“Legitimidade é algo que se conquista”, diz Roberto Romano
Antonio Perez, Jornal Valor Econômico*
30 de dezembro de 2015
A legitimidade de um governante não se sustenta apenas no
ambiente institucional. Uma série de “irresponsabilidades” na governança
do país, cujo resultado é uma grave crise econômica, corroeu a
autoridade e a capacidade de governar da presidente Dilma Rousseff,
avalia o filósofo Roberto Romano, professor de ética política da
Unicamp. Para Romano, embora carregue a legitimidade do voto popular, já
que foi reeleita, Dilma carece do que chama de “legitimidade do
exercício” – e isso abre espaço para a destituição da presidente por um
processo de impeachment.
Em entrevista ao Valor, o filósofo destaca, porém, que o
vice-presidente Michel Temer também não se legitimaria de forma
automática, caso chegue ao poder por meio do processo de impeachment em
análise na Câmara dos Deputados. Sem o crivo das urnas, já que os votos
foram para a Dilma, Temer teria que construir a própria autoridade pouco
a pouco, “no cotidiano” do governo, com a “fiabilidade” da palavra.
“A legitimidade de Temer vai depender da confiança que ele granjear
com seus atos. Não sei se ele tem capacidade e liderança capazes de
atrair essa confiança”, afirma.
Sem arriscar um palpite para o desenlace da atual crise política,
Romano destaca “a falta de previsibilidade no andamento das questões”,
sobretudo após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação ao
rito do processo impeachment.
Para o filósofo, após o voto “excepcional” do ministro do STF Edson
Fachin, que manteve as decisões da Câmara sobre o andamento do processo,
os ministros Ricardo Lewandowski, presidente da corte, e Roberto
Barroso promoveram “absoluta torção de sentido” com seus votos. “Você
imaginava a partir do voto do Fachin que o STF iria assumir um caminho
de neutralidade, mas ele tomou partido pelo governo”, diz Romano. Eis a
seguir a entrevista do Valor.
Valor: Qual será o desenlace do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff?
Roberto Romano: Vivemos uma crise geral do Estado e da sociedade
brasileira, e isso impede que você diga se o impeachment vai adiante ou
não. É muito difícil fazer projeções neste momento porque as interações,
os golpes e contragolpes, sobretudo de ordem palaciana, são
muitíssimos. Depois daquele excepcional voto do ministro [do Superior
Tribunal Federal] Edson Fachin sobre o rito do impeachment seguindo uma
norma que eu conheço, veio aquela absoluta torção de sentido operada
pelo [Ricardo] Lewandowski (presidente do STF), pelo [Roberto] Barroso
e, inclusive, pelo Celso de Mello. Não há previsibilidade no andamento
das questões. Você imaginava a partir do voto do Fachin que o STF iria
assumir um caminho de neutralidade, mas ele tomou partido pelo governo.
Isso não tenho receio de dizer porque é verdade. Por outro lado, você
não sabe o que vai acontecer com o Eduardo Cunha. Também não sabe muito
qual vai ser a barganha que Renan Calheiros vai apresentar para barrar o
processo no Senado. Vai depender do destino dele na Lava-Jato. Estamos
numa encruzilhada, num momento crucial. Ainda não chegamos ao instante
necessário de dizer sim ou não absolutamente para o impeachment. As
pessoas dizem que o impeachment é golpe ou que impedir o impeachment é
golpe. É uma visão um pouco estreita e restrita do golpe. O golpe não
precisa se realizar de maneira apoteótica ou espetacular, como as
quarteladas do século 20. O golpe passa por pequenos golpes e
contragolpes que não são percebidos pela a maioria da população.
Valor: E quando chegaremos a esse momento de definição sobre o impeachment?
Romano: Nós teremos um momento crucialíssimo em março, quando as
forças políticas estarão reunidas e o STF funcionando, com o fim do
recesso. Precisamos de uma resposta, senão efetivamente o país se torna
ingovernável. Não há economia possível, não há política social. Veja o
que está ocorrendo no nível dos Estados, no Rio de Janeiro com a saúde
pública, são coisas insustentáveis. Então, não dá para passar de março.
“Você imaginava (…) que o STF iria assumir um caminho de neutralidade, mas ele tomou partido pelo governo”
Valor: O governo diz que a presidente Dilma tem a legitimidade
das urnas e que sua saída seria um golpe. Há razões para o afastamento
da presidente?
Romano: Você tem duas maneiras de definir a ilegitimidade de um
governante. A primeira é se ele consegue um título com fraude e
ilegalmente. No caso da Dilma, ela foi reeleita num processo legal,
embora tenha havido fraudes na campanha eleitoral. Ela prometeu um
programa e, como diz o Lula, entregou outro. Então, evidentemente, ficou
um pouco tisnada essa legitimidade de origem. Mesmo assim, o mandato
dela é legítimo. Mas há também a ilegitimidade de exercício. Nesse caso,
temos aí não apenas as ‘pedaladas’, mas uma série de
irresponsabilidades na governança que podem, se acumuladas e bem
sintetizadas em processo de impeachment, levar à destituição da
presidente. O fato de Dilma provocar essa incerteza econômica e social
faz com que ela passe por um processo de perda de autoridade. Não existe
poder político e estatal sem autoridade. E isso está lhe faltando. Está
lhe faltando no seu próprio partido, o PT, que não é unânime em
apoiá-la. Há uma série de fatores que não entram nessa questão das
‘pedaladas’, mas que definem bem a quase impossibilidade de governança
da parte dela.
Valor: A presidente Dilma não recupera um pouco de força se vencer a batalha do impeachment?
Romano Não. Na verdade, não lhe sobra nada. O que lhe sobra é ficar
reclusa no palácio, sem ter interlocução com a sociedade, com
empresários, com o mercado, quase sem apoio no Congresso. Como é
possível alguém querer governar nessa situação? Não que eu seja amigo do
impeachment pelo impeachment, da deposição pela deposição. No meu
entender, por maiores que fossem as dificuldades enfrentadas pelo
governo, seria melhor levá-lo ao final. Isso se o governante der sinal
de que pode enfrentar os problemas. Mas nós não vemos isso. Não há
nenhum sinal neste sentido.
Valor: O senhor fala da questão da legitimidade e da autoridade. Qual seria a legitimidade de um governo Temer?
Romano: Pode ter origem ilegítima, mas a legitimidade se conquista no
cotidiano, no trato com as reivindicações populares, com a fiabilidade
da palavra do governo. Tanto a Dilma quanto o Temer teriam em tese
condições de fazer isso. O que eu noto e que o Temer ainda não é
governante. A Dilma é governante e não tem a confiança. Evidentemente, a
legitimidade de Temer vai depender da confiança que ele granjear com
seus atos. Não sei se Temer tem capacidade e liderança capazes de atrair
essa confiança para governar. Por enquanto, ele é uma incógnita neste
ponto.
Valor: Dilma não pode recuperar a confiança para governar?
Romano: No caso da Dilma, não é que ela esteja mostrando fadiga de
material. Ela não tem material. Para as ações políticas ela precisa
ainda do patrocínio do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para a
política econômica, ela já foi de [Joaquim] Levy a Nelson Barbosa no
ministério da Fazenda. Do ponto de vista social, a todo momento ela está
se contradizendo. Ela não tem condição de manter as promessas das
eleições de 2014. A verdade é Dilma foi um desastre. Ela nunca soube
dialogar com os partidos políticos, ela sempre foi autoritária, Ela
conseguiu desarticular a base aliada herdada do Lula. E uma coisa muito
triste ter que ir até a história pessoal dos indivíduos. Mas com Dilma
não dá para evitar. Ela nunca disputou uma eleição, nunca esteve na
chefia de um município, de um Estado, nunca esteve no Senado, na Câmara
dos Deputados, nem numa Câmara de vereadores. Ela sempre foi uma
burocrata. De repente, foi colocada à frente de uma República que sem
negociação política não funciona. Ela não reuniu cabedal político porque
não tinha auxiliares nem capacidade de governança. Todos nos demos mal.
Eu gostaria honestamente que ela tivesse ido bem, que o pais não
estivesse nessa crise terrível, mas não se pode esperar colher rosas
quando apenas se semeou espinhos.
Valor: E a economia? Um governo Temer pode ajudar o país a sair da recessão?
Romano: Ele promete uma retomada neste programa “Uma ponte para o
futuro”, com uma política econômica ortodoxa e uma política social
diferente da definida pelos tucanos no poder e pelo PT. De um lado esse
programa lhe trará apoio de setores industriais e do capital financeiro,
de certa classe média, mas vai lhe trazer dificuldades sociais muito
grandes. Não é só pessoal da CUT que vai querer revanche pela saída da
Dilma. As medidas na área trabalhista tocam em questões que vem desde
[Getúlio] Vargas. É muito difícil conseguir apoio popular. O programa
traz um conjunto de medidas amargas que não estão provadas ainda em
termos de eficácia. Veja bem, a situação da política brasileira é tão
caótica que nenhum programa ortodoxo, de esquerda ou de direita, pode
ser aplicado no Brasil. Você não tem partidos minimamente homogêneos em
termos ideológicos, como se vê na Alemanha, na França. E mesmo nesses
países é imensa a dificuldade de governar, de entregar, por exemplo, um
plano de austeridade econômica que seja aceito pela população. Aqui é
muito pior. Você não tem partidos políticos no sentido da palavra, mas
federações de políticos.
“Precisamos de uma resposta, senão efetivamente o país se torna ingovernável. Não há economia possível”
Valor: O fato de ter levado o PMDB ao Planalto não vai ajudá-lo no Congresso?
Romano: Do ponto de vista de habilidade política, é evidente que o
Temer tem muito mais habilidade que a Dilma. Mas, por outro lado, o PMDB
é uma federação de oligarquias, isso não pode ser esquecido nunca. E
ele não é o oligarca mais poderoso dessa federação. Ele herdou uma
pequena oligarquia, que é a paulista, com um setor importante, mas não
todo, do grande oligarca paulista do PMDB, que era o [Orestes] Quércia.
Ele pode ser presidente da República, mas não será, nunca foi e nem vai
ser proprietário do PMDB, porque o PMDB não tem proprietário único, tem
vários donos. Isso pode trazer uma dificuldade de governança muito séria
para ele. Ele vai ter que dividir esse condomínio com Renan Calheiros,
com Jader Barbalho, com outros.
Valor: Caciques do PMDB estão sendo alvejados pela Lava-Jato. Sem
uma definição do alcance da operação, é possível costurar acordos
políticos duradouros?
Romano: A vida política brasileira é sempre instável, a situação
estrutural não é resolvida. Há muitas crises conjunturais. Faça a conta
de quantas crises e golpes de Getúlio até hoje. É muito pouco tempo para
tantas crises. A vida política é instável dentro dos partidos também.
Quando um oligarca do PMDB senta na cadeira azul do Senado, aquele seu
oligarca colega do PMDB já está preparando denúncias para sua deposição.
Eu acho que não é a Lava-Jato que trouxe a instabilidade. Ela está
manifestando um aspecto estrutural da política brasileira, que só será
resolvido com um redesenho. Muitas vezes criamos remédios para
conjunturas e esquecemos o problema estrutural do estado brasileiro.
Temos uma burocracia absolutamente pesada e inócua. E há uma
superconcentração das decisões no Poder Executivo. Esse gigante
açambarca todas as políticas públicas. Isso ameaça o desenvolvimento da
ciência e praticamente impede inovação tecnológica nas indústrias.
Difícil ser um pais competitivo com regime presidencialista autoritário.
Uma parte chave da corrupção vem dessa concentração de recursos na
União, que leva ao pagamento de intermediários para liberação de
dinheiro. É uma piada dizer que o Brasil é uma federação. Ainda é
preciso federalizar o país.
Valor: Há quem tema um ‘acordão’ político caso Dilma saia para tentar barrar o avanço da Lava-Jato. Isso é possível?
Romano: Vai ser muito difícil barrar as atividades do Ministério
Público e da Polícia Federal. Depois que ganharam autonomia com a
constituição de 88, o MP e a PF cometeram uma série de erros, de abusos
de poder. Mas, pouco a pouco, foram aprendendo. Eles adquiriram saberes e
também ferramentas tecnológicas que não existiam. Em 88, não tinha
internet, smartphone, não tinha nada. A tecnologia entrou de sola. É
muito difícil conter essa capacidade de investigação quando você tem
jovens promotores, com saberes técnicos e capacidade de utilização da
informática. Isso mostra quanto a PF e o MP estão mais avançados que o
sistema político. O caso do [senador] Delcídio [do Amaral] e
paradigmático. Ele não imaginou que pudesse ser gravado por um jovem com
um smartphone. Muitos são pegos com a boca na botija falando coisas
pelo celular. Eu não sei até onde a Lava-Jato vai chegar, mas acho que
vai ser muito difícil fazer um acordão, com Dilma ou sem Dilma. E, se
for feito, vai durar pouco tempo.
Valor: O PT tem sido alvejado pelos casos de corrupção, mas
mantém a marca de promotor da distribuição de renda e das melhorias
sociais. O partido vai conseguir manter essa marca mesmo diante da crise
econômica?
Romano: A crise pode ser vista do ponto de vista conjuntural, de
prazo médio e de longo prazo. Existe pesquisa da Unicamp sobre
distribuição de renda antes de 63. Do período que vai da segunda guerra
até o golpe de 64, houve distribuição grande de renda no Brasil. Com o
governo militar, houve restrição da distribuição. Depois do Plano Real,
houve de novo uma redistribuição da renda. Isso mostra que o fator
político influencia muito. Isso é um ponto importante porque, com o
Plano Real, que teve a oposição do PT, já se previa o aporte de massas
ao mercado, com possibilidade de nele atuar como consumidor. Esse é um
ponto importante. Tudo isso que o PT diz que é propriedade única dele na
verdade vem do fato importante de ter estancado a inflação que foi
herdada do regime militar. De fato o PT levou mais adiante essa
distribuição como programas como Minha Casa Minha Vida, entre outras
coisas. Mas a afluência de milhões de pessoas ao mercado é de maneira
periférica, evidentemente, porque não se pode dizer que essas pessoas
participam do mercado só porque compraram uma geladeira. Não tem ainda
uma situação plena de consumidor no mercado, apesar de avanços. O PT
exagera na dose ao dizer que são os únicos que fizeram essa
redistribuição. Não é algo inédito.
* Entrevista publicada no jornal Valor Econômico, em 30 de dezembro de 2015, página A12
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