Flores

Flores
Flores

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Anjos e PT, Roberto Romano



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os anjos e o PT

A liderança do PT sugeria aos militantes que todos no partido eram anjos e os demais, "farinha do mesmo saco" 
ROBERTO ROMANO

Acontecimentos como a escolha do candidato a governador no Rio pelo PT mostram que o autoritarismo deita raízes no mais antigo pensamento político. Os donos nacionais daquele partido, gerados pelo ideário stalinista e semelhantes, enfrentam as oposições internas com chantagem e outras armas violentas. Mostram que pouco mudaria a República sob seu comando. Façamos uma rápida síntese do ideário mais amplo que define a sua lógica.
Alguns escritores vincaram a cultura do Ocidente. Eles modelaram as almas. Depois, seus textos seguiram para o inconsciente, no qual continuam operando de modo eficaz.
Um teórico assim é Dionísio Areopagita. Seus livros principais, "A Hierarquia Celeste", "Hierarquia Eclesiástica", "Os Nomes Divinos", apareceram por volta de 533 d.C., em Constantinopla. O nome do autor era falso: Dionísio teria testemunhado a pregação de São Paulo no areópago.
Só no Renascimento essa piedosa mentira caiu por terra, com a pouco verdadeira "doação de Constantino". Mas o conjunto textual seguiu prestigiosa via: em 827, o imperador romano do Oriente o depositou na igreja de Saint-Denis. Isso serviu para legitimar o rei da França, cuja sagração se dava naquele templo.
Com as traduções de Erigena, os textos tornaram-se vitais na Idade Média. Tomás de Aquino, o doutor da igreja, cita-os 1.700 vezes. A renascença religiosa tomou-os como oráculo. No século 16, ocorreram 44 edições da "Hierarquia Eclesiástica". No século 17, eles justificavam o poder da igreja contra o Estado. Mas já potenciavam a propaganda do rei absoluto diante do papa, dos bispos e nobres.
O que importa em Dionísio? Nele se diz que Deus está além de nossa capacidade de pensá-lo e nomeá-lo. Entre a divindade (supremo abismo) e nós existe uma cadeia de seres intermediários, garantindo uma hierarquia rigorosa. O universo se baseia na ordem. A falta desta última é o grande mal.
Deus pode ser atingido pelos homens, mas só por seus intermediários. "Da matéria até os anjos reina uma infinidade de ordens, cada uma delas guiando seus inferiores e progredindo com eles rumo à divindade" (Durand, Y., "Mística e Política no Século 17, a Influência do Pseudodionísio", revista "Século 17", 1991).
No sistema dionisíaco, bispos e padres espelham a ordem celeste, na qual se movem os anjos. Tudo é mediação: os sacerdotes são o elo entre os homens e Deus, espécie de anjos humanos. A sociedade exige a hierarquia.
A lógica hierárquica plasmou nossa cultura política e religiosa. Não por acaso, a revista brasileira do catolicismo integralista chamou-se "A Ordem". Ainda no século 19, os padrinhos do totalitarismo, como De Maistre, Bonald, Donoso Cortés e Auguste Comte, viam na igreja apenas isso: a mantenedora da ordem.
Esse ideário conduziu milhões às passeatas da direita nacional, gerando o golpe de 64 e o regime castrense. Nele, tivemos excesso de ordem hierárquica e pouquíssima democracia. O controle vertical, como demonstra Canetti em "Massa e Poder", é marca dos exércitos. Um partido não deveria seguir essa linha, sobretudo se estamos diante de uma agremiação democrática.
No século 20, a humanidade caiu no abismo totalitário. A igreja ou colaborou com os nazifascistas ou foi aniquilada enquanto poder autônomo. Mas permaneceu a idéia de hierarquia, agora sem Deus. Os partidos assumiram, a ferro e fogo, os graus de eminência decisória. No topo, as escolhas certas e infalíveis. Entre os seguidores, a obediência cega, surda, muda.
Militantes estupefatos que afirmavam, acatando ordens dos comitês, a essência demoníaca dos inimigos viram-se sem chão sob os pés com o pacto entre URSS e Alemanha, em 1939. Mas o partido era absoluto. A base nada tinha a opinar: bastava-lhe a militância, recheada de slogans e de heroísmo absurdo.
O PT prometeu novidades. Nele, bases e dirigentes teriam voz e voto. Mas, com a certeza atual de nunca chegar ao poder, os seus grupos dirigentes, hierarquias sacerdotais, retomam a forma autoritária nas estratégias e táticas. Em Dionísio Areopagita, só o superior, anjo ou sacerdote, pode conduzir o inferior, o simples cristão, ao divino.
Houve certa época em que a liderança do PT sugeria aos militantes que todos no partido eram anjos e as demais pessoas, "farinha do mesmo saco". Com o realismo em alta, notório com a ida para o governo de um ex-secretário do partido (membro da hierarquia e não da base) e de quadros importantes para o ministério Itamar, a militância foi atingida pela desconfiança em face da ordem angélica. Brizola deu-se muito bem no período Collor, sendo criticado por muita gente, em especial na Folha.
No Rio de Janeiro, as bases ousaram negar as ordens dos arcanjos petistas. Foi um deus-nos-acuda. Tudo estaria de cabeça para baixo. Subversão da ordem! Interessante acompanhar a vida e a morte de muitos sonhos.
Ou o PT aceita a democracia, estranha à mente hierárquica, ou implode. Não existe essência angélica que possa interceder nessa labuta. O codinome do anjo que dirigiu a aliança do Partido Comunista, no pacto germano-soviético de 1939, era Lúcifer.

Roberto Romano, 52, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.