Flores

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quarta-feira, 26 de abril de 2017

Quando os políticos preparam a kei contra o abuso da autoridade, que ameaça real ou aparentemente os juízes e promotores, recordo o texto que li para os magistrados de Pernambuco, sobre a independência do judiciário.



II Congresso Estadual dos Magistrados de Pernambuco.

Dr. Roberto Romano da Silva
Unicamp.

Ementa
O longo texto que segue tem um núcleo lógico concomitante a um outro núcleo, o histórico.  Segundo o plano lógico, a independência dos juízes depende da real isonomia dos poderes no Estado. No plano histórico, a nossa gênese enquanto Estado exigiu a diminuição do Legislativo e do Judiciário perante o poder Moderador que controlava o Executivo no Império e cujas prerrogativas passaram ao governo, na República. Resulta a enorme concentração de poderes nas mãos do Executivo federal e a não menos considerável concentração de recursos (financeiros, jurídicos, militares e policiais) no Executivo, em detrimento dos demais poderes. O presidencialismo imperial obstaculiza a democracia, a eficácia das políticas públicas, o desenvolvimento da cidadania na luta pelos direitos. Sem a luta pela isonomia dos poderes e sem o ajuste de contas com a história política nacional, dificilmente teremos o sonhado e pleno Estado de direito federal e, portanto, plena independência para o judiciário. Muitos juízes, com heroísmo silencioso, agem de modo independente. Mas é preciso que o coletivo federal e estadual judiciário tenham independência e respondam sempre à cidadania, com a mais acurada accountability, sem nenhuma interferencia dos outros poderes e sem servir, por sua vez, como legitimador de atentados ao direito e à lei pelos demais poderes. O texto traça uma rápida crônica do poder absoluto para indicar o quanto o nosso Estado ainda possui traços dessa tendência, em especial no Executivo. E termina com algumas questões espinhosas, mas necessárias, sobre as últimas medidas políticas estatais relativas ao Judiciário.



O tema é a independência dos juízes segundo a filosofia. Permitam-me, antes de expor um assunto com tamanhas pretensões, partir do campo oposto ao ideal referido. Refiro-me à burocracia que ameaça indivíduos e grupos do presente e do futuro, com a falta de independência, algo que já ocorreu à humanidade no século XX. É conhecida a tese weberiana, muito próxima do pensamento romântico, de que nos tempos modernos a política, a economia e a religião perderam todo encanto. O sagrado desaparecido teve como sucessores mecanismos que arrancaram dos indivíduos liberdade, força volitiva, pensamento autônomo. A burocracia, “máquina sem vida, é espírito coagulado. E só porque é isto, ela tem o poder de forçar os indivíduos a servi-la e determinar o curso cotidiano de seu trabalho vital (…) Como espírito coagulado aquela máquina viva representa a organização burocrática com sua especialização do trabalho profissional aprendido, sua delimitação das competências, seus regulamentos e relações de obediência hierarquicamente graduados. Unida à máquina morta, a viva trabalha para forçar a jaula (Gehäuse) daquela servidão do futuro a que talvez os homens se vejam obrigados a submeter-se impotentes, como os felás do antigo Egito”. ([1])

Se as pessoas comuns seguem dominadas pelas formas burocráticas, também os legisladores e governantes tombam na malhas tecida pela racionalidade dos escritórios. O segredo é renitente prerrogativa da raison d´État ([2]) Os justificadores da burocracia a defendem com fanatismo e brandem o “segredo do cargo”. Se a burocracia enfrenta um Parlamento, luta com instinto seguro contra os ensaios ali realizados para abolir o segredo do cargo com meios próprios e conhecimentos especiais. “Um Parlamento mal informado e, portanto, sem poder, é naturalmente melhor acolhido pela burocracia (…) Inclusive o monarca absoluto, e de certo modo ele justamente, percebe a si mesmo quase sempre impotente  diante do superior conhecimento burocrático especializado”. ([3])

Se aquela rede controla governantes e  legisladores, também os juízes caem em suas teias. “Só a burocratização do Estado e do direito reconhece em geral a definitiva possibilidade de rigorosa distinção conceitual entre uma ordem jurídica ´objetiva´ e direitos ´subjetivos´ dos indivíduos garantidos por eles, bem como a separação entre o direito ´público´, ligado às relações entre autoridades e ´súditos´, e o direito ´privado´que regula as relações dos indivíduos dominados entre sí. A burocratização pressupõe a separação abstrata entre o ´Estado´, enquanto sustento abstrato dos direitos de mando e criador das ´normas jurídicas´ e todas as ´atribuições´pessoais dos indivíduos”. ([4]) Nas formas burocráticas oficiais existe a perpetuidade do cargo,  que não significa a sua posse. Quando no campo judicial são dadas garantias aos juízes e demais funcionários da justiça, contra a destituição ou remoção arbitrárias, tais medidas visam principalmente oferecer “segurança com vistas ao cumprimento rigorosamente objetivo e isento de toda consideração pessoal, o dever específico imposto pelo cargo correspondente. A proporção da ´independência´ outorgada por aquela garantia jurídica na burocracia não causa o incremento da estima ´convencional´— estamental— do funcionário assim garantido (…) O funcionário administrativo, em todos os casos,  pode ser despedido com mais facilidade do que o juiz ´independente´”. A independência dos juízes, na hierarquia burocrática, resulta na despersonalização de sua individualidade. Os sistemas burocráticos de poder, mesmo no campo legal, não operam segundo as particularidades subjetivas dos integrantes, das partes à defesa, desta à promotoria, chegando ao juiz.

A independência diante dos antigos poderes garante, paradoxalmente, a mecanização do juiz. Este não mais depende de um soberano definido, indivíduo ou coletividade (rei, papa, aristocracia ou povo), pois a independência diante de pessoas de carne e osso é paga pela inserção na máquina de controle geral. Não espanta que um inimigo conservador da burocracia moderna, Carl Schmitt, assim descreva as operações dos juízes no regime nazista : “legislação, administração e justiça funcionavam, graças a novas simplificações e acelerações do processo, com obstáculos sempre menores, como aparelhos de comando”. Isto levou o mesmo Schmitt a discutir a fieira de tribunais revolucionários ou conservadores de exceção e a repetir a queixa do padre Laberthonnière: “Eu não julgo a vítima, apenas os juízes !”. ([5]) A independência dos juízes é tema que exige cautela. Quando se trata de arrefecer o autoritarismo de governantes e legisladores, aquele ideal  pode ser visto como incremento de liberdade para os magistrados, em proveito da coletividade. Mas, se ao deixar a dependência anterior o juiz cai na rede burocrática impessoal que o controla externa e internamente, sua independência pode resume-se a um pesadelo político.

Como tentativa de chegar à independência do juiz,  tomo  Francis Bacon, autor que mais atiladamente adiantou os nexos entre saberes e poder no mundo moderno, conhecido pelo aforismo knowledge and power meet in one. Em países como os EUA e Brasil de hoje,  os juízes dizem a última palavra na exegese das leis e da Constituição. Desconhecemos apelo para algum tribunal acima do Supremo. Vigora entre nós, pelo menos em princípio, a autonomia dos poderes, o que faz dos juízes um coletivo que interpreta a lei. O mesmo não ocorre na Inglaterra. Alí, apesar da ampla autonomia dos juízes, as decisões recebem a supervisão do soberano poder legislativo. ([6]) Os dois sistemas possuem fundamentos comuns, apesar das diferenças, pois a sua base filosófica enuncia que as pessoas têm direitos anteriores ao Estado e o poder político foi instituido para proteger tais direitos. Como as garantias daqueles direitos são frágeis ([7]), o necessário governo é posto pelos indivíduos particulares, unidos para proteger seu corpo e alma.

O modelo inglês enfatiza o governo soberano unitário e nele, para proteção dos indivíduos, o poder deve ser forte porque grupos privados podem conspirar para extrair a vida e a liberdade alheias. A divisão do Estado incentivaria uma parcela social a resistir ao esforços das outras para viver em comunidade política. Os juízes não podem ser totalmente independentes, com a palavra absoluta. Quando eles não agem em harmonia com o todo estatal ou social, apelo deve ser feito ao poder soberano, antes o rei e hoje no Parlamento. O medo trazido pela separação do poder é que ela impeça a defesa dos direitos. O judiciário “responde ao poder encarregado, em último gráu, de garantir os direitos”, sendo o Legislativo o mais próximo da vontade popular. A  supremacia pertence ao Parlamento, não ao Judiciário.

No outro lado, o que defende a supremacia do judiciário quando se trata de defender o direito,  busca-se impedir que a maioria tiranize a minoria. A constituição escrita unida à separação dos poderes, impede que partes do Estado assumam poderes desproporcionais aos das outras. O sistema inglês, embora acentue a supremacia do Legislativo, garante os juízes na decisão dos casos, pelo menos até o apelo final,  permite que eles apliquem leis antigas. Neste plano, a responsabilidade derradeira pela proteção dos direitos pertence ao Parlamento que faz as leis e subordina os juízes. No sistema oposto a autoridade é dividida e concede aos juízes papel especial de impor limites às formas governamentais.

E aqui entra Francis Bacon, entusiasta do procedimento inglês, tendo como discípulo aproximadamente fiel o também filósofo Thomas Hobbes. Bacon subordina, de modo formal, os juizes ao poder soberano, embora lhes atribua importante papel no governo. Papel relevante, sim, mas que eles devem desempenhar calma e indiretamente. Bacon parte de uma tese moderna: os indivíduos possuem alvos privados e o governo deve proteger tanto o seu corpo quanto as suas finalidades. Sem o soberano, eles caem na violência ilimitada. As barreiras contra as ambições particulares são produzidas artificialmente pelo Estado. Segundo Bacon o poder estatal deve ser forte e uno e, portanto, soberano. A unidade é condição do poder, pois um Estado dividido não pode se responsabilizar em caso de fracasso na conciliação dos contraditórios fins privados. Poder único não significa poder monárquico, visto que Bacon indica o soberano como força que pode residir num indivíduo ou numa assembléia. Para ele, os juízes exercem sua autoridade no Estado, mas não de modo a enfraquecer a unidade do poder público. Eles devem ser “leões sob o trono” na expressão usada no ensaio “Sobre a judicatura”. Mas se estão sob o trono, nem por isso perdem a essência leonina. Ao garantir a aplicação da lei, agir como intermediários entre o poder soberano e os indivíduos privados, esclarecer antigas leis, os juízes excercem grande poder no Estado e na sociedade.

Os juízes, afirma Bacon ([8]) devem recordar que seu ofício é  jus dicere e não jus dare. Interpretar a lei e não fazer a lei. Eles devem ser mais ilustrados que inteligentes, mais respeitáveis do que plausíveis e mais desconfiados do que confidentes. O dever maior do juiz é suprimir a força e a fraude, pois a força é mais perniciosa quando aberta e a fraude quando oculta e disfarçada. Os juízes devem se acautelar contra as construções teóricas sistemáticas e inferências, porque não existe tortura pior do que a tortura das leis. Sobretudo no campo penal, eles devem ter cuidado. Paciência e gravidade nas audiências são necessárias, o juiz que fala em demasia não é um címbalo bem ajustado. São quatro as partes do juiz na audiência : dirigir tudo para a obtenção de evidências enquanto modera a extensão, a repetição, a impertinência da fala. Recapitular, selecionar, e citar os pontos materiais, do que foi dito. E dar a lei ou a sentença. Tudo o que estiver além disso é demasiado e procede da glória, do comichão de falar, da impaciência em ouvir, da memória curta, ou falta de atenção.

Bacon afirma que os juízes, embora não tenham lugar sobre o trono, devem manter o essencial da soberania, segundo a raison d´État. Eles devem “recordar a conclusão das Doze Tábuas Romanas, o preceito de que Salus populi suprema lex e saber que as leis, exceto quando voltadas para aquele fim, são capciosas, oráculos pouco inspiradores. Logo, é bom para o Estado que os reis e estamentos consultem com frequência os juízes. E que os juízes consultem com o rei e estamentos com a mesma frequência. A primeira ocasião, quando se trata de lei que interfira nos assuntos de Estado. E a segunda, quando há alguma análise a ser feita no Estado em matéria de lei. Porque muitas vezes as coisas conduzidas a juízo devem ser ligadas ao meum e tuum, quando a razão e a consequência interessa ao Estado. Assunto de Estado não são apenas as partes da soberania, mas tudo o que introduz alguma alteração considerável, ou precedente perigoso, ou se relaciona com uma grande parte do povo. Não se considere  que as leis e a política (policy) se opõem.  Elas são como os espíritos e tendões: uma se move com a outra. “Os juízes devem ignorar o seu próprio direito, ao ponto de pensar que nada sobrou para eles, como a principal parte do seu ofício, um uso sábio e aplicação das leis. Porque eles precisam recordar o Apóstolo quando disse de uma lei maior dos que as deles : Nos scimus quia lex bona est, modo quis ea utatur legitime (sabemos que a lei é boa, desde que usada por alguém com legitimidade)”. ([9])
Os juízes  garantem a obediência às leis. Mas são limitados pelo soberano. O que é a “lei do soberano”? A resposta mais direta encontra-se em Hobbes, secretário de Bacon e tradutor para o latim dos Ensaios. “Lex est mandatum ejus personae, sive hominis sive curiae, cujos praeceptum continet obedientiae rationem”. ([10]) Desnecessário dizer a importância dessa tese hobbesiana para se pensar a difícil independência dos juízes. Enquanto “a lei natural é imediata em nós, pois conhecemos o mandamento divino em nossa razão, a lei civil é mediada pelo conjunto de regras com as quais a comunidade, por escrito ou oralmente, ou qualquer outro sinal adequado (signum idoneum) de sua vontade, comanda o uso da vontade para distinguir o certo do errado, o contrário à regra do que não é contrário”. ([11]) Só a Commonwealth pode editar leis civis. O soberano é o único legislador, não submetido às mesmas leis civis. Essa tese é de Bacon, para quem a lei depende do soberano, posição contraria à de  Coke para quem a Common Law é suprema. O longo tratamento da lei é feito por Bacon no tratado De Dignitate et augmentis scientiarum. No Livro VIII ele escreve sobre a raison d´État e cita Maquiavel, com atilada análise da política exterior no comércio e demais segmentos estratégicos. No título I do Terceiro capítulo do mesmo Livro VIII  (“A certeza é a primeira dignidade das leis”) afirma-se: “a melhor lei é a que deixa pouco à disposição do juiz”. A incerteza da lei vem sobremodo de sua forma ambigüa. Se a melhor lei é a que deixa pouco ao juiz, “o melhor juiz é o que menos deixa à sua própria vontade”. Importa deixar clara a gênese da lei. Em toda sociedade civil há uma autoridade legislativa como “absoluto poder (summa potestas) que faz e revoga a lei”.  ([12])
Bacon ocupou cargos no Estado e na justiça inglêsa. Foi Solicitor General (1607), Attorney General (1613), Lord Keeper (1617) e Lord Chancellor (1618). Sua atividade constante, no entanto, consistiu em aproximar o rei do parlamento, “duas bases e princípios deste Estado (…) que não se anulam, mas se fortalecem e mantêm um ao outro”. Mas ora ele dá um peso maior a um, ora a outro elemento. O rei possui prerrogativas “mediatamente devido às leis, mas imediatamente de Deus” e não pode ser censurado por nenhum juiz, por estar além de toda jurisdição. Mas, como o seu oficio é preservar o público, espera-se que ele não desobedeça a lei. Um bom rei governa com a lei. Embora “legibus solutus, seus atos e garantias são limitados pela lei”. ([13]) Bacon defendeu os privilégios dos Comuns em 1593, e por isto a carreira foi-lhe subtraida sob Elizabeth II. O trato com James foi mais balanceado, embora o soberano insistisse num absolutismo extremo que o colocando-se como vice-deus. A confiança de Bacon no Parlamento foi recompensada. Em 1614 os Comuns decidiram que nenhum Attorney General teria lugar na Casa das Leis, mas fizeram exceção para Bacon. ([14])
 Chegamos aos juízes em Hobbes. É essencial recordar que para o filósofo a soberania  bane da ordem pública os juízos com origem privada, pois eles geram a polêmica. Não existe medida comum para o juízo moral e indivíduos diferentes percebem as coisas de modo diferente, desenvolvem diferentes paixões. Ninguém concorda sobre o bem e o mal, certo ou errado, justo ou injusto. E o juízo de cada um tende a se ampliar ao infinito, na medida mesma do desejo que desconhece limites (pleonexia). A guerra universal não é apenas física, mas psicológica porque inveja e ódio campeiam e cada pessoa julga-se mais esperta do que a outra. Paixões diversas e igualdade no poder mortífero levam à miséria. É impossível arrancar a força física dos homens, mas factível obrigá-los a abdicar da exteriorização de sua opinião privada. Todos devem renunciar ao “direito” de impor o juízo próprio aos demais.  Visto que todos a partir da natureza possuem um direito igual, cada um pode entrar no pacto. E todos submetem-se ao juízo de um árbitro. Só o soberano guarda o direito natural e usa sem restrições a força física e o juízo próprio. ([15])
O soberano concentra o poder de julgar em todas as matérias, nas leis, na administração, nos tribunais,  guerra ou  paz, controla a religião, decide o bom e o ruim. Este é o pressuposto para colocar  limites nos desejos infinitos dos cidadãos. Como todos abrem mão do juízo privado, nada sobra para o direito de resistência que nele reside.  Entre o real como o vemos e como ele existe ocorrem diferenças por construírmos um mundo pela imaginação que, por sua vez, é movida pelos nervos. O intelecto não possui perfeito conhecimento dos demais homens. Estratégico nos indivíduos “não é a verdade mas a imagem que faz a paixão. A tragédia afeta mesmo o assassino, quando bem desempenhada” (The Elements of Law). Paixão e imagem trazem rebeliões. O uso correto das palavras não consiste na verdade, mas serve para evitar ambigüidades nocivas. A distinção entre o nosso interior e o mundo externo acentua a ausência de medida comum de bem e mal. Os indivíduos discordam sobre o certo e o errado e são incompetentes para emitir tais juízos. “Os homens, veementemente amorosos de suas próprias novas opiniões (as mais absurdas) e decididos com obstinação a mantê-las, deram às opiniões o reverenciado nome de consciência, como se julgassem ilegal mudá-las ou falar contra elas”.
Os homens fundamentam seus atos em raciocínios, concebem “a consequência dos nomes de todas as partes para o nome da totalidade, ou dos nomes da totalidade e de uma parte para o nome da outra parte (…) E os juristas somam leis e fatos para descobrir o certo e o errado na ação dos homens privados”. Todo homem pode errar no cálculo, o que não quer dizer que inexista o bom juízo. “Ao surgirem controvérsias sobre um cálculo as partes precisam, por mútuo acordo (by their own accord)  recorrer à razão certa de um árbitro ou juiz, a cuja sentença se submetem (…) Quando os que se julgam mais sábios do que todos os demais gritam e exigem uma razão certa para juiz, só procuram garantir que as coisas sejam asseguradas não pela razão dos outros homens, mas pela sua. É tão intolerável agir assim na sociedade dos homens como no jogo, escolhido o trunfo, usar como trunfo em todas as outras ocasiões a série de que se tem mais cartas na mão.” ([16])

 Hobbes afasta a fraude no “jogo” da sociedade civil, mas em proveito do soberano não  preso a regras. Os particulares não têm mais direito (pois assumiram o pacto) de viver segundo a fraude. O soberano, cuja função é salvar o povo, não sofre esta limitação. O jogo opera com a inteligência e a imaginação dos indivíduos. Na sociedade civil, se todos jogarem sem regras, desaparece o jogo e nenhum jogador parte da igualdade das chances porque o truque se esconde e não se indica quem o usa (caso contrário, ele se transforma em guerra). O jogador sem regras usa o segredo, a simulação e a dissimulação. Ele finge seguir as regras, mas guarda para si mesmo o fato de que as desrespeita, simula aceitá-las, dissimula truques. O jogador comum opera com a imaginação e a discreção: ele deseja ganhar, imagina-se no instante em que vence (pode imaginar os frutos do ganho como riquezas, amores, etc) e ao mesmo tempo não pode revelar as cartas. O soberano não segue regras (não é jogador) e usa a discreção, a imaginação, a simulação e a dissimulação. Ele opera em pleno direito natural.

A imaginação indiscreta não é força. Quem usa o intelecto para o jogo exerce deliberada dissipação da mente (mind). Na ordem familiar são permitidos jogos com os sons e palavras equívocas pelos significados, com a desregrada sequência da imaginação (Fancy). Mas tal jogo é proibido no sermão ou diante de pessoas desconhecidas ou às quais deve-se reverência. A discreção traz as regras do trato que determinam a loucura (brilhante, pouco importa) de uns e a lucidez de outros. É possível ser discreto, mas perverso. “Caso à prudência se acrescente o uso de meios injustos ou desonestos, como os que os homens são levados a usar por medo e necessidade, temos a perversa sapiência (Crooked Wisdome) a que se chama astúcia (Craft) um sinal de pusilanimidade. A magnanimidade é o desprezo dos expedientes injustos ou desonestos, enquanto a Versutia —astúcia, sutileza— consiste em afastar um perigo ou incômodo presente mediante um maior ainda, como roubar uma pessoa para pagar a outra, esperteza de vistas curtas”.

Como fazer todos os jogadores seguirem as regras, sem truques? “As leis da natureza, justiça, equidade, modéstia, benevolência, fazer aos outros o que gostaríamos que eles nos fizessem sem o terror de algum poder (…), são contrárias às nossas paixões naturais, estas nos empurram para a parcialidade, orgulho, vingança e que tais. E pactos sem a espada, são apenas palavras (Covenants, without Sword, are but Words)  e não possuem nenhuma força (strength) para assegurar um homem”.

O terror do poder dita as regras do jogo político e as impõe para todos e para cada um. A lei não é  conselho, mas ordem do poder soberano,  regra para uso e distinção do bem e do mal e do que é contrário ou não à regra (Rule). As leis são interpretadas pelo soberano e apenas por ele, ou pelos que ele designa para a tarefa de julgar. Elas não são julgadas pelos particulares. Quando o juízo privado pretende mudar as leis e o poder público, age tendo em vista a “consciência”. assume o papel de estraçalhador da Commonwealth. No De cive (capítulo 12) lemos que “muitos homens, que mesmo sendo bem apegados à sociedade civil, fazem por carência de saber (knowledge) inclinar a mente dos súditos à sedição, quando ensinam, aos jovens, a doutrina conforme às suas opiniões nas escolas, e ao povo todo nos seus púlpitos. Os que desejam levar aquela disposição aos atos, colocam todo o seu esforço nisso: primeiro, eles juntam todos os doentiamente afetados na facção e na conspiração; depois, eles mesmos buscam ter a maior força na facção. Eles os colocam na facção enquanto fazem de si mesmos os relatores e intérpretes dos conselhos e ações do homem individual, e nomeiam as pessoas e lugares para reunião e para deliberar sobre as coisas nas quais o governo atual deve ser reformado, segundo deve parecer melhor aos seus interesses. O alvo é fazer deles mesmos os que governam a facção e a facção deve ser tolhida por uma outra facção; ou seja, eles devem ter suas reuniões secretas em separado, apenas com poucas pessoas, reuniões nas quais eles podem ordenar o que devem a seguir propor numa Assembléia Geral, e por quem, e sobre quais assuntos e em que ordem cada um deverá falar, e como eles atrairão os mais poderosos e populares dentre os homens para a facção de seu lado. E quando eles conseguem grande o bastante, a qual podem dirigir (rule) pela sua eloquencia, eles a mobilizam para administrar os negócios. E assim, às vezes eles oprimem a sociedade (Commomwealth) quando não existe outra facção maior para se opor a eles; mas na maioria das vezes eles conseguem fazer aquilo e começam uma guerra civil. Porque a Loucura e a eloquência  concorrem para a subversão do governo, de maneira igual à das filhas de Pélias, rei da Tessália, que conspiraram com Medéia contra seu pai. Elas iam restaurar o ancião decrépito em sua juventude, por conselho de Medéia cortaram-no em pedaços e o colocaram para ferver; em vão esperando o momento em que ele viveria novamente. Assim o povo comum em sua loucura, como as filhas de Pelias, desejando renovar o governo antigo, é conduzido pela eloquência de homens ambiciosos, como se tivessem enfeitiçados por Medéia; divididos em facções eles consomem em chamas em vez de reformar o governo”. ([17])

“É preciso obedecer mais a Deus do que aos homens” ? ([18]) A questão é impertinente porque as leis não governam consciências, mas regem palavras e atos. A Biblia  ensina a obedecer o soberano “em todas as coisas”. O dilema (obedecer Deus ou obedecer o soberano) é desconhecido entre Judeus, Gregos, Romanos e gentios. Naqueles povos, as leis civis definiam o justo e o virtuoso e o culto externo a Deus. Os católicos têm essa dificuldade porque exigem para a autoridade religiosa poderes acima do civil. Quanto aos atos, a paz só é conseguida quando eles são regulados. Caso contrário, persiste a divisão no Estado devido à “liberdade” de consciência. Ser papista, luterano, calvinista, arminiano, como no passado paulistas, apolineanos, cefasianos não impede a obediência à ordem pública. “Paulo mostra que as questões trazidas pelos raciocínios humanos (human ratiocination) são perigosas para a vida cristã. No mundo civil quem resiste a um rei porque duvida de seu título ou porque é dominado pelas paixões, merece punição.Sendo a consciência apenas “opinião” ela não deve ela ser abolida, mas restrita no espaço público, que não pode ser uma soma heteróclita de opiniões, mas resultado de uma só “opinião” racional.
O debate sobre o destino post-mortem deve ser afastado das leis que regem o corpo social. Segundo Pierre Bayle “o sumário do Leviatã é que sem a paz não existe segurança no Estado e  a paz não subsiste sem comando e o comando sem armas; as armas nada valem se não forem postas nas mãos de uma pessoa; o medo das armas não  conduz à paz os impulsionados a combater por um mal ainda mais terrível do que a morte, isto é, pelas dissenções sobre as coisas necessárias à salvação eterna”. ([19]) O Estado possui uma potência que chega ao nível espiritual, sempre que se trata da república.   No pacto, o indivíduo aliena o direito de agredir os demais. O soberano, no entanto, choca-se com algumas barreiras para a sua soberania. Em termos lógicos: se todos abrem mãos de seu direito natural para afastar a morte, não tem sentido o Estado exigir contra eles o direito de vida e morte. A segurança é inalienável.
Ferdinand Tönnies ([20]) editor e estudioso de Hobbes, contrário ao saber político e social mecânicos do Leviatã (Tönnies pertence à sociologia romântica) define dois modêlos contrários de ordem social, incluindo a pública. A sociedade é mecânica enquanto a comunidade é organismo vivo. “A distância que vai de uma ferramenta artificial ou a determinada máquina construída para certos fins, até um sistema orgânico ou a alguns orgãos concretos de um corpo animal, é a que vai de um conglomerado de vontade  —vontade sobreposta— a um conglomerado de vontade vontade essencial”. Como indica Georg Lukács, “Tönnies pinta a sociedade com as cores da filosofia do direito de Hobbes, onde cada um é inimigo do outro e apenas a lei pode assegurar uma ordem externa.” ([21])

A noção de poder, em Hobbes, não se desvincula da linguagem. Yves Charles Zarka chega a afirmar que a sua doutrina não se liga “tanto à física, mas à semiologia”. ([22])  Fala, gestos, escrita sujeitam-se à ambigüidade e ao equívoco. A lógica fornece princípios do correto emprego das denominações. A pacificação requer uma lingua na qual os equívocos sejam atenuados. A lingua, antes embebida nas paixões, com o estado de natureza, no Estado é a única forma passível de uso científico com a proposição, porque afirma e  nega, possibilita o juízo sobre o falso e o verdadeiro. “Quando um homem raciocina a partir de princípios indubitáveis por experiência, todos os engodos dos sentidos e equivocos de palavras evitados, a conclusão feita por ele concorda com a reta razão.  Mas quando da conclusão ele pode, por bom raciocínio, derivar algo que contradiga qualquer verdade evidente, concluiu contra a razão e tal conclusão é absurda.” Dos absurdos nascem os fanatismos religiosos e políticos. No trato comum, são usados nomes extraídos da ignorância coletiva e na fala então importa, para que eles sejam lembrados, a coerência de uma concepção para outra. Mas se as palavras ajudam a memória, a comunicação e a vida em comum, elas podem transformar o convívio num inferno. Pelas palavras e raciocínios ultrapassamos as feras. Elas desconhecem o verdadeiro e o falso e não possuem juízo, não multiplicam uma não verdade por outra, como fazem os homens.

As paixões iniciam todos os movimentos voluntários e da fala. Querendo mostrar aos outros o saber, opiniões, concepções e desejos, e para isso inventado a linguagem, os homens transferem todo o discurso mental às palavras. E a ratio torna-se oratio “porque na maioria dos homens o costume tem um poder tão grande que se a mente sugere uma palavra inicial, o resto delas segue-se pelo habito e a mente não as acompanha.  É o que ocorre entre os mendigos quando rezam seu paternoster. Eles unem tais palavras e de tal modo, como aprenderam com suas babás, companhias ou seus professores, e não têm imagens ou concepções na mente para responder às palavras que enunciam.” ([23])

As palavras, quando se trata de uma lei, precisam ser entendidas por todos os que a devem acolher. Como seguir uma ordem quando ela foi emitida em lingua obscura, acessível apenas aos juristas ? Não basta o juiz  entender as partes: é preciso que ele sempre se faça entender. ([24]) Para que se obedeça é obrigatório que a lei seja promulgada em lingua conhecida por ele. Urge que a pessoa saiba as penalidades a que se submeterá e se defenda em lingua acessível ao juiz e aos concidadãos. Se os últimos o compreendem, mesmo o juiz parcial terá trabalho para impôr uma sentença errônea.

O juiz pode errar quando interpreta a lei. Logo, ele deve estudar a equidade.  “Por exemplo, é contra a lei da natureza punir o inocente; e inocente é o absolvido judicialmente, reconhecido inocente pelo juiz. Coloque agora o seguinte caso: um homem é acusado de crime capital e face ao poder e a malícia de algum inimigo, a corrupção freqüente e parcialidade dos juízes, foge com medo, é pego e conduzido a um julgamento e como não tinha culpa, é absolvido mas condenado a perder seus bens; esta é uma condenação manifesta do inocente. Não há lugar do mundo em que isso poderia ser uma interpretação da lei da natureza, ou transformado em lei pelas sentenças dos juízes precedentes que fizeram o mesmo. Porque o primeiro que julgou, o fez injustamente; nenhuma injustiça pode ser modelo de juízo para os juizes subsequentes. Uma lei escrita pode proibir os homens inocentes de voar e eles podem ser punidos por voar; mas que voar por medo de injúria seja tomado por presunção de culpa, depois que alguém já foi absolvido judicialmente do crime, é contrário à natureza da presunção, que não tem lugar depois que o juízo foi dado”.

Hobbes distingue o cavilador e o intérprete. Um cavilador traz outros, ao infinito. Mas deve existir um intérprete, o juiz ordinário, que também interpreta as leis não escritas. As sentenças desse juiz não podem obrigar outros juizes “porque um juiz pode errar até na interpretação das leis escritas; mas nenhum erro de um juiz subordinado pode mudar a lei, a qual é a sentença geral do soberano”. Quais as condições para que o juiz seja intérprete das leis?  Entendimento reto da principal lei da natureza, a equidade, que não depende das leituras de outros homens, mas da bondade da razão natural própria. Segundo: desprezo de bens desnecessário e promoções. Terceiro, ser capaz de num julgamento retirar de si todo medo, ira, ódio, amor e compaixão. E finalmente, paciência para ouvir, atenção diligente na escuta, memória para reter as peças, aplicação ao que ele tiver ouvido. A razão, que chega à equidade, deve afastar ou controlar as paixões mais notórias do trato entre as pessoas. Hobbes acentua a ambição como algo que não deve integrar a alma do juiz. Tanto, ou mais do que as outras paixões, a fome de bens ou cargos tolda o juízo, torna a mente fechada para as evidências e para a fala das testemunhas, do réu, da outra parte.

No Leviatã, a mente apaixonada curva-se à fantasmagoria que ela própria gera, tendo como objeto os demais seres humanos. É o reino da mentira. O Behemoth traz a seguinte afirmação :  “Um Estado pode constranger à obediência, mas não convence ninguém de erro, nem altera as mentes dos que acreditam possuir a melhor razão. A supressão da doutrina não une mas exaspera, aumenta a malícia e o poder dos que nela acreditam” ([25]) “Porque as palavras não são isentas de jurisdição?”.  Hobbes une as falas sediciosas à atividade rebelde, particularmente na análise da autoridade espiritual que tenta controlar a soberania civil”. ([26]) Tais falsos mestres são os agentes do “Reino das Trevas”,  em contraste com a luz da verdadeira religião e do entendimento. “Em particular, os pregadores sediciosos do Evangelho interpretam a Escritura para provar, acima de tudo, que sua igreja é o reino de Deus. Consequentemente, as pessoas que eles enganam obedecem tais mestres mais do que aos soberanos civís.” ([27])

Além dos mentirosos pregadores que desejam impor a soberania de seu grupo, seitas ou igrejas, sobre todos os demais cidadãos, Hobbes refere-se no Leviatã às Histórias ou Ficções das pessoas galantes. Este é um lugar comum da filosofia contra os historiadores e os poetas. A condenação da mentira é velha como a filosofia, ou ainda mais arcaica. ([28]) Se é preciso impedir a fraude, o truque, para conseguir a estrita obediência às leis urge que o soberano impeça a difusão de mentiras, o refinamento na arte de escrever com duplicidade. O Estado deve banir, com os mentirosos habituais, os que trapaceiam no jogo político de maneira eficaz, pois eles modificam o sentido das palavras e das frases. Proibidas as armas físicas, é preciso cuidar das espirituais, começando com as exercidas na lingua.
A polissemia atropela a obediência, enquanto a mentira é  truque insidioso que reintroduz  a ferocidade recíproca. Nos Elements of law os termos  Sleight and strength são usados para definir o estado de natureza no trato dos homens. A dupla de palavras apresenta grande interesse na análise hobbesiana da existência antes que a multidão se transformasse em Estado. ([29]) Os humanos, mesmo depois do pacto, enganam-se mutuamente com truques hábeis de linguagem, no mesmo instante em que desobedecem a lei e tentam usar a força física. ([30]) Como o pacto não é obedecido por todos os indivíduos, sendo motivo de queixa contra os atos ilegais dos que, na república, são importantes e ricos, o soberano é impelido a agir de acordo com a simulação, a dissimulação e a mentira. Ele é presditigitador e mágico, mestre na arte de enganar, sobretudo pelo raciocínio. Aproximemos a lente do panorama inaugural do Estado. Se na gênese do Estado à multidão fosse permitida a licença de enganar por meio de truques, jamais haveria segurança coletiva. E se fosse permitido aos indivíduos os truques sofísticos no espaço público, permaneceria a insegurança. Mas se fosse proibido ao soberano o uso das simulações e dissimulações, zonas inteiras de poder seriam conhecidas pelos inimigos externos e utilizadas pelos cidadãos ambiciosos de vantagem própria, o que anularia as regras do pacto.
Surge o problema por excelência do pensamento filosófico e político: o acesso à razão e a vitória sobre os engodos de outros Estados e dos particulares. Hobbes conhece os textos de Seneca. A fama conduz aos atos mais insensatos, pois exige a boca e os ouvidos da multidão que se deixa enganar pelos demagogos. ([31]) No Leviatã e no De corpore,  por ser restrita à experiência a prudente sabedoria não possibilita a generalização cognitiva, não produz a medida universalmente válida do justo e do injusto. ([32]) Nos Elements of law a prudência dá lugar à força que inibe as paixões desagregadoras dos particulares, força usada pelo soberano autorizado no pacto. ([33]) A disciplina se apresenta como o eixo político no De cive : ad societatem homo aptus non natura; sed disciplina (I,2). A prudência, ligada à razão de Estado, aparece aqui e ali no De cive. No mesmo livro Hobbes diz que os governantes conservam a astúcia e a força (sleight or force). Vimos que nos Element of law, sleight é  palavra usada com o vocábulo  strength, para definir o estado de natureza.

Quando afirma no De cive uma Reason of City (Civitas, no latim),  Hobbes guarda o sentido renascentista dado à razão estatal, tendo como núcleo a prudência. Daí o apelo, notável no referido volume, ao segredo e aos espiões. Entre o segredo (a máxima obscuridade) e os espiões (encarregados de penetrar a obscuridade alheia) a prudência do soberano traz segurança para a Civitas. Os soberanos que usam sleight or force, permanecem no estado de natureza e podem usar a força, a fraude, a mentira, a espionagem, não precisam manter a palavra porque não existe nenhum pacto que una os Estados,  nenhum soberano que imponha uma lei obrigatória para todos.
Se no âmbito mundial opera a razão de Estado em guerra permanente, no plano interno a transferência do poder mortal não pode deixar ambiguidade na lei, Nas relações de cidadão a cidadão a mentira ou engodo deve ser reprimida. No Leviatã quase desaparecem as antigas formas de pensamento prudencial, ou seja, da razão de Estado. Se esta última opera com force and fraud, o uso de semelhantes técnicas de dominação entre cidadãos conduziria à ruina da república. ([34]) Contra o uso da força e da fraude, no interior da república, o soberano deve providenciar para que o povo não seja ignorante “ou pouco informado das bases, e razões dos seus direitos essenciais; porque assim os homens são seduzidos fácilmente, e levados a resistir-lhe, quando a República deve exigir seu uso e exercício”. ([35]) Em qualquer Estado, generaliza Hobbes, sem a obediência o povo é dissolvido por “homens poderosos que digerem com muita dificuldade tudo o que estabeleça um poder para controlar suas afecções”. Os “eruditos  também resistem ao poder que descubra seus erros, e diminua a sua autoridade (Authority)”. Enquanto os poderosos, estão cheios de ambição de poder e os letrados mergulham na ambição de autoridade, porque suas mentes estão abarrotadas de doutrinas mentirosas e fraudulentas,  “as mentes do povo comum, enquanto não forem tingidas pela sua dependência diante dos poderosos, ou rabiscada pelas opiniões dos doutos, são como papel limpo, apropriadas para receber tudo o que a Autoridade Pública nelas imprimir”. ([36])
 E encontramos novamente a fábula de Medéia : o desobediente deseja reformar a República, mas a destrói “como as ensandecidas filhas de Peleu, na fábula, as quais desejando renovar a juventude do seu pai decrépito,  por conselho de Medéia o cortaram em pedaços e o colocaram para ferver, sempre com suas estranhas ervas, mas não fizeram dele um homem novo. Este desejo de mudanças é como a desobediência do primeiro mandamento divino: porque Deus disse, Non habebis Deos alienos: Não terás deuses de outras nações´., e em outro lugar , em relação aos reis, que eles são deuses”. ([37])  Quais  “deuses” não podem coexistir com o “deus mortal”, o Leviatã ? Os poderosos, os letrados, as cidades que pretendem possuir independência na República. “Os que pretendem agir segundo a prudência política”, diz Hobbes, tendem a afirmar a “liberdade de disputar o poder absoluto”. Estes são os poderosos e populares. “A menos que a República (Commonwealth) tenha muito penhor de sua fidelidade, eles são uma doença muito perigosa; porque o povo, que poderia receber seu movimento da autoridade soberana, pela adulação (flattery) e pela reputação de um homem ambicioso, é arrancado de sua obediência às leis para seguir um homem cujas virtudes e designios eles não conhecem. E isso é mais comumente perigoso num governo popular do que na monarquia, porque um exército com possui maior força e número pode facilmente fazer acreditar que eles são o povo. É assim que Julio Cesar, que subiu ao poder pelo povo e contra o senado, tendo ele mesmo vencido as facções de seu exercito, controlou o senado e o povo. E este modo de agir de homens ambiciosos é rebelião clara, e pode ser comparada aos efeitos da feitiçaria (witchcraft). Outra doença da República é “a grandeza imoderada de uma cidade, quando ela pode fornecer para fora de seu próprio circuito o número e a despesa de um grande exército, como também doentio pode ser o número de corporações, que nos intestinos da república são como vermes nas entranhas de um homem natural. E devemos acrescentar a liberdade de disputa contra o poder absoluto conduzida pelos campeões da prudência política, os quais alimentados na maior parte na laia do povo, e animados por doutrinas falsas, sempre dão palpites sobre as leis fundamentais e molestam a república, como vermezinhos chamados ascarídeos pelos médicos”.  ([38])

Embora Hobbes acelere a secularização do poder, é preciso sublinhar que de James I até o Leviatã um ponto permanece intocado, exasperando-se mesmo após a Revolução Puritana : o soberano não deve satisfações aos parlamentos, aos juízes, aos súditos. Esta tese foi combatida desde longa data na Inglaterra, sendo que no tempo de Bacon e de Hobbes Edward Coke defendeu a independência dos juizes, contra a Igreja Anglicana e contra o rei James I. Ao replicar ao rei que defendia suas prerrogativas contra “os advogados” Coke chegou a afirmar que o soberano “não foi educado no conhecimento das leis da Inglaterra”. James I, mais do que ofendido, afirmou que se Coke tivesse razão, ele deveria estar sob a lei, “ traição evidente”. E o governante cita Bracton : “Rex non debet esse sub homine sed apud Deo et lege”. O autor do Basilicon Doron e do tratado The True Law of Free Monarchies or the Mutual Duty Betwist aa Free King and His Subjects, escrevera que “um bom rei enquadra todas as suas ações segundo a lei; mas ele prende-se a ela, só pela sua boa vontade e para dar exemplo aos súditos. Ele é o senhor sobre todas as pessoas, tem poder de vida e morte. Embora um principe justo não tire a vida de nenhum súdito sem uma lei clara, a mesma lei com a qual ele tira a vida é feita por ele mesmo or seus predecessores”. Além de pai do seu povo, o rei, segundo Jaime, seria o professor universal, pois os súditos são fracos e ignorantes. E assim, ele é em tudo independente do judiciário: “A ruindade de um rei nunca pode fazê-lo ser julgado pelos juízes que ele próprio ordenou”.

Na fala ao Parlamento de 1616, ele proclama que “os reis são justamente chamados deuses; pois eles exercem um modo de semelhança do Divino poder  sobre a terra. Porque se forem considerados os atributos de Deus, ve-se o quanto eles concordam com a pessoa de um rei. Deus tem poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbitrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable). O mesmo poder possuem os reis. Eles fazem e desfazem seus súditos; têm poder de erguer e abaixar; de vida e morte; julga acima de todos os súditos em todos os casos e só deve prestar contas a Deus (yet accountable to none but God). Eles têm o poder de exaltar as coisas pequenas e rebaixar as altas e fazer de seus súditos como fazem os jogadores com as peças de xadres”. Ainda em 1616 o monarca assim se dirigiu aos juízes da Star Chamber: “não usurpem a prerrogativa da Coroa. Se aparecer uma questão ligada à minha prerrogativa ou mistério do Estado, trato que não lhes diz respeito, consultem o rei ou o seu conselho, ou ambos; porque tais matérias são transcendentes. As prerrogativas absolutas da Coroa não é assunto para a lingua de um advogado, nem é legal disputar sobre elas”. Coke em companhia de outros juristas foi preso na Torre de Londres por nove meses, devido à resistência à referidas prerrogativas. Não é por acaso que James I evocou Bracton para afiançar o seu poder. Mas dele fez uma leitura unilateral ao acentuar o seu mando em trato com o ser divino. ([39])

 Bracton ([40]), em vez de garantir um poder sobrenatural absoluto do rei,  recolhe o debate sobre as bases pelas quais os dirigidos devem e podem obedecer aos reis e magistrados. Em seu tempo a adesão à ordem legal imposta pelo governante e aprovada pela Igreja, era exigi a imitação do Cristo. Essa foi a maneira pela qual Bracton resolveu o problema do governante acima e abaixo da lei. A solução evidentemente passou pela teologia, no processo analógico. A Virgem é ao mesmo tempo mãe e filha de Deus (Nata nati, mater patris). No De legibus et consuetudinibus Angliae Bracton então o ponto: “o poder do rei refere-se à geração da lei e não à injúria. Como ele é auctor iuris, uma oportunidade para a iniuria não pode nascer no mesmo lugar onde nascem as leis”. ([41]) Gerador da Lei, o rei define-se como o seu intérprete maior. “O rei é filho da lei, mas torna-se pai da lei” e sua legitimidade requer a base teológica. “O rei”, afirma Bracton, “não tem outro poder, desde que ele é o vigário de Deus e seu ministro na terra, exceto isto apenas, que ele deriva da lei”.

E mais:  “o próprio rei deve estar, não sob o homem, mas sob Deus e sob a lei, porque a lei faz o rei…Porque não existe rei onde domina a vontade arbitrária e não a lei. Ele deve estar sob a lei porque é vigário de Deus, o que fica evidente pela similitude com Jesus Cristo em cujo nome ele governa sobre a terra”. Cristo, embora Deus, pagou impostos a Cesar e colocou-se sob a lei enquanto homem. O rei, como Jesus, é servus legis e dominus regis. Mas ele só é vicarius Dei quando fiel intérprete da lei, a ela submetendo-se como o Cristo. Aí ele pode ser elevado acima da lei e se torna legislador (auctor iuris) mas de acordo com a lei. Se o círculo do rei como maior et minor se ipso se quebrar e se desaparecer a interpretação correta da lei, o governante tomba na situação de puro tirano. Em termos teológicos Bracton chega à solução : o rei é semelhante a Deus (sobre a lei) quando julga, legisla e interpreta a lei. Ele é sob a lei porque a ela se submete. O nexo entre rei e Deus prolonga o mandamento de que Nullum tempus currit contra regem (o tempo não corre contra o rei), o que implica no enunciado de que Longa possessio parit ius (a longa possessão gera o direito). Tudo o que se liga aos bona publica é integrado no registro a-temporal e são res quasi sacrae. Na teologia jurídica os Bona patrimonialia Christi et fisci comparantur (pode-se comparar os bens patrimoniais do Cristo e do fisco). Cristo e Fisco tornam-se comparáveis quanto à inalienabilidade e à prescrição. O sacratissimus fiscus torna-se alma do Estado. Como Cristo, Fiscus ubique praesens.
Vimos acima Jaime I afirmar o “mistério do Estado”. O segredo, no entanto, não pode ser atribuído apenas à instituição estatal. Antigo na história —Simmel diz que ele “é uma das maiores conquistas da humanidade” ([42]) — o sigilo atingiu pleno sentido político na vida moderna. A sua prática passou das corporações aos setores administrativos, aperfeiçoando-se ao máximo. Os momentos decisivos do Estado moderno, a sua inauguração enquanto poder secular e sem a tutela religiosa, se inicia com a necessidade urgente de saber sobre o que e sobre quem reinava o principe.


No início do Estado moderno a legitimidade do governante ainda reside no divino. ([43]) Mas a razão de Estado afasta os conceitos teológico-politicos e  assume a linguagem do interesse de Estado. Neste processo, juristas e teólogos como Botero, em resposta ao desafios de Maquiavel, definem o uso legítimo dos poderes tendo como alvo  manter  e  expandir os bens públicos. ([44]) A nova razão de Estado incorpora o segredo para garantir o gabinete real, lugar onde não são admitidos os homens comuns. Aceito com reservas pela Igreja, o segredo é a marca dominante do Estado laico. Se o secretário (a origem do termo é marcada pela própria palavra do segredo) e o governante devem ocultar tudo o que for possível aos que não têm acesso aos gabinetes eles, no entanto, devem descobrir tudo o que estiver para além das fronteiras de seu Estado e na mente e no coração dos dirigidos.

Do gabinete onde se oculta, o príncipe nota o que para a maioria dos cidadãos passa desapercebido.  Este ideal do governo que tudo enxerga, tudo ouve, tudo alcança, é a base histórica dos  atuais serviços  de informação. O governante acumula segredos e deseja os súditos sejam exposto a uma luz perene. Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre governados e dirigentes. Na aurora dos tempos modernos “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (…) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar”. ([45] )

No mesmo período surgem as guerras de religião ocasionadas pela Reforma. As revoltas alemãs e francêsas (a barbárie da Noite de São Bartolomeu), atingem a Inglaterra. Para espanto do clero e da aristocracia, as massas populares aprenderam a desobedecer as ordens dos príncipes. A antiga imagem do povo se exaspera.  É conhecido o texto de Etienne de La Boétie, O Discurso da Servidão Voluntária. ([46]) Pouco se analisou o importante escrito do mesmo autor intitulado Mémoires de nos troubles sur l´Édit de janvier 1562. ([47]) Devido às lutas religiosas na Guiana, a corte envia o magistrado aos locais para analisar e depois escrever um texto com sugestões políticas e jurídicas. É clara  a cautela de La Boétie frente ao povo. Seria preciso impedir que o populacho tivesse ilusões de poder. Nas guerras religiosas que espalham “um ódio e maldade quase universais entre os súditos do rei” o pior é que “o povo se acostuma a uma irreverência para com o magistrado e com o tempo aprende a desobedecer voluntáriamente  deixando-se conduzir pelas iscas da liberdade, ou melhor, licença, que é o mais doce e agradável veneno do mundo. Isto ocorre porque o elemento popular, tendo sabido que não é obrigado a obedecer ao príncipe natural no relativo à religião, faz péssimo uso dessa regra, a qual, por si mesma, não é má, e dela tira uma falsa consequência, a de que só é preciso obedecer os superiores nas coisas boas por si mesmas, e se atribue o juízo sobre o que é bom ou ruim. Ele chega afinal à idéia de que não existe outra lei senão a sua consciência, ou seja, na maior parte, a persuasão de seu espirito e suas fantasias (…) nada é mais justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem religioso temente a Deus, probo e prudente, nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e a superstição da massa indiscreta”. ([48]) E arremata: “O povo não tem meios de julgar, porque é desprovido do que fornece ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele  acredita em outrem. Ora, é comum que a multidão creia mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela seja mais persuadida pela autoridade de quem fala do que  pelas razões que se enuncia”.

Gabriel Naudé fala do segredo e da desconfiança universal que obrigam o governante a se preservar “dos engodos, ruindades, surprêsas desagradáveis” quando a massa está inquieta. Na crise de legitimidade é preciso cautela contra o animal  de muitas cabeças, “vagabundo, errante, louco, embriagado, sem conduta, sem espírito nem julgamento….a turba e laia popular joguete dos agitadores: oradores, pregadores, falsos profetas, impostores, políticos astutos, sediciosos, rebeldes, despeitados, supersticiosos”. ([49])

Assim, os teóricos da soberania popular não conseguiram audiência nas cortes e parlamentos aristocráticos. A universitas, communitas ou corpus, o povo reunido com majestade, toda essa constelação conceitual sofreu críticas desde os seus momentos iniciais. De outro lado, os que defenderam personalidade jurídica para o povo, tomaram cuidado para que a soberania popular não fosse absorvida pelos representantes. ([50]) “Já no final do século 13 a doutrina filosófica do Estado definiu o axioma de que o fundamento jurídico de todo governo reside na submissão voluntária e contratual das comunidades governadas. E foi declarado que por um principio de direito natural ao povo e apenas a ele, cabia colocar-se como chefe (…) do poder estatal. Althusius afirma ser impossivel diminuir a soberania popular com base no contrato”. ([51]). O povo seria o summus magistratus. 

É contra a massa popular que os autores favoráveis à monarquia de direito divino se colocaram na Inglaterra do século 17. As convulsões sociais e políticas que reuniram todos os prismas da vida capitalista triunfante ergueram a força popular traduzida em facções, dos Levellers aos Diggers, mesclando religião e imperativos democráticos. Quando a cabeça de Carlos I foi cortada, rompe-se o laço entre o corpo do Rei e a divindade, toma novo sentido  o princípio da accountability, exigência que segue a fé pública. John Milton expressa o princípio: “Se o rei ou magistrado provam ser infiéis aos seus compromissos, o povo é liberto de sua palavra”. Estas frases postas em The Tenure of Kings and Magistrates ([52]) definem a nova legitimidade. O summus magistratus popular exige responsabilidade dos que agem em seu nome.

Milton retoma os democratas inglêses. Não por acaso tais enunciados foram recolhidos pelo inimigo da democracia no período, Thomas Edwards, num catálogo de “heresias” que tinham a pena de morte como castigo. O erro dos democratas, diz Edward, reside em afirmar que  “ o poder supremo só pertence à Casa dos Comuns, porque só ela é escolhida pelo povo. O estado universal, o corpo do povo comum é o soberano terrestre, o senhor, rei e criador do rei, dos parlamentos, e todos os ministros da justiça. Majestade indeclinável e realidade residem de modo inerente no estado universal; e o rei, parlamentos, etc., são as suas meras criaturas que devem prestar contas a eles, os quais deles dispõem a seu arbitrio; o povo pode pedir de volta e reassumir seu poder, questioná-los, e colocar outros em seu lugar” (eu sublinho, RR) ([53]) Thomas Edwards era um acadêmico de primeira plana e seus enunciados baseiam-se em fontes (sobretudo delações) e documentos. Se consultarmos historiadores da política inglêsa no período, confirma-se a veracidade dos enunciados atribuidos por Edwards aos democratas. ([54])

As teses democráticas inglêsas repercutiram pela Europa inteira a partir do período. As Luzes francêsas foram uma imensa tradução para o continente do pensamento produzido na Inglaterra desde o século 16 ([55]). “Não existe verdadeiro soberano a não ser a nação; não pode existir verdadeiro legislador, a não ser o povo; é raro que o povo se submeta sinceramente a leis impostas; ele as amará, as respeitará, obedecerá, as defenderá como sua obra própria se é delas o autor (…) A primeira linha de um código bem feito deve ligar o soberano; ele deve começar assim : `Nós, o povo (início da Constituição norte-americana : We the People…RR) ([56]) e nós, soberano desse povo, juramos conjuntamente essas leis pelas quais seremos igualmente julgados; e se ocorrer a nós, soberano, a intenção de mudá-las ou infringi-las, como inimigo de nosso povo, é justo que que o povo seja desligado do juramento de fidelidade, que ele nos processe, nos deponha e mesmo nos condene à morte se o caso exige; esta é a primeira lei de nosso código. Desgraça ao soberano que despreza a lei, desgraça ao povo que suporta o desprezo em relação à lei”. ([57])

Robert Derathé registra que essa tese, com fortes conseqüências na feitura das leis, não existe nos países que hoje se julgam democráticos. Neles, "é raro que uma lei possa ser votada sem o assentimento do governo". Como educar a cidadania para que ela exerça o poder soberano, sem cair nas mãos dos demagogos?  Apenas depois de 1791, por exemplo, Robespierre assumiu a soberania popular. No discurso Sobre a Constituição (10/05/1793) ele toca a aporia ainda hoje irresolvida: "Dar ao governo a força necessária para que os cidadãos respeitem sempre os direitos dos cidadãos; e fazer isto de tal modo que o governo nunca possa violar os mesmos direitos". O governo, continua, "é instituído para fazer a vontade geral respeitada. Mas os governantes possuem uma vontade particular: e toda vontade particular tenta dominar a outra". Qualquer constituição deveria "defender a liberdade pública e individual contra o próprio governo". A solidez de uma Constituição se baseia "na bondade dos costumes, no conhecimento e no sentido profundo dos sagrados direitos do homem". Tangido pelas massas os jacobinos encaram o problema do governo comum e suas diferenças com o governo revolucionário. O governo revolucionário extrai legitimidade da "mais santa dentre as leis, a salvação do povo" e da necessidade. Governo revolucionário não significa "anarquia nem desordem. O seu fim é, pelo contrário, reprimir as duas coisas, para conduzir ao domínio das leis (...) quanto maior o seu poder, quanto mais sua ação é livre e rápida, tanto mais é necessária a boa fé para dirigí-lo". A mudança de "soberania popular" para "ditadura" é clara. A última salva o povo. ([58])

E se os ditadores usufruírem o poder para si apenas? A resposta de Robespierre desalenta: o ditador deve ser virtuoso. Na Convenção jacobina o governo, para "instituir" a República torna-se "superior" à população. Mas  os  sans culotte, nas Assembléias Populares, insistiam na idéia e na prática da soberania do povo e na demissão sumária dos deputados ("mandatários"), juízes e demais servidores públicos. Em 1º de setembro de 1792, a seção "Poissonière" declara: "considerando que o povo soberano tem o direito de prescrever aos seus mandatários a via a ser seguida para agir conforme a sua vontade", os nomes dos deputados deveriam ser discutidos, aprovados ou reprovados pelas Assembléias primárias. A Assembléia Geral do "Marché-des-Innocents" decide em 25 de agosto de 1792" que os deputados serão demissíveis por vontade de seu Departamento, bem como "todos os funcionários públicos".

Os enciclopedistas e seus discípulos como Condorcet, tinham se preocupado com a formação intelectual das massas populares, conditio sine qua non da ordem democrática moderna. Democracia exige eleições. Mas estas podem deseducar o povo e os escrutínios trazem respostas incertas ou enganosas, perigo pressentido por Condorcet. Mesmo no Estado democrático “o poder se imiscui na operação eleitoral e a influencia: ele deseja demais uma ´representação´ favorável. E três “imagens” são misturadas nas eleições :  a real, se a palavra tem sentido, a normativa ou potencial, porque se trata se conseguir uma direção no futuro, e a desejada e querida, porque os manipuladores tendem a se perenisar nos cargos e tentam desregulamentar os indicadores(…) os modos de escrutínio contam mais do que o resultado final, pois ele depende deles”. ([59])

O rei, na instauração do Estado, foi conduzido ao segredo. O soberano popular segue o mesmo rumo quando sua prerrogativa se manifesta na hora do voto. Alí, supostamente, reina o segredo. Todos conhecem a passagem de Montesquieu no Espírito das Leis,  mas a cito: “A lei que fixa a maneira de conceder os bilhetes dos sufrágios é ainda uma lei fundamental na democracia. É uma grande questão se os votos devem ser públicos ou secretos. Cicero escreve que as leis que os tornaram secretos nos últimos tempos da república foram uma das grandes causas de sua queda (…) Sem dúvida, quando o povo vota, o voto deve ser público e deve ser visto como lei fundamental da democracia. É preciso que o povinho (´petit peuple´) seja esclarecido pelos principais e contido pela gravidade de certos personagens”. ([60]) Rousseau comenta o segredo deseducador do voto. Nas antigas repúblicas virtuosas “cada um tinha vergonha de dar publicamente seu sufrágio a uma opinião injusta ou assunto indigno, mas quando o povo se corrompeu e seu voto foi comprado, foi conveniente que o segredo fosse instituido para conter os compradores pela desconfiança e fornecer aos salafrários (´fripons´) o meio de não serem traidores”. ([61]) Condorcet foi contrário ao voto secreto. Mas seus motivos diferem dos enunciados por Montesquieu e Rousseau. Ele é o autor de projetos de educação popular  e  conhece os problemas matemáticos suscitados nas eleições. Dos votos tudo pode sair, inclusive servidão. Ele mostra como o voto simples (sim e não) traz o arbitrário quando se trata de decidir entre diferentes programas ou pelo menos três candidatos. Este é o sentido do “paradoxo de Condorcet”, atualização do “paradoxo de Bordas”. Com este  escrutinio tem-se a maior probabilidade de transformar a maioria em minoria, e vice versa. “É possível, se houver apenas três candidatos, que um entre eles tenha mais votos do que os dois outros e que, entretanto, um desses últimos, o que teve menor número de votos, seja olhado pela pluralidade como superior a cada um dos seus concorrentes”.  Após demorada análise matemática, ele enuncia que numa eleição assim, o mais contestado pode ser eleito, enquanto o melhor, na hipótese de um escrutínio plunominal,  eliminado. ([62]) O paradoxo de Condorcet é estudado ainda em nossos dias.  ([63])

As multidões não foram ensinadas ao voto segundo o cálculo das probabilidades. No Termidor, a massa popular perdeu a soberania e foi substituida pelos proprietários, seguindo a receita de Boissy d´Anglas em discurso de 5 Messidor, ano 3: "Devemos ser governados pelos melhores (...) ora, com poucas exceções, só podemos encontrar semelhantes homens entre os que, possuindo uma propriedade, são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva". Para o termidoriano, a lei não é máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Somem as exigências do povo, a accountability e a destituição do governante. Com Napoleão e sua ditadura, imenso maquinismo operado pelo segredo, foram dadas as condições para o fim da doutrina sobre  a soberania popular direta.

Chegamos ao período do pensamento conservador, no qual o Brasil passa a representar uma entidade estatal independe no planeta. Ele  recebeu muito alimento dessa época e tendência política em sua forma jurídica. "A soberania de direito", afirma Donoso Cortés, "é una e indivisível. Se ela é própria do homem, ela não pertence a Deus. Se localizada na sociedade, não existe no céu. A soberania popular é ateísmo e se o ateísmo pode introduzir-se na filosofia sem transformar o mundo, ele não pode introduzir-se na sociedade sem feri-la com a paralisação e a morte. O soberano possui a onipotência social. Todos os direitos são seus, porque se houvesse um só direito que não estivesse nele, não seria onipotente e, não o sendo, não seria soberano. Pela mesma razão, todas as obrigações estão fora dele, porque, se ele tivesse alguma obrigação a cumprir, seria súdito. Soberano é o que manda [eu sublinho, RR], súdito o que obedece. O soberano tem direitos e o súdito, obrigações. O princípio da soberania popular é ateu e tirânico, porque onde há um súdito que não possui direitos e um soberano que não tem obrigações há tirania". ([64]) Donoso aponta o Leviatã como a muralha contra a soberania popular. A soberania de direito divino conhecia limites, "mas a definida por Hobbes nega toda limitação para si mesma. Segundo ele, Deus não existe e o povo, desde o instante em que abre mão de seus direitos, faz-se escravo. Inflexivelmente lógico, Hobbes nega ao povo o direito de resistência à opressão, mesmo a mais delirante e absurda" ([65])

As massas "carecem de unidade, de previsão, de concerto, só a iminência do perigo pode obrigá-las a se reagrupar ao redor de uma bandeira. Quando passa o perigo, decai o entusiasmo, a unidade conjuntural formada pelo entusiasmo se atenua e se fraciona [...] Quando se extingue o entusiasmo, o povo deixa de ser uma realidade para ser apenas um nome sonoro. Na sociedade, então, só existem interesses que se combatem, princípios que lutam entre si, ambições que se excluem e individualidades que se chocam". ([66]) O povo é fugaz e não garante a soberania. Sem esta última não existe poder, desaparecem os vínculos sociais. Para o pensamento conservador, a soberania popular é o perigo do liberalismo e das Luzes.  "Em geral os povos recusam o poder que lhes é pedido e confirmam o poder que lhes é tomado. Todo poder ditatorial ou real que só busque apoio nas classes acomodadas é um poder perdido". Quem deseja pautar o poder através da Constituição é fraco. "O governo das classes vencidas é o constitucional, o das vencedoras foi, é, será perpetuamente a monarquia civil ou a ditadura militar. Nunca os povos obedeceram gostosamente alguém que não fosse um ditador ou rei absoluto".

A soberania popular é afastada também por De Bonald : "O direito do povo a governar a si próprio é um desafio contra toda verdade. A verdade é que o povo tem o direito de ser governado" ([67]). Edmund Burke enuncia o princípio de que o povo não é soberano porque o governo difere de um problema aritmético. "Foi dito que 24 milhões devem prevalecer sobre 200 mil. Verdade, se a Constituição de um reino fosse um problema aritmético. [...] A vontade de muitos, e seu interesse, devem diferir com freqüência, e uma grande vontade será a diferença quando eles, os muitos, fazem uma escolha ruim" ([68])

"Sendo o homem necessariamente associado e necessariamente governado, sua vontade não conta para nada no estabelecimento do governo [eu sublinho, RR]; pois, uma vez que os povos não têm escolha e que a soberania não resulta diretamente da natureza humana, os soberanos não existem pela graça dos povos, a soberania não sendo a resultante de sua vontade, tanto quanto a própria sociedade". Não existe soberano sem povo, assevera De Maistre, nem povo sem soberano. Mas o povo tem dívidas para com o soberano, "deve-lhe a existência social e todos os bens que dela resultam. O príncipe só deve ao povo um brilho ilusório que nada possui em comum com a felicidade e que dela o exclui mesmo quase para sempre".  Inexiste soberania limitada, ou do povo. Existe soberania legítima ou não. "Dirão alguns: a soberania na `Inglaterra é limitada', Nada é mais falso. Apenas a realeza é limitada naquela ilha célebre. Ora, a realeza não é toda a soberania, pelo menos teoricamente. Quando os três poderes que, na Inglaterra, constituem a soberania, concordam, o que podem eles? É preciso responder, com Blackstone: TUDO. E o que se pode contra eles? NADA"  ([69]).

"Desde 1848 a doutrina do direito público tornou-se positiva escondendo nesta palavra o seu embaraço: ou funda todo poder, mediante as mais diversas reconstruções, sobre o `poder constituinte' do povo: isto é, no lugar da idéia monárquica de legitimidade entra a democrática. Neste ponto é incalculável na sua relevância o fato de que um dos maiores representantes do pensamento decisionista e filósofo do Estado católico, consciente de modo extremamente radical da essência metafísica de toda política, Donoso Cortés, diante da revolução de 1848, pudesse compreender que a época do realismo tive chegado ao fim. Não existe mais realismo, porque o rei não existe mais. Sequer existe uma legitimidade em sentido tradicional. Logo, só resta um resultado: a ditadura. É o mesmo resultado a que Hobbes chegou, procedendo na base da mesma conseqüência do pensamento decisionista, embora misturado com uma espécie de relativismo matemático. `Auctoritas, non veritas facit legem'". ([70])

Schmitt capta com lógica extrema a passagem da soberania no Estado, os princípios teológicos com origem em Bracton, o seu esvaziamento nas doutrinas modernas e o contra-ataque do pensamento conservador. Mas é preciso introduzir o Brasil nessa longa história. Importa sublinhar o estraçalhamento da soberania do povo e mesmo o regime da representação daquela soberania. Nos momentos de nossa Independência as teses dominantes eram contrárias à soberania popular e, se esta não fosse apresentada pelos “demagogos”, a sua versão atenuada, a representativa. Surgimos no universo internacional enquanto pais livre, batizados nas águas do conservadorismo contra-revolucionário.

A historiografia conservadora notou no Brasil uma  invenção eficaz para afastar o perigo da soberania popular e mesmo da representação política. A Revolução Francêsa tendo sido um episódio sangrento de anarquia e ditadura, o poder que a sucedeu após o Termidor e que acabou nas mãos do imperialismo napoleônico, seguiu de um ponto ao outro dos setores estatais. Se a Assembléia foi tão exclusiva no processo revolucionário que acabou instaurando uma ditadura “virtuosa”, o poder Executivo tornou-se um centro ditatorial com o regime instaurado pelo Corso ordenando tudo burocraticamente em escala hierárquica do alto à base do Estado. Entre os dois poderes, o judiciário não consegue manter a sua independência. Urge resolver o problema da harmonia entre os três poderes, antes enfeixados nas mãos do rei ou do parlamento. Na gênese do Estado brasileiro imaginou-se resolver o conflito e, ao mesmo tempo, as ameaças do que ocorreu nas revoluções inglêsa, norte-americana, francêsa: a instituição do poder moderador cumpre esse papel.

Escutemos o conservador Guizot: ([71]) “o mais simples bom senso reconhece que a soberania de direito, completa e permanente, não pode pertencer a ninguém; que toda atribuição de soberania de direito à uma força humana qualquer, é radicalmente falsa e perigosa.  Donde a necessidade da limitação de todos os poderes, quaisquer que sejam seus nomes e formas; daí a radical ilegitimidade de todo poder absoluto qualquer que seja a sua origem, conquista, herança ou eleição. Pode-se discutir os melhores meios de procurar o soberano de direito; eles variam segundo os tempos e os lugares; mas em nenhum lugar, em nenhum tempo, nenhum poder poderia ser o possuidor independente dessa soberania. Posto esse princípio, não é menos certo que a realeza, em todos os sistemas que ela é considerada, apresenta-se como a personificação do soberano de direito. Escutai o sistema teocrático: ele vos dirá que os reis são a imagem de Deus na terra, o que não quer dizer nada mais do eles personificam a justiça soberana, verdade, bondade. Perguntai aos jurisconsultos: eles responderão que o rei é a lei viva; o que significa ainda que o rei personifica o direito soberano, a lei justa, que ele tem o direito de governar a sociedade. Interrogai a própria realeza no sistema de monarquia pura: ela dirá que personifica o Estado, o interesse geral. Em toda aliança ou situação considerada, ela sempre tem a pretensão de representar, reproduzir o direito soberano, o único capaz de governar a sociedade legitimamente. Nada nisso espanta. Quais são as marcas do soberano de direito, as marcas de sua natureza própria? Para começar, ele é único; porque só existe uma verdade, uma justiça, só existe um soberano de direito. Ele é o mais permanente, sempre o mesmo: a verdade não muda. Posto numa situação superior, estranha a todas as vicissitudes, a todas as possibilidades desse mundo; eles está no mundo, de certo modo, apenas como espectador e como juiz : este é o seu papel. Pois bem! Senhores, estas marcas racionais, naturais no soberano de direito, a realiza as reproduz exteriormente na forma mais sensível, que dela parece a mais fiel imagem. Abri o livro em que o Sr. Benjamin Constante tão enegenhosamente representou a realeza como um poder neutro, um poder moderador, elevado acima dos acidentes, das lutas sociais, e que só intervem nas grandes crises. Esta não seria por assim dizer, a atitude do soberano de direito no governo das coisas humanas ? É preciso que haja nesta idéia algo muito próprio a mover os espíritos, pois ela passou com uma rapidez singular dos livros para os fatos. Um soberano dela fez, na constituição do Brasil, a base de seu trono; a realeza é representada como poder moderador elevado acima dos poderes ativos, com espectador e juiz”.  [72]

A formulação liberal do próprio Benjamin Constant procurava impor limites à soberania popular, mas trazia também a preocupação de estabelecer os limites dos poderes e garantir a sua harmoniosa relação. Neutro, o poder moderador seria o apanágio da realeza ([73]), os ministros seriam responsáveis pelo governo e os legisladores não seriam pagos. O julgamento pelo juri seria a norma e haveria liberdade de imprensa. Qual a base para a recusa da soberania popular? Ela é encontrada, em Constant, no texto sobre a diferença da liberdade entre os povos  antigos e  modernos. A primeira encontra-se na democracia direta assumida em Atenas, cujos males eram a guerra perene e a escravidão como seu resultado. Nada que já não esteja em Tucídides.  A segunda, encontra-se no comércio, “que inspira nos homens o amor pela independência individual: atende as suas necessidades, satisfaz os seus desejos, sem intervenção da autoridade”. Assim, o Estado deve ser contido em limites quando se trata da vida econômica, pois “sempre que o governo tomar conta dos nossos negócios, o fazem de modo pior e de maneira mais cara”.  Não devemos nos colocar nos assuntos de Estado, enquanto este último não deve se intrometer em nossos assuntos particulares. A liberdade moderna reside “no gozo tranqüilo da independência individual”. ([74])
Erra todo aquele que desconhece limites para o exercício de qualquer poder. “Quando se estabelece que a soberania popular é ilimitada, cria-se e se deixa ao acaso na sociedade um gráu de poder muito amplo e que se torna um mal, não importa em quais mãos esteja. Entregue-o a um, vários, todos, e o mal será o mesmo (…) a soberania só existe num modo limitado. Onde começa a independência e a existência individual começa, termina a jurisdição da soberania”. O mercado liberta e a vida privada deve ser o refúgio do indivíduo. Pela via oposta encontra-se em Constant o elogio hobbesiano do indivíduo limitado ao particular, sem exteriozações de suas certezas no plano público. A soberania popular entra no erro democrático: “A sociedade não pode exceder a sua competência sem tornar-se usurpadora, a maioria não pode fazer o mesmo sem tornar-se facciosa”. O Contrado Social representa “o mais terrível instrumento auxiliar de todo tipo de despotismo”. Crime é crime, pouco importa a fonte de poder alegada por quem o comete: indivíduo, partido, nação. ([75])
Toda a crítica de Constant a Hobbes, no tocante à soberania, vem do termo “absoluto” : “ve-se claramente que o caráter absoluto dado por Hobbes à soberania do povo, é a base de todo seu sistema (…) a palavra ´absoluto´ desnatura toda a questão e nos arrasta para uma nova série de consequências; é o ponto onde o escritor deixa o caminho da verdade para seguir rumo ao sofisma ao fim que ele havia proposto a si mesmo. (…) Com a palavra ´absoluto´ nem a liberdade (…) nem o repouso nem a felicidade são possíveis em nenhuma instituição. O governo popular é apenas uma tirania convulsiva, o governo monárquico apenas um despotismo concentrado”.
Face à tese da soberania absoluta, pensa Constant, Rousseau foi tomado de terror diante daquele “poder monstruoso, e não encontrou preservativo contra o perigo inseparável de uma semelhante soberania, a não ser um expediente que tornava impossível o seu exercício. Ele declarou que a soberania não pode ser alienada, delegada, representada. Era declarar em outros termos que ela não pode ser exercida; era anular de fato o princípio proclamado”. E criticando a idéia de “absoluto” na soberania, mesmo popular, diz Constant : “O povo, segundo Rousseau, é soberano num aspecto, súdito noutro. Mas na prática os dois aspectos se confundem. É fácil para a autoridade oprimir o povo como súdito, para forçá-lo a manifestar como soberano a vontade que ela lhe prescreve”. ([76])
Encontra-se nesse exato ponto a justificativa do Poder Moderador no pensamento de Benjamin Constant. Trata-se de idear os limites dos três poderes, impedindo a hipertrofia de um deles como ocorreu na ditadura napoleônica, em nome do Executivo, e da ditadura jacobina, em nome do Legislativo. Ambos seguiram a tendência ao absolutismo, o que, segundo Constant, é idêntido a despotismo sem barreiras.
Voltemos ao momento anterior ao de Constant, a gênese da Revolução Francêsa. Ela derrubou um sistema de privilégios na condução do Estado, sistema que abarcava do rei à noblesse de robe. Destruir todo esse edifício e substituí-lo por um poder público distinto da situação social foi tarefa gigantesca. Pergunta: qual a natureza do regime novo? No antigo, a administração dependia do rei. Só com o tempo, mesmo curto, a legitimidade dos poderes passaram do rei aos representantes eleitos. A burocracia do antigo regime, produzida em séculos de controle do Estado pelo rei e seus funcionários, perdeu a hegemonia estratégica em função do Legislativo eleito e, antes da república, do Conselhor Real. De fato, ocorria uma forte tensão entre as duas fontes de legitimidade estatal. A monarquia não pode mais definir-se como o depósito da soberania estatal, combinando o legislativo, o executivo, o judiciário. A nação, pelo Legislativo, faria as leis, a serem executadas pelo governo. Logo foi preciso estabelecer a separação dos poderes, na Constituição. A Assembléia Nacional desejou manter a monarquia, mas sem as prerrogativas antigas e sem que o clero e a nobreza mantivessem os velhos privilégios (venalidade dos cargos, privilegios dos nobres, justiça arbitrária, administração idem). Todos esses pontos são sintetizados na separação dos poderes.  Na verdade, a Assembléia Nacional atenuou ao máximo os poderes que lhe faziam sombra, na guerra, nas finanças, na justiça, etc. Os meios para esse controle dependia da correta intelecção dos papéis e cargos. O de rei, pelo menos até a proclamação da república, era claro. O de ministro, nem tanto. Daí a restrição dos seus poderes e a instauração da responsabilidade perante o Legislativo. Eles poderiam ser impedidos por iniciativa da Assembléia e processados na Alta Corte especial. A mediação dessa Corte atrapalhou bastante o controle dos ministros pelos deputados. A separação de poderes assim feita, deixou os ministros sem legitimidade, porque eles não respondiam perante a Assembléia. Como não podiam controlar com eficácia os ministros, os deputados passaram a desconfiar de todo o ministério, produzindo um vazio na administração. Surge uma burocracia nova, distinta da que operava no Executivo e dependente do Legislativo. Com a ditadura, essas falhas pioraram e o Estado não conseguiu manter o ritmo das mudanças na ordem política de legitimação. O golpe de Estado que produziu a diatdura comissária não resolveu a luta entre os poderes, com resultados desastrosos. ([77])
“Nunca deveis esquecer, em toda posição que vos coloquem minha política e o interesse de meu império, que vossos primeiros deveres são para comigo, os segundos para com a França; todos os outros deveres, mesmo para com os povos que poderei vos confiar, vêm depois”. ([78]) Ao dirigir-se desse modo ao sobrinho, filho de seu irmão Louis Bonaparte destinado a ser o Grão Duque de Berg, o imperador retomou a tradição absolutista cujo símbolo maior na França foi Luis XIV, com o dito “L´État c´est moi”. Vimos a relevância do pensamento absolutista para a questão da soberania e para a aplicação e leitura das leis. Sabemos que após Napoleão surgiram Egocratas no Estado, especialmente no século XX, com o culto da personalidade nos regimes nazista, stalinista, fascista. ([79]) Uma testemunha arguta do período napoleônico e do governo  Imperial é Madame de Sataël, pessoa próxima ao Antigo Regime, por seu pai, e ao liberalismo de Benjamin Constant. No capítulo sobre as leis e a administração napoleônicas ela pergunta : “ é possível falar de legislação num país onde a vontade de um só homem decidia tudo; onde este homem, rápido e agitado com as ondas do mar durante a tempestade, não podia sequer suportar a barreira de sua própria vontade, se lhe opusessem a de ontem, quando ele desejava mudar o amanhã ?”. O arbitrio do “grande homem” definia o plano político, econômico, jurídico e bélico da França. Uma anedota contada pela autora é interessante. Um conselheiro disse a Napoleão que não autoriza determinado ato, que beneficiava o ditador. “Ora bem!” responde o Corso, “O Código Napoleão foi feito para a salvação do povo, e se tal salvação exige outras medidas , é preciso tomá-las”.
Dois instrumentos juridicos foram usados pelo poder imperial: leis e decretos. Leis eram emanadas de um simulacro de legislativo, mas eram os decretos ditados pelo governante, discutidos no seu Conselho, a ação efetiva da autoridade. Quanto aos tribunais, o Código manteve o juri, definido pela Assembléia Constituinte. Mas os avanços nos procedimentos eram compensados, em favor do regime, por cortes especiais, comissões militares que julgavam delitos políticos, que resultavam em execuções sumárias. E aqueles tribunais condenavam pessoas por acusações anônimas, não raro sem relação direta com assuntos políticos. “Bonaparte não permitiu uma só vez que um acusado recorresse de condenação por delito político à decisão do juri”. Os poderes eram unidos, sob o comando do imperador : “era difícil distinguir a legislação da administração (…) pois ambas dependiam da autoridade suprema”.

O centralismo garantiu o mando despótico : “Todas as autoridades locais, nas províncias, foram gradativamente suprimidas ou anuladas”. O trabalho da polícia, com delações e torturas, produziu um monstro que, finalmente, voltou-se contra os partidários do imperador destronado. A ideologia do imperador, em relação aos cidadãos particulares, era clara e distinta: eles deveriam, como exige Hobbes, que eles fiquem no plano privado e “adquiram sempre mais dinheiro”. Enquanto isto, os que mandam no Estado devem adquirir “sempre mais poder”. A ditadura militar e burocrática imposta pela “alma do mundo”([80]) resume-se no dito do próprio imperador: Les Français sont des machines nerveuses. Máquinas: servem como instrumentos ou partes de instrumentos para ampliar o poder do Estado e de seus mestre. Nervosas: vivas como as forças naturais, numa simbiose sempre desejada pelos que desconhecem limites entre técnica e natureza. Napoleão toma como positivo o que, logo após, no romantismo, é indicado como um pesadelo terrível, a partir de Mary Shelley e o Frankenstein.
Após essa passagem pelo poder napolêonico fica bem clara a intenção de Benjamin Constant ao sugerir o Poder Moderador como preventivo de tiranias. De um lado, ele limitaria as formas soberanas ligadas ao povo, sobretudo o despotismo do Legislativo. De outro, ele limitaria as pretensões do Executivo, garantindo o Judiciário. ([81]) Evidentemente, as críticas aos abusos de poder descem nas noites dos tempos. No período absolutista, as denúncias contra tais abusos surgiram entre os puritanos e seus herdeiros, na América ou na França. No caso de Benjamin Constant, no entando, existem antecedentes no instante em que a Revolução Francêsa e a ditadura do Legislativo chega à sua crise de morte. Como é o caso de Sieyès, para quem “ os poderes ilimitados são um monstro em política (…) a soberania do povo não é ilimitada”.  ([82]) O termodoriano por excelência, Boissy d´Anglas, retoma a norma hobbesiana, levando o cidadão particular ao plano estritamente produtivo, econômico, dele afastando as tarefas de governo. Assim, não se pode arrancar à atividade econômica “homens que melhor serviriam seu país pela atividade assídua em vez de vãs declamações e debates superficiais”. ([83]) D´Anglas, na verdade, com o Termidor, seleciona “os melhores” para dirigir o Estado, os “possuindo uma propriedade são apegados ao país que a contem, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva”. ([84])


Benjamin não foi termidoriano nem aceitaria in totum as teses  enunciadas por Boissy d´Anglas. Mas soube notar os excessos de poder de um setor do Estado e procurou definir o controle dos três poderes por intermédio do Poder Moderador, indicado como tarefa do rei. "Para que não se abuse do poder, é preciso que pela disposição das coisas o poder detenha o poder”. O sistema das balanças, no seu pensamento, opera na estrutura do Estado. O Legislativo seria bicameral, incluindo uma Casa dos Pares.  Posteriormente ele divide o poder entre Legislativo e Judiciário, composto de juízes inamovíveis de ofício. Ideou, para corrigir a concentração do poder, o sistema de poderes e direitos departamentais e dos municípios. O rei como "poder neutro” segue nessa orientação geral.

No Brasil, a concepção de Constant seguiu para um rumo inesperado. Vimos o elogio do uso da idéia de Poder Moderador em nosso país por Guizot. Há um evidente desvio do conceito na pena de Guizot no relativo ao conceito. Constant define aquele poder como neutro, o que significa que ele serve para coordenar os três poderes, sem neles interferir “do alto”. A mesma operação de hierarquizar os quatro poderes foi seguida no Brasil com a Constituição de 1824.  A tendência centralizadora do poder real já fora iniciada em Portugal no século 18, com as reformas pombalinas. “As concepções de poder político, sociedade e Estado são assim formuladas em torno da noção de império civil, com fins de legitimar a monarquia portuguesa e consubstanciar projetos de atuação política”. ([85])
Com as invasões napoleônicas de 1808 e a vinda da Casa Real para o Brasil, compõe-se uma Corte no Rio onde se integram a nobreza, burocratas de alto escalão, serviçais e negociantes. No projeto idealizado, continua a noção de império português, com sede no Brasil. A cidadania foi entendida nos parâmetros da antiga metrópole: o “povo” era a aristocracia, os “homens bons” (ricos proprietários) sem sangue judeu. A representação “popular” faz-se por petições, dando-se o direito de voto sem que os cidadãos tivessem presença ativa na esfera pública. Outro projeto é mais radical, pois admite a presença cidadã na vida pública, define autonomia para o Brasil. Nos dois projetos, cidadão é título que não cabe aos escravos, evidentemente, nem aos homens livres e pobres (“gente ordinária de veste”). 
O debate sobre a cidadania surge em 1821 na Assembléia do Rio de Janeiro, na eleição de representantes provinciais para a Assembléia de Lisboa, para redigir a Constituição portuguesa. O debate conduziu ao inesperado questionamento da autoridade de João VI. Proposto um projeto de governo representativo, visto pelos governantes como ligado “à força incontrolável da multidão”, sobretudo num reino onde a enorma quantidade de escravos era perene ameaça (a revolta do Haiti em 1810 era um presságio).


A imensa dimensão do território brasileiro, as revoltas que se esboçavam, o exemplo dos países visinhos que se tornaram republicas de tamanho inferior ao do Brasil, a memória da Revolução Francêsa, as doutrinas de Benjamin Constant, todo esse amalgama de idéias, medos, repressão, definiu o momento inaugural do Estado independente que assumiu a forma de Império. Os que desejam um poder representativo e constitucional conseguem em 1822 a convocação da Assembléia. Mas no país surge dois projetos não sintonizados e conflitantes : o da monarquia soberana, de São Paulo sob liderança de José Bonifácio e o de um governo constitucional (Rio de Janeiro, liderado por José Clemente da Cunha). Quando Pedro I é aclamado, José Clemente afirma o princípio da soberania popular enquanto Bonifácio enfatiza a supremacia do Imperador.
Vence provisoriamente o primeiro projeto, sendo o império civil instituido por direito divino. Os defensores do segundo plano são perseguidos mas não deixam de conseguir a consideração, nos trabalhos da Constituinte, de suas idéias. Desse modo, o novo governo admitiria a liberdade política, mas sob a égide do poder supremo, definido pela pessoa do imperador. Em 1823, José J. Carneiro de Camposao discutir a sanção do soberano apresenta a idéia do Poder Moderador. Exclusivo, aquele poder permite ao imperador controlar os demais poderes. A Constituição de 1824 incorpora o quarto poder e o amplia, pois ele pode dissolver a Câmara de Deputados, afastar juízes suspeitos, etc. Tal poder foi alegado sempre que se tratava, no parecer dos governantes, da Salvação do Estado. No mesmo plano, é restrita a autonomia do judiciário. Desse modo, o Poder Moderador torna-se supremo no Estado, acima dos três outros poderes.
A predominância do poder moderador sobre os demais manteve-se durante o império, incluindo o tempo de regência, quando o país passou por rebeliões sufocadas manu militari de Norte a Sul. Somadas as suspensões dos direitos e a permanente supremacia do imperador, tem-se como resultado uma difícil e quase improvável democratização do Estado. O permanente estado de rebelião e as necessidades do poder central, definem o império como excessivamente preso ao modelo de concentração de poderes, o que molesta ainda em nossos dias o país, com o tipo de federação na qual os Estados possuem realmente pouca autonomia, sobretudo em matéria fiscal. ([86]) Com o fim do império, os positivistas tentaram acabar de vez com as forças liberais, com o conceito de ditadura, que acentua e mantem a preponderância do executivo sobre o Legislativo, concentrando o poder diretor numa única pessoa. Falar em Legislativo, nesta doutrina, é impreciso e mesmo errôneo, visto que a Assembléia teria função fiscal : aprovar o orçamento do Estado. ([87]) Em toda a república as prerrogativas do Poder Moderador foram incorporadas, silenciosamente, à Presidência do país. Com elas, a permanente pretensão dos ocupantes daquele cargo a assumir, como imperadores temporários, a preeminência e a intervenção nos demais poderes. Esse ponto permite indicar que o Estado é regido por força de pressupostos autoritários que, inclusive, produziram em plano mundial algumas lições de moderno despotismo.
Não por acaso, Carl Schmitt refere-se ao Poder Moderador brasileiro em O protetor da Constituição. Alí, o jurista defende, como em outros trabalhos, que apenas o Reichspräsident pode defender a Constituição em tempo de crise. O tema gira ao redor do Artigo 48 da Constituição de Weimar. ([88]) Ao fazer seu apelo aos poderes do Protetor da Constituição, Schmitt nega que o judiciário pode exercer aquele papel, porque judiciário é idêntico a normas e age post factum, sempre atrasado na correção dos desvios e fraturas institucionais. Para remediar aquelas situações, apenas o Reichpräsident poderia ser movido, legal e constitucionalmente. Como é habitual, Schmitt afasta o judiciário e, ao mesmo tempo, o próprio Legislativo naqueles transes. Como diz Hans Kelsen, Schmitt reduz toda a Constituição de Weimar ao artigo 48. ([89]) Se, como diz Schmitt, “a independência é a necessidade primeira para um protetor da Constituição” e se os juizes ou deputados não podem cumprir aquele mister, segue-se que eles não são independentes, ou independentes o bastante para garantir o Estado. Desse modo, ele retira dos demais poderes a possibilidade de controlar e limitar o Protetor em seu poder excepcional. O estudo desse caso, importante na história dos poderes soberanos e a conexão teórica entre o que se passou na Alemanha e no Estado brasileiro pode resultar em esclarecimentos sobre o nosso centralismo excessivo, a nossa quase inexistente federação, os excessivos poderes da presidência do Brasil. ([90])
O Poder Moderador antes da República era vitalicio e hereditário. Uma presidência imperial limitada por quatro anos, sofre necessariamente a tentação de pressionar o Legislativo para que este último faça ou aprove leis favoráveis ao programa e pretensões presidenciais. De modo idêntico, as pressões sobre o judiciário para que reconheça a legitimidade das mesmas leis.
Dificilmente o nosso Estado e a sociedade entrariam na qualificação de formas democráticas. É preciso apurar, hoje, as noções de democracia, federalismo, sociedade civil etc.,  se quisermos pensar o mundo brasileiro. O nosso modo de unir os  Estados tem pouco de “federalismo” e muito de Império. Tomemos a indicação da jurista Anna Gamper que analisa as formas federativas para apontar as fraturas no projeto da União Européia :  “Por unanimidade, as definições de federalismo reconhecem o fundamento da palavra latina foedus que significa “pacto”. Todas as teorias concordam que federalismo é um princípio que se aplica ao sistema que consiste em pelo menos duas partes constituintes, não totalmente independetes que, juntas, formam o sistema como um todo. O federalismo, pois, combina o princípio da unidade e da diversidade (concordantia discors). As partes constituintes devem ter poderes próprios e devem ser admitidas a participar do nível federal.”.([91])  Da definição escolhida pela autora, tomemos a parte onde ela afirma a exigência sine qua non que declara o seguinte : “as unidades constituintes devem ter poderes próprios”. Desde a Independência, o Poder Central brasileiro monopoliza todas as prerrogativas do Estado e não as partilha com os demais entes, supostamente unidos hoje por laços de federação. Se em nosso caso foedus significasse “pacto”, teríamos gráus crescentes de autonomia, dos municípios ao Poder Central.
Como o Império herdou as terras coloniais portuguêsas, para ele o mais urgente era garantir as fronteiras do enorme país e impedir a secessão das províncias. Nesse fito, a repressão militar foi a tônica, o que se tornou dramático durante a Regência, quando várias unidades levantaram-se em busca não de autonomia, mas de plena soberania. A história do Brasil, desde aquela época até 1932 (Revolução Constitucionalista de São Paulo), tem sido a cronica de um controle férreo das Províncias, depois Estados, pelo Poder Central. É como se cada Estado, sobretudo os que se levantaram em armas (Rio Grande do Sul, Pernambuco, Pará, Bahia, São Paulo, para recordar apenas alguns deles) fosse submetido à invasão permanente dos que dirigem o todo nacional. Resulta que a nossa “Federação” concede pouquíssima autonomia aos Estados e Municípios, em todos os planos da vida política, econômica, etc.
A partir de Brasilia, regras uniformes determinam até os detalhes da ordem nacional, desconhecem deliberadamente as diferenças regionais, culturais, geográficas, etc. Do Oiapoque ao Chui, há uma uniformização gigantesca que obriga cada uma das regiões a se pautar pelo tempo longo da enorme burocracia federal, perdendo tempo precioso para o experimento e modificações das políticas públicas em plano particularizado. Enquanto em outras Federações, como o norte-americana (e apesar do grande centralismo daquele país) vigoram leis diversas em termos penais, educacionais, tecnológicos, etc., no Brasil a mão de ferro do Estado central controla, dirige, pune e premia os Estados, segundo sustentem os interesses dos ocupantes temporários da Presidência. Nesse controle, as oligarquias regionais surgem como operadores de face dupla : servem para trazer os planos do Poder Central aos Estados e para levar ao mesmo Poder as aspirações de Estados e Municipios. O lugar onde as negociações entre os dois níveis (Central e Estadual) ocorrem, normalmente é o Congresso. Alí,  Presidência e  Ministérios buscam apoio aos seus planos, inclusive e sobretudo, de leis. É impossível conseguir recursos orçamentários, por exemplo, sem as “negociações” e nelas o modus operandi identifica-se ao conhecido “é dando que se recebe”. Assim, os planos federais de inclusão social e democratização societária patinam na enorme generalidade do “grande Brasil”, enquanto as unidades aguardam as “providências” de uma burocracia pesada, incapaz de entender os vários ritmos e formas de vida e pensamento regionais.
Nos impostos, a concentração irracional de poderes deixa  Estados e municípios sempre à mingua de recursos. Verbas provenientes de impostos ou a eles ligadas, como no caso das exportações, não são repassadas às unidades ou não são repassadas em tempo certo, permanecendo nas mãos dos Ministérios Economicos. Governadores e prefeitos são reduzidos à quase mendicância junto ao Poder Central. Não ignoro as dificuldades gigantescas, se quisermos modificar esta forma de relacionamento federativo em nosso país. Valho-me novamente da jurista Anna Gomper : “A economia política do federalismo e o federalismo fiscal tornaram-se um dos mais extensos e difíceis campos interdisciplinares  da pesquisa dobre o federalismo, onde os conceitos de asimetria, competição e co-operação desempenham papel importante. Também é o campo em que os níveis inferiores que não participam do sistema, como os municípios, são admitidos excepcionalmente a entrar na arena como ´partes terceiras’. As relações financeiras entre a unidade central e as partes mais baixas e as terceiras partes são de suma importância para o sistema como um todo. A estabilidade financeira e a igualização, bem como a cooperação entre as partes da base são obrigatórias para um efetivo sistema federal. A distribuição das competências não é completa se não existem regras que dividem os poderes financeiros entre o poder central e as unidades constituintes. Se as partes constituintes que precisam de recursos para financiar suas responsabilidades as recebem sobretudo de subsídios que são a elas alocados pela unidade central (e devem ser acompanhados por certas condições que restringem seu poder de gasto) o arranjo fiscal parecerá um sistema de Estado não federal e não tanto um Estado federal que pressupões teóricamente gráus de autonomia financeira das partes constituintes, isto é, o poder de arrecadar taxas e gastar orçamentos próprios”. É praticamente impossível chegar à democratização da sociedade sem a efetiva federalização  do Brasil. Um dia antes da escolha de Aldo Rebelo para a presidência da Câmara dos Deputados, assistimos a enésima caminhada de prefeitos do país inteiro rumo ao Congresso para reclamar recursos, autonomia, modificações em leis eleitorais e de estruturas municipais. Naquela tarde, como em muitas outras ocasiões, os prefeitos foram tratado como estranhos no Parlamento Federal, o que gerou um conflito só resolvido com o emprego da força física pela segurança da Casa das Leis. Enquanto tal situação permanecer assim, a fábrica das manobras corruptas (nas duas pontas, nos municípios e na capital da República) estará em pleno funcionamento.
Termino essa parte de minhas considerações citando o longo mas relevante texto de um  jurista que muito se preocupa com a forma democrática e republicana do nosso país.
“A Constituição dos Estados Unidos criou o regime presidencial; nós engendramos o presidencialismo, que é a sua perversão máxima. Lá, o equilíbrio dos Poderes republicanos funciona harmoniosamente, num engenhoso mecanismo de checks and balances que faz inveja aos mais competentes relojoeiros. Aqui, a hipertrofia dos poderes presidenciais gerou um monstro macrocefálico, cujos membros são todos absorvidos pela cabeça. Para sermos justos, porém, é preciso reconhecer que essa aberração institucional não surgiu com a república, pois ela já estava presente e atuante durante todo o período imperial. O que se fez tão só, com a derrubada da monarquia, foi uma adaptação semântica: passamos do império autêntico ao presidencialismo imperial. Na obra clássica em que fez o panegírico do pai, Joaquim Nabuco apenas uma vez permitiu-se censurá-lo. Foi a propósito de uma Circular de 7 de fevereiro de 1856, pela qual o velho Senador, em sua qualidade de Ministro da Justiça, entendeu de ditar regras de julgamento aos magistrados. "É o traço saliente do nosso sistema político", escreveu Joaquim Nabuco, "essa onipotência do Executivo, de fato o Poder único do regime". "Apesar de todo o antogonismo de muitas de suas idéias com esse sistema, principalmente em matéria de garantias individuais e apesar da guerra que moveu à invasão francesa do contencioso administrativo, (Nabuco pai) foi um dos fundadores da onipotência do governo, convertido em última instância dos poderes públicos".
A República acentuou a onipotência do Chefe do Poder Executivo, “ao cobri-la com o manto da irresponsabilidade, que a Constituição de 1824 reservava ao Imperador. (…) Atualmente, o Presidente da República não se limita a exercer um poder absoluto no ramo executivo do Estado: ele é também legislador, e dos mais prolíficos. O volume de medidas provisórias editadas e reeditadas, a maior parte delas sem a menor relevância ou urgência, já ultrapassa largamente o número de leis votadas pelo Congresso Nacional, desde a promulgação da Constituição. Para a convalidação espúria desse abuso, concorreu decisivamente a mais alta Corte de Justiça do País. Neste período crespuscular do Estado de Direito, o Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é ´a guarda da Constituição´ (art. 102), tem transigido com todos os desvios, relevado todas as arbitrariedades, admitido todas as prevaricações. A pá de cal na indispensável independência do Supremo Tribunal Federal para custodiar a inviolabilidade da Constituição foi lançada com a Emenda Constitucional nº 3, de 1993, instituindo a "ação declaratória de constitucionalidade" (art. 102 - I, a). O judicial control, sem sombra de dúvida a maior criação constitucional dos norte-americanos, surgiu como instrumento de defesa dos direitos individuais contra o mais nocivo dos abusos políticos, aquele que associa Legislativo e Executivo na comum infringência da Constituição. No sistema presidencial de governo, com efeito, a lei não é apenas o ato do Poder Legislativo: ela conta também, necessariamente, com a aprovação do Executivo, que tem o poder de vetá-la. Quando o Presidente da República sanciona uma lei inconstitucional, ele se acumplicia com o legislador na violação da Carta Magna. Ora, a ação declaratória de constitucionalidade´ veio subverter inteiramente os termos dessa equação política. Ela não é uma defesa da cidadania contra o abuso governamental, mas, bem ao contrário, uma proteção antecipada do Governo contra as demandas que os cidadãos possam ajuizar para defesa de seus direitos. É uma espécie de bill de indenidade que o Judiciário outorga aos demais Poderes, um nihil obstat legitimador da ação governamental, antes que os cidadãos tenham tempo de reclamar contra ela. Por isso mesmo, o processo dessa aberrante demanda é sui generis: não há contraditório, porque não há lide. Em se tratando de argüição de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, o Procurador-Geral da República deve ser previamente ouvido, e o Advogado-Geral da União defende o ato ou o texto impugnado (art. 103, §§ 1º e 3º). Mas no processo da ação declaratória de constitucionalidade, os autores agem sem contraditório: o Governo tem as mãos livres para demandar, sem que ninguém defenda os interesses dos governados. Por força desse vicioso mecanismo, a nossa Corte Suprema deixa de ser um tribunal, para se tornar um órgão oficial de consulta. Troca a posição de guarda da Constituição pela de colaborador do Governo”. ([92])
Termino aqui. Para refletir sobre a independência dos juízes, iniciei o trabalho acentuando o começo do Estado moderno com as teorias absolutistas, tanto religiosas quanto laicas, tanto as de James I quanto as de Hobbes e assemelhados. Alí, o juiz único é o soberano e os juízes são por ele controlados. Legislador, Executor e Juiz, o soberano não pode aceitar nenhuma independência dos tribunais inferiores. Esta diretiva foi questionada nas revoluções do século 17 da Inglaterra e do século 18 na América do Norte e na França. Mas sobretudo no último país a Revolução, ao desembocar na ditadura e no Terror, permitiu o retorno do absolutismo com o poder imperial napoleônico. Não é preciso recordar que nesses regimes o juiz não é independente, pelo contrário. No Brasil, com a tentativa de impedir aqui os “excessos” do liberalismo e, mesmo, da soberania popular, foi produzido um Estado dirigido no cimo por um soberano que detinha o poder de intervir nos demais poderes, o que impedia a autonomia do judiciário. Com a república, o centralismo e o papel eminente do Chefe de Estado o conduz a exercer poderes imperiais, o que não raro atenua a autonomia dos demais poderes, incluindo o judiciário. Como um juiz individual, como a categoria dos juízes pode julgar de modo independente, se o Estado brasileiro não pratica de fato a autonomia dos poderes e se o “imperador” que sobrevive no cargo presidencial consegue,  nos tribunais supremos, decisões que atentam contra o magistrado comum? Sei bem que medidas como o Conselho Nacional de Justiça é festejado entre os juizes. Sei bem que a sumula vinculante possui forte apoio entre eles. Mas pergunto como cidadão que estuda a burocracia no mundo e no Brasil :  tais medidas constituem avanços sem óbices do Estado rumo à democracia e ao direito, ou também traduzem aspirações da Presidência da República na perene tentativa aplainar a sua via e se garantir, sempre mais, como poder superior aos demais? O Conselho de Justiça não implica em nenhuma ordem de negociação política passível de ser orientada pelos Executivos estaduais (ligados a oligarquias e segmentos poderosos do mercado e da política) e pelo Executivo nacional, cujos vínculos com o Parlamento ainda se encontram no tristemente famoso “é dando que se recebe”? Não seria necessário vigiar com constante cautela os processos de escolha dos que têm assento no Conselho referido? Um tal Conselho pode ser de fato eficaz na democratização do Judiciário se o Executiva continua a possuir hegemonia no Estado, com pretensões sem limites? E afinal, o princípio da accountability, mesmo que imposto ao judiciário, quem garante que ele será assumido pelo governo central? Em país onde o segredo passa, muito facilmente, pela espionagem dos cidadãos e das instituições e no qual as práticas do SNI ainda existem no cotidiano, como praticar em um poder apenas a máxima transparência? E note-se que sou um crítico do segredo em todos os setores da vida estatal. Se um poder se abre à inspeção da cidadania, excelente. Mas e se o mais forte dos poderes, o que detêm a chave dos cofres e as armas, a propaganda e a espionagem oficial, o que enceta convênios com orgãos repressivos de todos os países, mantem uma política de sigilo (inclusive em documentação histórica de épocas ditatorias, de tal modo que é mais fácil ler os textos de nosso pretérito hediondo em Londres, Paris ou nos EUA do que em nossos arquivos), é prudente abrir os procedimentos do judiciário, sem cautelas? Lembremos que mesmo no absolutismo de Bacon os juízes, embora sob o trono do rei, eram leões. A democratização sem maiores cautelas não significaria arrancar as garras dos leões, encerrando a sua domesticação iniciada no Império e na república, em especial nas ditaduras que tomaram boa parte do século XX brasileiro? São questões que não julgo ociosas, porque da resposta sobre a isonomia dos poderes reside a outra, sobre a independência dos juízes.
Em interessante livro sobre Carl Schmiit, um autor recente pergunta, em capítulo estratégico para sua análise sobre o Presidente do Reich : “Guardião ou Usurpador da Constituição?”. ([93]) Enquanto existirem no Executivo as pretensões de manter a Constituição sob sua tutela, não teremos Estado de direito garantido entre nós.  “O Estado de direito é bem  traduzido pela réplica celebre do moleiro de Potsdam (…) Es gibt noch Richter in Berlin”. Nem Frederico II conseguiu se opor ao direito de propriedade do moleiro, mesmo que o seu moinho fosse barulhento e incomodasse o soberano no  castelo de Sans souci. Isto é o Estado de direito. E nada mais.” ([94]) Creio que o Estado de direito é algo mais, que me perdoe a parlamentar belga que emitiu as considerações citadas.Mas deixemos a Belgica e olhemos nossa pátria. Apesar de todas as pressões, os tribunais de base permitiram e permitem que os cidadãos afirmem aos presidentes, a todos os presidentes da república, “existem juízes no Brasil”. Esperemos que essa realidade se expanda para o alto, de modo que possamos dizer, com o mesmo júbilo do cidadão germânico : “Existem juízes em Brasilia”. Esta, por enquanto, é a  única esperança de que os presidentes não continuarão a usurpar a alma de nossa Carta Magna.
Roberto Romano










[1] Wirtschaft und Gesellschaft. Fünfte Revidierte Auflage. (Tübingen, J.C. B. Mohr, 1972), página 835. Cf. também a tradução inglêsa: Economy and Society, an outline of Interpretative Sociology. Guenther Roth e Claus Wittich (Berkeley, University of California Press, 1978), página 1402. 
[2] Cf. Roberto Romano: “Soberania, segredo, Estado democrático”. Revista Política Externa, volume 13, no 1, Junho/Julho/Agosto 2004. Página 15 até página 28. E também, do mesmo autor, cf.  “Reflexões sobre impostos e Raison d´Etat”. Revista Economia Mackenzie, Ano 2, número 2, página 76 e seguintes. O texto pode ser encontrado em forma eletrônica, com notas e indicações bibliográficas no seguinte endereço : http://www.mackenzie.com.br/editoramackenzie/revistas/economia/eco2n2.htm

[3] Wirtschaft und Gesellschaft, página 573. Cf. a tradução espanhola:  Economia y Sociedad, Esbozo de sociologia comprensiva. Winckelmann, Johannes e Echavarria, José Medina (Mexico, FCE, 1969), T. II, página 745.
[4] Weber, Economia y Sociedade, ed. cit. T II, página 749.
[5] Cf. Schmitt, Carl : “O problema da legalidade”, resposta de Carl Schmitt ao Tribunal de Nuremberg (13/05/1947) à pergunta : “Porque os Secretários de Estado seguiram Hitler ?”. Uso a edição italiana : Le categorie del ´Politico` (Bologna, Il Mulino, 1972), páginas 279-292. Eu sublinho.
[6] Cf. Fortier, John, C. : Lions under the throne Francis Bacon´s Understanding of a Modern Judicial Power. (Boston College, Department of Political Science,  2000), no site eletrônico Digital Dissertations, http://wwwlib.umi.com/dissertation

[7] Todo esse desenvolvimento é feito com base no texto acima citado de Fortier.
[8]  Francis Bacon : Of judicature.

[9] Francis Bacon, “Of Judicature” in  The Moral and Historical Works of Lord Bacon, including Essays, etc.. Joseph Devey (Ed.), (London, George Bell & Sons, 1874), páginas 146 150.  A última citação é de Santo Agostinho nas Confissões (livro 12, cap. 18) : “Quibus omnibus auditis et consideratis, nolo verbis contendere; ad nihil enim utile est nisi ad subversionem audientium. ad aedificationem autem bona est lex, si quis ea legitime utatur, quia finis eius est caritas de corde puro et conscientia bona et fide non ficta; et novit magister noster, in quibus duobus praeceptis totam legem prophetasque suspenderit. quae mihi ardenter confitenti, deus meus, lumen oculorum meorum in occulto, quid mihi obest, cum diversa in his verbis intellegi possint, quae tamen vera sint? quid, inquam, mihi obest, si aliud ego sensero, quam sensit alius eu senisse, qui scripsit? omnes quidem, qui legimus, nitimur hoc indagare atque conprehendere, quod voluit ille quem legimus, et cum eum veridicum credimus, nihil, quod falsum esse vel novimus vel putamus, audemus eum existimare dixisse. dum ergo quisque conatur id sentire in scripturis sanctis, quod in eis sensit ille qui scripsit, quid mali est, si hoc sentiat, quod tu, lux omnium veridicarum mentium, ostendis verum esse, etiamsi non hoc sensit ille, quem legit, cum et ille verum nec tamen hoc senserit ?”  Agostinho parte da Primeira Epistola a Timóteo (1.4-9): “Como te roguei, quando parti para a Macedônia, que ficasses em Éfeso, para advertires a alguns que não ensinem outra doutrina, nem se dêem a fábulas ou a genealogias intermináveis, que mais produzem questões do que edificação de Deus, que consiste na fé; assim o faço agora. Ora, o fim do mandamento é a caridade de um coração puro, e de uma boa consciência, e de uma fé não fingida. Do que desviando-se alguns, se entregaram a vãs contendas, querendo ser doutores da lei e não entendendo nem o que dizem nem o que afirmam. Sabemos, porém, que a lei é boa, se alguém dela usa legitimamente, sabendo isto: que a lei não é feita para o justo, mas para os injustos e obstinados, para os ímpios e pecadores, para os profanos e malvados, para os parricidas e matricidas, para os homicidas, para os fornicadores, para os sodomitas, para os roubadores de homens, para os mentirosos, para os perjuros e para o que for contrário à sã doutrina, conforme o evangelho da glória do Deus bem-aventurado, que me foi confiado”.

[10] “Lei é o mandamento daquela pessoa, homem ou assembléia, cujos preceitos exigem a obediência” (De cive, XIV, 1).  
[11] Hobbes, Leviatã, Ed. Macpherson, página 312.
[12] Bacon citado por Markku Peltonen: “Introduction” ao The Cambridge Companion to Bacon (Cambridge, University Press, 1996), página 22. 
[13] Cf. Markku Peltonen: “Bacon´s political philosophy”, in The Cambridge Companion to Bacon, ed. cit. páginas 283 e seguintes.
[14] Cf. Christopher Hill : Intelectual Origins of the English Revolution (London, Panther Books, 1972), página 98.
(6) Esse ponto é tratado de maneira oposta por Spinoza. Sendo a força física um elemento do espaço e os juízos a modificação do pensamento e sendo ambos, pensamento e força física, modos da substância infinita, Deus ou Natureza, cada indivíduo possui em si mesmo a força e o pensamento que seguem ao infinito. Não é possível arrancar deles a força e o juízo próprios. Algo só pode ser movido por algo que apresenta as mesmas determinações modais. Um corpo não pode ser movido ou forçado pelo pensamento. E um pensamento só pode ser modificado por outro pensamento. Usar a força para impôr a soberania é um erro ontológico e epistemológico, e  violência que não garante o Estado, visto que os indivíduos recebem o pensamento da substância infinita divina. Pode-se tentar controlar os pensamentos, mas ele não aceita os limites da força física e os limites da imaginação religiosa ou política. Este é o sentido da frase spinozana quando o Eleitor Palatino convidou o filósofo para dar aulas sem “perturbar a religião oficialmente estabelecida”.  Resposta  clara: “Desconheço em quais limites minha liberdade filosófica deveria ser contida para que eu não parecesse desejar a perturbação da religião estabelecida”. (Carta a Fabritius, 30/03/1773). Cf. Spinoza. Oeuvres complètes. (Paris, Gallimard, 1954), Coleção Pléiade, página 1284.
[16] Sainte Beuve (Port-Royal) diz que entre Hobbes e Pascal há mais proximidade do que se imagina. A questão do jogo e do truque é analisada com a perspectiva do poder e da justiça por Pascal, sendo continuado no século 18 por filósofos como Condorcet. 
[17] De cive, 12 in Gert, B. (Ed.) : Thomas Hobbes Man and Citizen (Cambridge, Hackett, 1993, páginas  254-255. Esta crítica hobbesiana em imagens é seguida no século 18 por Edmund Burke, um dos maiores escritores contra-revolucionários que, nas  Reflections on French Revolution indica as filhas de Pelias de modo idêntico.To avoid, therefore, the evils of inconstancy and versatility, ten thousand times worse than those of obstinacy and the blindest prejudice, we have consecrated the state, that no man should approach to look into its defects or corruptions but with due caution, that he should never dream of beginning its reformation by its subversion, that he should approach to the faults of the state as to the wounds of a father, with pious awe and trembling solicitude. By this wise prejudice we are taught to look with horror on those children of their country who are prompt rashly to hack that aged parent in pieces and put him into the kettle of magicians, in hopes that by their poisonous weeds and wild incantations they may regenerate the paternal constitution and renovate their father's life”. O texto de Edmund Burke pode ser encontrado no seguinte lugar da Internet : http://www.cpm.ll.ehime-u.ac.jp/AkamacHomePage/Akamac_E-text_Links/Burke.html

[18] Cf. The Elements of Law Natural and Politic / by Thomas Hobbes Electronic Text Center, University of Virginia Library.
[19] “Le précis de cet ouvrage est que, sans la paix il n'y a point de sûreté dans un État, et que la paix ne peut subsister sans le commandement, ni le commandement sans les armes; et que les armes ne valent rien si elles ne sont mises entre les mains d'une personne; et que la crainte des armes ne peut point porter à la paix ceux qui sont poussés à se battre par un mal plus terrible que la mort, c'est-à-dire par les dissensions sur des choses nécessaires au salut. Ejus autem summa haec fuit, sine Pace impossibilem esse incolumitatem, sine Imperio Pacem, sine Armis Impe­rium, sine opibus in unam manum collatis nihil valere Arma, neque metu Armorum quicquam ad pacem profici posse in illis, quos ad pugnandum concitat malum morte magis formidan­dum; nempe dum consensum non sit de iis rebus, quae ad salutem aeternam necessariae creduntur, pacem inter cives, non posse esse diuturnam”. Pierre Bayle, Artigo “Hobbes do Dictionnaire Historique et Critique. 4e édition, Tome Second (C-I). Amsterdam et Leyde 1730



[20] Thomas Hobbes Leben und Lehre (Stuttgart-Bad Cannstatt, 1971), páginas 272-273.
[21] Cf. El Asalto a la Razon. La trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. (Barcelona, Grijalbo, 1968), páginas 480-481.
[22] Cf. Yves Charles Zarka: “Langage et pouvoir” in Hobbes et la pensée politique moderne.(Paris, PUF, 1995), página 63.
[23] Hobbes, Thomas : The Elements of Law, 1, 5. “Of Names, Reasoning, and Discourse of the Tongue”. Electronic Text Center, University of Virginia Library. (http://etext.lib.virginia.edu/toc/modeng/public/Hob2Ele.html)
[24] Citado por Michèle Aquien e Georges Molinié : Dictionnaire de rhétorique et de poétique (Paris, Librairie Générale Française, 1996, páginas 93.
[25] Thomas Hobbes, Behemoth; or, the Long Parliament (1682), ed. Ferdinand Tönnies (London: Simpkin, Marshall, and Co., 1889; reprint ed., Chicago: University of Chicago Press, 1990), página p. 62.
[26]  Leviathan, ed. C.B. Macpherson, Cap. 43, pp. 609-61. Cf. Simon Kow, “Hobbes’s Critique of Miltonian Independency” in   Animus, A Philosophical Journal for our Time  (http://www.swgc.mun.ca/animus/current/kow.htm). Kow cita o Leviatã  :  “there have been in all times in the Church of Christ, false Teachers, that seek reputation with the people, by phantasticall and false doctrines; and by such reputation (as is the nature of Ambition), to govern them for their private benefit.” 

[27] Cf. Mark Whitaker, “Hobbes’s View of the Reformation,” History of Political Thought 9 (1988): 49 pp. 54-55; Stephen Holmes, “Political Psychology in Hobbes’s Behemoth,” in Thomas Hobbes and Political Theory, ed. Mary G. Dietz (Lawrence: University of Kansas Press, 1990), pp. 128-130. Segundo Kow, “The Political turmoil for Hobbes was in part a result of the misuse of language and the consequent disjunction between things and their proper signification”.
[28] Pierre Vidal-Naquet:  “De Platon, du mensonge et de l'idéologie”, in Les assassins de la mémoire (Paris, Points Seuil, 1995).
[29] “In this estate of man therefore, wherein all men are equal, and every man allowed to be his own judge, the fears they have one of another are equal, and every man's hopes consist in his own sleight and strength; and consequently when any man by his natural passion, is provoked to break these laws of nature, there is no security in any other man of his own defence but anticipation. And for this cause, every man's right (howsoever he be inclined to peace) of doing whatsoever seemeth good in his own eyes, remaineth with him still, as the necessary means of his preservation. And therefore till there be security amongst men for the. keeping of the law of nature one towards another, men are still in the estate of war, and nothing is unlawful to any man that tendeth to his own safety or commodity; and this safety and commodity consisteth in the mutual aid and help of one another, whereby also followeth the mutual fear of one another. "2":     2. It is a proverbial saying, inter arma silent leges”. Elements of law, I, XIX, 1-2.

[30] O Cambridge Advanced Learner´s Dictionary apresenta as seguintes explicações para sleight : “sleight of hand: speed and skill of the hand when performing tricks: Most of these conjuring tricks depend on sleight of hand.”  E também “skilful hiding of the truth in order to gain an advantage: By some statistical sleight of hand the government have produced figures showing that unemployment has recently fallen.”  As duas definições entram perfeitamente no que afirmamos sobre a razão de Estado, um jogo desonesto vencido por truques e por embustes.
[31] Numa bibliografia imensa, cito apenas o texto de Pierre Aubenque, La prudence chez Aristote, (Paris, PUF, 1963). Os interessados poderão pesquisar o tema junto aos especialistas em Aristóteles.
[32] Cf. Gianfranco Borrelli: Ragion di Stato e Leviatano. Conservazione e Scambio alle origini della modernità politica. (Bologna, Il Mulino, 1993), páginas 230 e seguintes.
[33] “Pois vendo que as vontades da maioria dos homens são governadas apenas pelo medo, e que onde não existe poder coercitivo não existe medo; as vontades da maioria dos homens seguiriam suas paixões ambiciosas de prazer, avidez e semelhantes, para quebrar os seus pactos, quem desejasse guardá-las, seriam postos em liberdade, sem outra lei senão a que sai deles mesmos”. Elements of law, Parte II, Cap. 1. “Of the Requisites to the Constitution of a Commonwealth”.
[34]Every sovereign ought to cause justice to be taught, which, consisting in taking from no man what is his, is as much as to say, to cause men to be taught not to deprive their neighbours, by violence or fraud, of anything which by the sovereign authority is theirs”. Leviatã, cap. 30 : “Of the office of the sovereign representative”.


[35] O mesmo cap. 30, na edição Macpherson, página 377.
[36] Página 379.
[37] Ed. Macpherson, página 380. Quem  segue a tradução brasileira da Ed. Martin Claret, preste atenção porque esta última frase (and in another place concerning Kings, that they are Gods)  falta alí. Citação do Salmo 81, 6 : Ego dixi : Dii estis, et filii Excelsi omnes. Na Biblia do Rei James I : “I have said, ye are Gods”. A frase hobbesiana radicaliza o Rei James I no seu livro On divine right of Kings (capítulo 20) : “The state of monarchy is the supremest thing upon earth; for kings are not only God's lieutenants upon earth, and sit upon God's throne, but even by God himself are called gods. There be three principal similitudes that illustrate the state of monarchy: one taken out of the word of God; and the two other out of the grounds of policy and philosophy. In the Scriptures kings are called gods, and so their power after a certain relation compared to the divine power. Kings are also compared to fathers of families: for a king is truly Parens patriae, the politique father of his people. And lastly, kings are compared to the head of this microcosm of the body of man. Kings are justly called gods, for that they exercise a manner or resemblance of divine power upon earth: for if you will consider the attributes to God, you shall see how they agree in the person of a king. God hath power to create or destrov make or unmake at his pleasure, to give life or send death, to judge all and to be judged nor accountable to none; to raise low things and to make high things low at his pleasure, and to God are both souls and body due. And the like power have kings: they make and unmake their subjects, thev have power of raising and casting down, of life and of death, judges over all their subjects and in all causes and yet accountable to none but God only. . . I conclude then this point touching the power of kings with this axiom of divinity, That as to dispute what God may do is blasphemy....so is it sedition in subjects to dispute what a king may do in the height of his power. But just kings will ever be willing to declare what they will do, if they will not incur the curse of God. I will not be content that my power be disputed upon; but I shall ever be willing to make the reason appear of all my doings, and rule my actions according to my laws. . . I would wish you to be careful to avoid three things in the matter of grievances: First, that you do not meddle with the main points of government; that is my craft . . . to meddle with that were to lesson me . . . I must not be taught my office.Secondly, I would not have you meddle with such ancient rights of mine as I have received from my predecessors” . Os interessados podem ler o livro de James I,  (Basilikon Doron) onde são dados os argumentos sobre a proximidade entre Deus e o Rei. A versão do livro está no endereço: http://www.jesus-is-lord.com/kjdivine.htm .  Em James I e Hobbes, a sequência do Salmo é “esquecida”: “ but ye shall die like men, and fall like one of the princes”. Cf. Roberto Romano, O Caldeirão de Medéia (SP, Perspectiva, 2001) páginas 338-339. “Quem recomenda que a lei deve governar parece recomendar que só Deus e a razão devem governar, mas ele também deveria acrescentar que se um homem governa, soma-se um animal também; porque o apetite é como um animal selvagem e a paixão deturpa o governo do melhor homem. Logo, a lei é razão sem desejo = ho men oun ton nomon keleuôn archein dokei keleuein archein ton theon kai ton noun monous, ho d' anthrôpon keleuôn prostithêsi kai thêrion: te gar epithumia toiouton, kai ho thumos archontas diastrephei kai tous aristous andras. dioper aneu orexeôs nous ho nomos estin”. Aristóteles, Politica, 3. 1287a,   Site Perseus.
[38] Cf. Jonathan I. Israel: Radical Enlightenment. Philosophy and the making of Modernity, 1650-1750 (New York, Oxford University Press, 2001), página 258 e seguintes.
[39] Cf. Gooch, G.P. : Political Thought in England, from Bacon to Halifax (Londo, University Press, 1946), páginas 2 a 45.
[40] Bracton no século 13 viveu na aurora da Carta Magna. As suas Laws and Customs of England (1240 – 1260) constituem uma enciclopédia juridica fundamental para o conhecimento do direito inglês.
[41] Citado por Ernst Kantorowicks, The King´s two bodies (Princeton, New Jersey, 1970) p. 155. Este passo de minhas análises baseia-se naquele autor.
[42] Georg Simmel, “The sociology of secrecy and of secret societies”, in American Journal of Sociology, V. 11, 4, janeiro 1906. Citado por   Wolfgang Kaiser . «Pratiques du secret à l'époque moderne». Rives, 17-2004, Pratiques du secret, XVe-XVIIe siècles.no seguinte endereço:   http://rives.revues.org/document102.html. Este site traz excelente análises sobre o problema do segredo. Cf. também Jean-Pierre Chrétien Goni, “Institutio arcanae”, p. 169 e ss. Cf. também Sarubbi, Antonio e Pasqualina Scudieri : I teorici della ragion di stato. Mito e realtà. Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane. 2000.
[43] Ainda em 1604, nos Discours Chrestiens de la Divinité, Creation, Redemption et Octaves du Sainct Sacrement, Charron afirma que o título de honra  proximo à Divindade é o de rei. Ele  distingue entre a “adoração” alta, a que se volta em direção ao divino, e a baixa, deirigida ao rei. Cf. Borreli, G. Ragion di Stato e Leviatano. Bologna, Il Mulino Ed., 1993, p. 62, nota 74. 
[44] Giovanni Botero, La ragion di Stato. Roma, Donzelli Ed., 1997, pp. 22 e ss.
[45] Cf. Jean-Pierre Chrétien-Goni: “Institutio Arcanae”, in Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: Le pouvoir de la raison d´état. Paris, PUF, 1992, p. 137.
[46]  Cf. La Boétie, E. : Le discours de la sevitude volontaire. Paris, Payot, 1976.  Há uma edição em português, publicada pela Ed. Brasiliense.
[47] Cf. “Une oeuvre inconnue de la Boétie. Les mémoires sur l ´Édit de janvier 1562” . Editado por Paul Bonnefon. In Revue d´Histoire littéraire de la France. 24e année. 1917. Paris. Librairie Armand Colin, 1917.
[48] La Boétie, Etienne : Mémoires….ed. cit. p. 12.
[49] Considerações Políticas sobre os golpes de Estado (1639) Citado por Jean-Pierre Chrétien Goni, op. cit. p. 141.
[50] Cf. Otto Gierke: Natural Law and the theory of society. 1500 to 1800. Boston, Beacon Press, 1960, p. 48. Para este passo, é importante consultar o livro de Gierke sobre Althusius : Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien. Uso a tradução italiana : Giovanni Althusius e lo sviluppo storico delle teorie politiche giusnaturalistiche. Contributo alla storia della sistematica del diritto. Torino, Einaudi, 1974, a cura de A. Giolitti.
[51] Gierke, Althusius….ed. cit. pp. 81-83.
[52]  “… if the King or Magistrate prov´d unfaithfull to his trust, the people would be disingag´d”.Um governo (Milton cita Aristóteles) “unnaccountable is the worst sort of Tyranny; and least of all to be endur´d by free born men” Cf. John Milton Selected Prose edited by C.A. Patrides. Harmondsworth, Penguin, 1974, pp. 249ss.
[53] Thomas Edwards : Grangraena, Terceira Parte (1646). Edição fotostática editada pela The Rota Ed. e Universidade de Exeter. 1977, p. 16.
[54] Cf. sobretudo Christopher Hill:  Intellectual Origins of the English Revolution.London, Granada Publishing Ltd. 1965. Também Christopher Hill (Ed.) The Levellers and the English Revolution. Manchester, C, Nichollls & Company, 1961. 
[55] Cf. Olivier Lutaud: Des Révolutions d´Angleterre à la Révolution Française. Le Tyrannicide & Killing no Murder (Cromwell, Athalie, Bonaparte). La Haye, Martinus Nijhoff, 1973. Do mesmo autor cf. Les Deux Révolutions d´Angleterre. Documents politiques, sociaux, religieux. Paris, Aubier, 1978.
[56] Diderot,  Observações sobre o Projeto de Constituição que lhe foi apresentado por Catarina 2 da Rússia Lembrança trazida por Laurent Versini, na edição que dirigiu das Oeuvres de Diderot (Paris, Robert Laffont, 1995) T. III, p. 507.
[57] Cf. Diderot, Denis : “Observations sur l ´Instruction de l ´Impératrice de Russie aux Députés pour la Confection des Lois”, in Oeuvres de Diderot, Ed. Versini citada,  T. III, p.507. 
[58] Robespierre, Relatório de 25/12/1793 à Convenção, em nome do Comitê de Salvação Pública. Esta análise pode ser lida com maiores detalhes no meu livro O Caldeirão de Medéia. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2001.
[59] Dagognet, François : Philosophie de l ´image. Paris, Vrin, 1984, pp. 186 e ss.
[60] Cf. Esprit des Lois. Livro II, capitulo II,  Paris, Gallimard (Pléiade), 1951, p243.
[61] Contrat social, Livro IV, capítulo IV. In Oeuvres complètes, Paris, L´Intégrale, 1971, T. 2, p.570.
[62] Cf. Dagognet, op. cit. pp. 192 e ss.
[63]O paradoxo exposto no Essai sur l'application de l'analyse à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des voix reapareceu na Europa e sobretudo nos EUA nos últimos tempos. Na Europa, após o trauma alemão que permitiu eleger um partido absolutamente contrário à democracia e ao Estado de direito, possibilitando uma das piores aventuras totalitárias, sempre em nome do Povo. E nos EUA, o paradoxo de Condorcet é discutido com paixão depois das últimas eleições presidenciais.  Barry Nalebuff : “The Last May Be First; In a Three-Way Race, It's Tough to Figure Out the Will of the People” . The Washington Post, 21/06/02, Barry Nalebuff é professor na Yale's School of Organization and Management. O artigo encontra-se no endereço eletrônico  seguinte http://mayet.som.yale.edu/coopetition/news/WpostJun92perot(53).html O trabalho mais conciso e explicativo deste problema foi escrito por Eric Maskin, Is Majority Rule the Best Election Method? Alí, o autor segue os passos de Condorcet e os aplica às eleições norte-americanas das quais saiu vencedor G.W. Bush. Cf. http://216.239.37.104/search?q=cache:k8ETA7Cy4UJ:www.sss.ias.edu/papers/papereleven.pdf+Condorcet+paradox+bush&hl=pt






[64] Donoso Cortés, numa lição de direito político (29 de novembro, 1836).
[65] Cortés, Obras Completas, T.I (Madrid, BAC, 1970), páginas 342-347.

[66] Cortés, "De la monarquia absoluta en Espana" (1838).
[67] Citado por Godechot, J. :  La contre-revolution (Paris,PUF, 1961).
[68] BURKE, E. : Reflections on the Revolution in France. (Middlesex, Penguin. 1976) página 141.

[69] De Maistre, J.:  Du Pape. (Genève, Droz, 1966) páginas 122-137, maiúsculas do próprio De Maistre.
[70] Schmitt, C. : Le categorie del `Político'. (Bologna, II Mulino, 1972), página 73.
[71] François-Pierre-Guillaume Guizot : Cours d'histoire moderne. Histoire générale de la civilisation en Europe, depuis la chute de l'empire romain jusqu'à la révolution française, 9e Leçon - 13 juin 1828. Electronic Library of Historiography : no seguinte endereço eletrônico: http://www.eliohs.unifi.it/testi/800/guizot/guizot_lez9.htm

[72] François-Pierre-Guillaume Guizot: Cours d'histoire moderne. Histoire générale de la civilisation en Europe, depuis la chute de l'empire romain jusqu'à la révolution française 9e Leçon - 13 juin 1828.
[73] “The liberal, like the doctrinaire, thesis, rejected the doctrine of popular sovereignty as held by Rousseau, on the ground that no individual or body of men could lay claim to sovereignty that had not been delegated. For Benjamin Constant supremacy lay in the "volonté" générale", which did not, however, imply power for the masses. It was equally dangerous to put sovereignty uncontrolled into the hands of many as into the hands of one, it must be limited by the division of power. Authority must not reside in one branch of government any more than in another, and royal power should be a "pouvoir neutre" whose function it is to set in harmonious motion the machinery of the other powers. Faguet calls Constant “egalitaire sans être démocrate"; his is one of the best definitions of the rôle of the constitutional king that has ever been made”. Nora E. Hudson: Ultra-Royalism and the French Restoration (The University Press, 1936), página 26.

[74] Cf. Benjamin Constant:  “Principes de politique applicables à tous les Gouvernements représentatifs et particulièrement à la constitution actuelle de la France”. Capitulo 1, in Cours de Politique Constitutionelle ou collection des ouvrages publiés sur le gouvernement représentatif (Paris, Guillaumin et Cie. 1872), páginas 7 e seguintes. 
Atitude semelhante a de Constant foi assumida por Schelling, antigo entusiasta da Revolução Francêsa convertido em conservador. Por exemplo : “Colocar-se interiormente acima do Estado, apenas assim cada um pode e deve manifestar sua independência que, bem compreendida, torna-se a independência de todo um povo e se torna mais poderosa contra a opressão do que o idolo tão louvado de uma constituição que, mesmo em seu país de origem, tornou-se, em mais de um aspecto, uma fable convenue (em francês no original). Não invejeis a Constituição inglêsa, porque ela saiu não de um contrato, mas da repressão e da violência e, graças a tal origem, tem acréscimos de não-razão, ausência de razão (no sentido liberal da palavra) que lhe deu até hoje a sua duração e estabilidade. Também não invejeis as massas inglêsas, numerosas e grosseiras….”. À semelhante advertência Schelling acrescenta: “Restai um povo a-politico, pois a maioria dentre vós aspira mais ser governada do que governar, por causa dos lazeres que disso retira os quais deixam a alma e o intelecto disponíveis para outras coisas, uma felicidade maior do que recomeçar todos os anos querelas políticas, discórdias que só resultam em permitir aos mais incapazes ganhar fama e adquirir importância.” Cf. Schelling :  Introdução à Filosofia da Mitologia. Uso a tradução francêsa : Introduction a la Philosophie de la Mythologie (Vingt-Troisième Leçon). (Paris, Aubier, 1946), páginas 332-333. 
[76] Constant, “Principes de politique….”. ed. cit. (eu sublinho, RR).
[77]  Para toda essa discussão, Cf. Howard G. Brown :  War, Revolution, and the Bureaucratic State: Politics and Army Administration in France, 1791-1799.( Oxford University Press, 1995).

[78] Napoleão,  Journal Moniteur, juillet 1810. Citado por Madame de Staël: Considérations sur la Révolution Française. Godechot, J. (Ed.) : (Paris, Tallandier, 1983), página 420.
[79] Seja permitido que eu cite um comentário correto sobre o nosso tema e sobre o professor Claude Lefort, que orientou há muitos anos atrás o meu doutoramento na École des Hautes Études: “Qu'est-ce que le totalitarisme sinon, au terme des analyses de Claude Lefort, la volonté de conjurer l'indétermination démocratique ? De la démocratie, le totalitarisme retiendra la souveraineté du Peuple-Un, mais voudra lui donner figure : ce sera le parti, unique ; des divisions sociales, il voudra triompher en reconduisant la société au pouvoir unique, fusionnant l'un et l'autre, abolissant la division fondamentale entre la société civile et l'État ; la légitimité, la certitude seront puisées sans conteste possible dans la nouvelle instance de savoir suprême qu'est devenu le secrétaire général du parti unique. Le monarque absolu d'Ancien Régime affirmait « L'État, c'est moi » ; le secrétaire général, en régime totalitaire, se contente de proclamer : « La société, c'est moi ». Le totalitarisme n'est donc plus, un absolu du Mal, une figure métaphysique du politique, il est une maladie historique des démocraties, lorsque celles-ci, inquiètes, fatiguées de leur indétermination fondatrice, se laissent tenter par la volonté d'occuper le lieu vide du pouvoir, d'affirmer des certitudes sur la légitimité, de donner corps à l'unité sociale. Le totalitarisme se fonde alors sur le refus du droit de l'individu, sur l'éradication des droits de l'homme, croyant ainsi boucler la boucle qui vit surgir l'invention démocratique”. O livro de Lefort analisado é Un homme en Trop. Réflexions sur l´Archipel du Goulag (Paris, Seuil, 1976). O texto citado acima que o analisa,  sem assinatura, está posto no site ADPF-Publications, do Ministério das Relações Exteriores da França:   http://www.adpf.asso.fr/

[80] Em 13 outubro de 1806, Napolão entrou na cidade de Iena. «Vi, escreveu Hegel, o Imperador, esta alma do mundo (…) É uma sensação maravilhosa, ver um tal homem que, concentrado num ponto, sobre seu cavalo, se estende sobre o mundo e o domina”.
[81] Ateoria do poder moderador neutro tem sido estudada bom bastante insistência nos últimos anos, na França e demais países. Cf. L. Jaume (Org.), Coppet, creuset de l’esprit libéral (Paris, Economica et Presses Universitaires d’Aix-Marseille 2000). . Thomaz DINIZ GUEDES “Le pouvoir neutre et le pouvoir modérateur dans la Constitution brésilienne de 1824” in Benjamin Constant en l'an 2000 : nouveaux regards. Actes du Colloque des 7 et 8 mai 1999, organisé à l'occasion du vingtième anniversaire de l'Institut et de l'Association Benjamin Constant.
[82]Seção do 3 Germinal, Ano III, citado por Patrice Rolland (Professor da Universidade Paris XII), no artigo “La garantie des Droits” in Droits fondamentaux, n. 3, décembre 2003, página 183.


[83] Referido por Patrice Rolland, op. cit. página 195.
[84] Citado por Alain Badiou, “Qu´est-ce qu ´un thermidorien?”, in Kintzler, Catherine e Rizk, Hadi (Ed.) : La République et la Terreur (Paris, Kimé, 1995), página 56.
[85] Cf. Eduardo Romero de Oliveira, “A Idéia de império e a fundação da monarquia constitucional no Brasil2 (Portugal-Brasil, 1772-1824). Anais do XVII Encontro Regional de História, ANPUH/SP/UNICAMP (2004). CD-rom. Esta última parte segue integralmente as indicações e análises deste texto.
[86] Em Homens Livres na Ordem Escravocrata (São Paulo, Unesp Ed., 1997, 5a edição), Maria Sylvia Carvalho Franco analisa com rigor a gênese do Estado brasileiro e as suas conexões com a sociedade na qual imperam o favor e a violência face a face. A autora explora a passagem do público ao privado e a superconcentração dos impostos no poder central, o que leva Municipios e Estados à perene condição de inadimplentes junto ao núcleo do poder federativo e junto aos contribuintes. Cf. especialmente os capítulos “Patrimônio Estatal e Propriedade Privada” e “As peias do passado”. Analiso esses pontos no texto “A democracia e a Ética”, incluido em O Caldeirão de Medéia (São Paulo, Ed. Perspectiva, 2001) páginas 363 e seguintes.
[87] Cf. Ivan Lins: História do Positivismo no Brasil (São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1964), página 330. Cf. também Roberto Romano: Brasil, Igreja contra Estado (São Paulo, Kayrós, 1979).
[88] Recordemos o artigo :  "Caso a segurança e a ordem públicas forem seriamente (erheblich) perturbadas ou feridas no Reich alemão, o presidente do Reich debe tomar as medidas necessárias para restabelecer a segurança e a ordem públicas, com ajuda se necessário das forças armadas. Para este fim ele deve total ou parcialmente suspender os direitos fundamentais (Grundrechte) definidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124, and 153." Não por acaso disse Carl Schmitt que  "nenhuma Constituição sobre a terra legalizou com tamanha facilidade um golpe de Estado quanto a constituição de Weimar”. 
[89] Kelsen, H.: “Wer soll der Hüter der Verfassung sein?” Die Justiz 6, 1930-1931. Citado por John P. Mccormick : Carl Schmitt´s Critique of Liberalism. Against Politic as Technology (Cambridge University Press, 1997), página 144.
[90] Para os estudos feitos sobre Carl Schmitt no Brasil, cito apenas, dentre outros, Marcos Augusto Maliska, “Acerca da legitimidade do controle da constitucionalidade”, Revista Critica Juridica 18, março de 2001, Separata de artigo. Um livro importante para a análise filosófica e que expõe o pensamento de Schmitt com muio rigor Cf. Porto Macedo Ronaldo Junior : Carl Schmitt e a fundamentação do direito (São Paulo, Max Limonad, 2001).
[91]  “A Global Theory of Federalism: The Nature and Challenges of a Federal State” in German Law Journal No. 10, 01/10/ 2005.
[92] Fabio Konder Comparato, “Réquiem para uma Constituição”, no endereço eletrônico http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/comparato/comparato_requiem.html

[93] MacCormick, op. cit. página 141.
[94] Anne-Sylvie Mouzon, Parlamento da Região de Bruxelas-Capital, Bulletin des interpellations et des questions orales Reunião de  28 de abril de 2005.

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