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domingo, 25 de junho de 2017

Artigo ainda válido...e como !

Roberto Romano Unicamp

Sunday, November 27, 2005

 
Considerações sobre o golpe de Estado.


Aproveitando as manifestações de rua na França, coisa a ser discutida durante bom tempo, inicio com os países que produziram os primeiros Estados modernos. Antes e depois do Renascimento a Itália se debate entre os territórios pontifícios e as cidades republicanas. Na Alemanha, o povo se espalha em áreas dirigidas pelos bispos ou pequenos príncipes. Até o século 19 aqueles “Estados” geram caçoadas por causa de seus domínios minúsculos (o fenômeno conhecido como Kleinstaaterei), frágil moeda, alfândega, “exército”, tudo nas dimensões de Lilliput. Em sentido oposto, o governo francês unifica parte considerável das suas províncias e define padrões comuns no campo jurídico, militar, político. O rei confisca as prerrogativas dos nobres em tempo certo, sobretudo no governo do cardeal Richelieu. O poder central francês garante para si os monopólios do Estado reunidos na força física (polícia e exército), na ordem jurídica (leis e justiça) e na taxação do excedente econômico (impostos, taxas). Essa tarefa monopolizadora não se efetivou sem violências.

A corte francêsa precisava conhecer o país real e as zonas a serem integradas sob a sua égide. Era preciso saber onde habitavam os súditos e quem eram eles. Contar a população e a superfície do território não foi tranquilo nos primeiros dias da França moderna. Como os demais Estados com origem no feudalismo e no controle eclesiástico, ela tinha fronteiras indefinidas e ora se expandia num sentido, ora se retraía noutro. A demografia, nos seus inícios, permite buscar um projeto fiscal. Mas As Crônicas da França, de Pierre Desrey (1515) afirmam a existência na França de 1.700.000 torres de sino, dando uma população por volta de 600 milhões de habitantes ! O dado fantástico foi repetido nos séculos XIV, XV, XVI. Outros escritores falam em números ao redor de 112 milhões. Com tal “saber” o fisco é impossível. A busca de mais arrecadação moderniza a máquina fiscal e incentiva a estatística. Esse movimento aparece no livro de Jacques Coeur, Cálculo ou enumeração do valor dos ganhos do reino de França, relatórios e instruções para administrar o estado e a casa do rei e todo o reino. As guerras religiosas, a concorrência dos Estados pelo domínio territorial e os avanços da arte bélica, que incluem novas tecnologias custosas, colocam os governos na urgência de aumentar os recursos. Enquanto isso, a Assembléia dos Três Estados combate o fiscalismo dos soberanos e nada consegue pois do século XV ao XVII os impostos se multiplicam. Esse desenvolvimento é favorecido pela reorganização administrativa. Os números arábicos, no século XV, facilitam o cálculo. A partir de 1539 anotam-se os batismos, as mortes e casamentos. O poder começa a conhecer o nome, a idade, a qualidade e o número dos súditos. Os registros também revelam as riquezas familiares. (1)

Norberto Elias afirma que o Estado dirigido pela corte domestica os nobres e define modernos padrões civilizatórios na França, ética que se espraia pela Europa. De fato, mesmo quando visitamos os castelos de Luis II da Baviera, erguidos em pleno século 19, percebemos o quanto o modêlo francês inaugura políticas e costumes originais. Versalhes é copiado da Rússia ao Mediterrâneo, bem como a sua vitoriosa centralização burocrática. A tese de Norberto Elias apresenta lados frágeis. Daniel Gordon, secundado por Emmanuel Le Roy Ladurie mostram a inconsistência das suas hipóteses para descrever o centralismo francês. (2)

Se é verdade o enunciado de Francis Bacon segundo o qual knowledge and power meet in one, também é correto dizer que a domesticação que gerou o Estado e a nova ética na França antecipou procedimentos hoje em voga. Richelieu e demais estadistas não realizam o seu projeto sem golpes de Estado. É estranho constatar esse ponto, visto que imaginamos o Estado como o avesso dos golpes. Mas esquecemos que semelhantes técnicas existem agora porque produziram as instituições a que nos acostumamos e que recebem o nome abstrato de “Estado”. O coup d´État é irmão gêmeo do conceito estratégico mas “esquecido”, a raison d´État.

É imensa a literatura sobre o golpe de Estado e a razão estatal. O símbolo maior de todas as análises e propostas encontra-se no maquiavelismo. Não cabe neste espaço analisar todas as interpretações do Florentino e de suas fórmulas brilhantes sobre o exercício do poder. O juízo de Spinoza, autor da mais relevante Ética moderna, resume o que é possível dizer sobre Maquiavel e a conservação do poderio político: “Maquiavel, agudíssimo autor, apresentou com detalhes as medidas a que um príncipe recorre, quando dominado pelo desejo de poder, para fundar e conservar o seu domínio. Mas perde-se com frequência o sentido de suas palavras. Se pensamos que ele tenha destinado aos homens uma lição útil, o que é provável em pessoa tão sábia, ele teria querido —parece— mostrar o quanto a tentativa de suprimir brutalmente um tirano não é eficaz sem que as causas da tirania tenham sido suprimidas, causas que produzem a tirania do principe. Tais causas apenas se reforçam se o principe encontra motivos maiores para ter medo. É apenas a isso que a multidão chega quando ela derruba o príncipe e se gloria do assassinato de um chefe consagrado , como se tivesse cometido uma ação meritória ao praticar um parricídio. Ou talvez Maquiavel tenha querido mostrar que a multidão livre não pode confiar sua salvação a um homem isolado. Pois ele, a menos que seja excessivamente vaidoso e imagine que pode agradar a todos os seus governados, temerá diuturnamente as suas armadilhas. Ele será obrigado a se manter alerta e jogar, por sua vez, armadilhas contra a multidão, em vez de garantir, como seria o seu dever, os interesses gerais. Esta é a intenção, no meu entender, que deveríamos emprestar ao nosso autor. Porque é muito certo que tal homem prudentíssimo amava a liberdade e apresentou salubérrimos conselhos para a sua conservação”. Num escritor decoroso como Spinoza, ressaltam os superlativos sobre Maquiavel: acutissimus, prudentissimus, saluberrima consilia. A inteligência e a cautela são as virtudes políticas mais requeridas na política, sobretudo quando se trata de impôr ou derrubar governantes. Maquiavel encontra-se em todas as linhas, ou entrelinhas, do que foi chamado depois dele a razão e o golpe de Estado. (3)

O “autor prudentíssimo” foi atacado na França desde cedo. Como no prefácio ao importante Vindiciae contra tyrannos (1581) onde ficamos sabendo que as teses de Etienne Junius Brutus “são manifestamente contrárias às práticas perversas e conselhos perniciosos e também adversárias das falsas e pestíferas máximas de Nicolau Maquiavel”. Os livros do Florentino “afiam o espírito de certas pessoas para encontrar os meios de subverter o Estado, com ajuda trazida pela autoridade dos governantes. Maquiavel colocou os fundamentos da tirania nos seus livros, como é notório nos preceitos e ensinamentos detestáveis semeados por ele aqui e acolá”. A doutrina maquiavélica “é bobagem perversa e perniciosa ao gênero humano. Ela arruina a si mesma e não subsiste, mesmo sendo forte”. (4)

A mais contundente refutação de Maquiavel vem Innocent Gentillet no Discurso sobre os meios de bem governar e manter em boa paz um reino ou principado. Dividido em três partes, a saber: sobre o Conselho, da Religião e da Política que deve manter um Príncipe. Contra Maquiavel Florentino (1576). (5) Para os líderes políticos e intelectuais protestantes, após a Noite de São Bartolomeu (1572), a França é nutrida por Maquiavel. Entre as acusações à doutrina e à prática dos que dirigem o Estado francês, existe a denúncia de que todos eles eram ateus. “Não devemos nos maravilhar” afirma Gentillet, “se os que pertencem à nação de Maquiavel (postos no governo da França) tenham abandonado o antigo modo de governar dos nossos ancestrais francêses, para introduzir e por em uso na França a nova maneira de governar o país, ensinada por Maquiavel”. E Gentillet apoia-se no desprezo do próprio Maquiavel pela França e pelos francêses, os quais, segundo o italiano, nada entendiam dos negócios estatais.

Assim, muitos francêses (sobretudo os protestantes e os demais perseguidos pelo reino que se instalava sob os auspícios da razão e do centralismo) enxergavam nos golpes de Estado o grande e pernicioso contributo maquiavélico. Golpes brancos ou rubros de sangue, o fato é que Maquiavel teria a paternidade do monstro estatal que tudo devorava na França, da liberdade antiga às riquezas privadas que seguiam para os cofres reais. Além, naturalmente, da repressão impiedosa e do monopólio da polícia e do exército.

Maquiavel, de fato, redige páginas inteiras sobre os golpes de Estado, tanto no mundo antigo quanto na sua Itália destroçada. Gênio agudo, ele descreve as conspirações e mostra os seus perigos, tanto para o governante quanto para os rebeldes. Dessa violência, extrai o lema famoso : Non vive sicuro un principe in uno principato, mentre vivono coloro che ne sono stati spogliati. Mas ele aponta o outro lado da contradição (para falar como os hegelianos e marxistas) : os príncipes devem saber dos graves riscos e da perda de sua coroa quando “violam as leis e os costumes sob os quais o povo vive desde longa data”. É mais fácil diz ele, ganhar o respeito e amor dos cidadãos honrados do que o dos bandidos, mais fácil submeter-se às leis do que violentá-las. Como aproveitar a lição no caso do Brasil atual ? Seria mais fácil ao atual governo brasileiro receber o apoio da cidadania honesta do que o amor de quem exige mesada para aprovar projetos palacianos. Os honestos não desejam golpes, os desonestos vivem apenas dos golpes, financeiros ou institucionais. Mas deixemos esse ponto e sigamos.


Na gênese do moderno Estado francês portanto, Maquiavel é estrategico, bem como a noção de golpe de Estado. O texto mais influente sobre os dois temas foi redigido por Gabriel Naudé : Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado (1679). (6) O autor apresenta o golpe como remédio a ser definido com prudência. Seguindo Charron, ele apresenta as regras dos golpes: os conspiradores devem operar no modo preventivo, jamais ofensivo. O golpe serve para que o Estado se defenda, não para aumentar os territórios, ele deve ser dado para que o país se defenda das armadilhas e não para aplicá-las.Se é verdade, segundo Aristóteles, que os governos são derrubados pela fraude, os golpistas devem agir com fraude honesta ao enfrentar as raposas com astúcia de raposas. Aqui surgem os ecos do livrinho importante de Torquato Aceto, Della dissimulazione onesta (1641), relevante nas teses sobre a razão de Estado. Os golpes são necessários para salvar o povo e o reino mas devem ser postos em movimento devagar, nunca em ritmo célere. Os meios para aplicar um golpe devem ser fáceis, jamais complicados. O governante precisa parecer atribulado ao dar um golpe e fazer como o pai que assiste a ablação de uma perna do filho : contrito e só golpeando com desprazer. Os golpes devem ser desfechados quando o governante ainda possui força suficiente para garantir o dia seguinte.

A regra maior dos golpes é extraída do pensamento romano : salus reipublicæ suprema lex. Para os que imaginam Montesquieu como partidário de uma condenação absoluta dos golpes, é preciso recordar que o autor retoma todos os pensadores citados acima, sobretudo Maquiavel, Spinoza, Naudé. O Espírito das Leis avança, a propósito das sucessões no poder, o princípio de todos os golpes. “Quando a lei política, que estabeleceu certa ordem de sucessão no Estado torna-se destrutiva do corpo político para o qual ela foi feita, não se duvide que uma outra lei política possa mudar tal ordem; e longe da segunda lei ser oposta à primeira, ela será bem no fundo inteiramente conforme à ela, pois as duas dependerão do princípio segundo o qual a salvação do povo é a lei suprema”. (7). Embora Montesquieu esteja no fundamento de repúblicas abrigadas dos golpes de Estado, no pensamento de muitos juristas e políticos golpistas a passagem citada permanece como fonte de raciocínio e justificativa para intervenções drásticas. É sublinhemos que as piores tormentas sofridas pelos Estados encontram-se nas lutas relativas à sucessão do governo. No Brasil, a história é muito conhecida.

Para aplicar ou prevenir golpes de Estado, desde o início da instituição política, saberes são exigidos. É por um motivo assim que líderes incultos representam permanente perigo para qualquer regime. No Brasil de hoje alguns demagogos falam em golpe. E com as tramóias descobertas no Estado e nos partidos políticos, os amigos do Planalto e dos “cargos de confiança”, mas também das verbas milionárias, espalham fantasias sobre um golpe para desestabilizar o príncipe, abreviando o seu mando. As tolices ganharam foros de ciência política e quejandos. Enquanto esperam as CPIs e seus resultados, seria interessante que os partidários do poder lessem Maquiavel, Spinoza, Montesquieu e Gabiel Naudé. Tenho certeza de que gastariam menos folego com um golpe imaginário e se interessariam pela análise dos golpes cometidos no dia-a-dia da nossa cambaleante república. Tais providências trariam o selo da ética real, silenciando os slogans nas mentes que não sabem discriminar entre tentativas de golpe e funcionamento cotidiano do Estado. Golpe e razão de Estado são permutáveis. Os petistas que sairam da esquerda, ou insistem em se apresentar com aquele rótulo, têm plena consciência de que os regimes instaurados sob a sua égide brotaram de golpes. E a inspiração maquiavélica encontra-se nas teorias do golpe proletário para instaurar ditaduras. Como partilham o realismo da razão de Estado, os estalinistas no PT ou fora dele aceitam todas as consequências golpistas, desde que o golpe seja imposto por eles. Daí, a perene desconfiança contra os adversários: eles supostamente maquinam golpes sem cessar. Para saber quando é preciso redefinir a lei fundamental para deter a morte do Estado, ou para decidir sobre um golpe, é preciso muita prudência e conhecimento. Como não tiveram nem possuem tempo para leituras, dadas as suas perenes tarefas, líderes e boa parte dos militantes petistas não conseguirão dar um golpe de Estado porque “ditadura” vem de Ars dictaminis, técnica retórica exigida dos governantes e hierarcas religiosos. A raiva contra o pensamento, nas hostes petistas, recorda o dito medieval : rex illiteratus est quasi asinus coronatus. Eles desejam, mas não possuem os saberes para instalar uma ditadura. Apedeutas não ditam, como disse Julio Cesar contra os misólogos de seu tempo : Sylla nescivit literas, non potuit dictare (Sylla ignorava as letras, não podia ditar. (8) Com sua truculência, os amigos do rei solapam a confiança dos cidadãos honestos no Estado de direito. Mas o mal nem sempre dura. Pelo voto, os que identificam as suas pessoas ao Estado e repetem no Brasil de modo hilário a tolice de Luis XIV, deixarão os palácios. Rumo à insignificância.

Notas


(1) Para essas referências e temas, conferir Dominique Reynié :”Le regard souverain, statistique sociale et raison d´État du XVIe au XVIIIe siècle”, in La Raison d´état: politique et rationalité. Paris, PUF, 1992. Informações importantes encontram-se em Christian Lazzeri e Dominique Reynié : Le pouvoir de la raison d´État. Paris, PUF, 1992. Análises rigorosas de Y. Ch. Zarka (org.) Raison et Déraison d´État. Paris, PUF, 1994. Cf. Roberto Romano: “Reflexões sobre impostos e razão de Estado”, Revista de Economia Mackenzie. Cf.www.mackenzie.br/editoramackenzie/revistas/economia/

(2) Cf. Emmanuel Le Roy Ladurie: Saint-Simon ou o sistema da Corte. RJ, Civilização Brasileira, 2004.
(3) Para uma excelente análise de Spinoza, sem os ranços demagógicos e as ideologias superficiais costumeiras, cf. Alexandre Matheron :”Passions et institutions selon Spinoza” in La raison d´État: politique et rationalité, citado acima. Outro texto que vale a pena encontra-se em Maria Luisa Ribeiro Ferreira: A Dinâmica da Razão na filosofia de Espinosa. Lisboa, C. Gulbenkian, 1997.
(4) Etienne Junius Brutus. Vindiciae contra tyrannos. Traduction française de 1581. Genève. Droz. 1979.
(5) Innocent Gentillet : Anti-Machiavel. Edition de 1576. Genève, Droz, 1968.
(6) Gabriel Naudé : Considérations politiques sur les coups d´État. Edição de Simone Goyard Fabre. Centre de Philosophie et Politique. Université de Caen, 1989.
(7) De l´Esprit des Lois, Livro 26, cap. 23, Bibliothèque de La Pleiade, p. 774

(8) Francis Bacon: Essais, “Of Seditions And Troubles”.

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