais gradualmente. É preciso, para chegar ao saber,
tornar a própria inteligência uma tabula rasa, da qual os preconceitos (os
idola) seriam afastados pouco a pouco. Um espírito pode ser potente, mas se não
passar pela experiência, seu exercício pouco ajudará a humanidade. Para
desenhar um círculo perfeito é preciso virtuosismo sobre humano. Mas se usamos
um instrumento, como o compasso, todo
ente humano pode efetivar o referido círculo. O método é o instrumento que,
inventado em certa época, pode se aperfeiçoar, democratizando o saber, a sua
comunicação.
Deixo o Renascimento e
recordo um dos mais importantes etonólogos do século 20, André-Leroi Gourhan.
No seu entender, “o técnico comporta-se frente à matéria, que
ele ataca, em função de certos meios de atividade, do mesmo jeito que o ser
vivo, no interior de seu meio”. Só há produção para o ente vivo, para a
técnica, para as sociedades, sob constrangimento. A evolução transforma o
constrangimento em tendência adquirida pela espécie. As faculdades do cérebro e
das mãos, em milênios, se tornam tendências inconscientes, mas ativas nas
sociedades.
O instrumento é conseqüência da mão. “O homem não é um resultado, ele é
um produto, e mesmo seu produto, um ser que soube e pode acomodar sua
contingência, aproveitar a si mesmo e ao meio”. A humanidade vive, desde época
remota, no “meio técnico” cuja tendência é substituir o natural.
Nenhuma técnica existe isolada e toda sociedade é politécnica. O
instrumento ou processo ausente num coletivo humano encontra-se em outro,
premido à sua invenção pelos desafios naturais. São fatos diferentes “ter” um
instrumento e “fixar” o mesmo instrumento. Só na segunda via o objeto é
“digerido” pelo meio, “integrado ao seu capital, porque é harmônico à
politécnica preexistente ao grupo.” (Guérin). Entre a vida e a morte, o
instrumento técnico possibilita uma tripla sequência comportamental (agressão,
aquisição, alimentação), de preensão (lábio-dental, digito-palmar, interdigital
e projeção), de percussão (dentária, manual, unguear). Para quem se apresta a olhar o ente humano
com as lentes da etnologia, portanto, nada surpreende quando se trata de
perceber os acréscimos trazidos ao corpo e à mente pelas próteses avançadas de
nossos dias. Se nós mesmos somos o resultado técnico de nossa atividade
corporal, quando novos instrumentos auxiliam a aumentar nossa força e poder
sobre o universo e sobre a sociedade, tal fenômeno inscreve-se numa
continuidade milenar, durante a qual produzimos o que entendemos como homo
sapiens.
O que ocorreu, e me aventuro a parafrasear Gourhan, com o pedantismo?
Muitos conseguiram “ter” o novo instrumento, o livro impresso, mas poucos o
conseguiram “fixar”, digerir. O número dos que usam livros e pouco fixam
tendências profundas em matéria científica, técnica, humanística se mantêm
constante. A voga de edições de divulgação ou aparato exibicionista de ciência
cede o passo aos escritos de auto-ajuda, romances levemente pornográficos,
biografias, etc. Em 2013, na Europa, os números eram aproximadamente os
seguintes, em termos editoriais: Inglaterra 184000, Alemanha 93.600, França
66.530, Espanha 76430, Itália 61100, para os mais importantes mercados. Os
elementos são fornecidos por Jakub Marian. Outro colaborador de site
especializado marca: em 2013 na França os campeões de vendagem são Asterix,
algo previsível, e três livros contendo os 50 matizes de cinza, 50 mais claras,
50 mais sombrias. 25 % dos livros vendidos eram romances, 21% de juventude, 13%
de turismo, 8% escolares, 6% quadrinhos, 6% de aperfeiçoamento docente.
As edições eletrônicas, em 2014 na França, cerca de 8, 300 milhões de
livros foram “baixados”. Havia 1 milhão de compradores de livros contra 26
milhões de livros impressos, Cerca de ¾ dos compradores de livros eletrônicos,
também comprarm livros físicos. Mas o livro eletrônico representa apenas 1/6
dos negócios totais do livro, e 2/4 dos volumes de venda.
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