POLÍTICA
As vozes da ditadura: os áudios secretos do STM
ÉPOCA teve acesso a gravações inéditas dos julgamentos secretos de presos políticos pelo Superior Tribunal Militar. Esses arquivos revelam como os ministros ignoravam a lei – e denúncias de tortura – para condenar réus de acordo com os interesses do regime
AGUIRRE TALENTO COM REPORTAGEM DE RUAN DE SOUSA GABRIEL E MARCELO BORTOLOTI
21/07/2017 - 22h39 - Atualizado 22/07/2017 00h07
>> Trecho da reportagem de capa de ÉPOCA desta semana:
Às 9 horas da manhã de 15 de dezembro de 1976, os papéis da Apelação 41.098 chegaram ao plenário do Superior Tribunal Militar, em Brasília. Chegavam a uma sala ampla, austera, adornada tão somente com uma bandeira do Brasil e um crucifixo grande sobre a cadeira do presidente da Corte. Chegavam, como a vasta maioria das apelações naqueles tempos, agonizando, prestes a virar um cadáver jurídico. Naquele túmulo frio do regime, os ministros entravam por uma porta e a lei saía pela outra. Entre o aparato legal da ditadura e as conveniências dos militares, os 15 ministros não hesitavam. Votavam com os interesses políticos do regime – com os próprios interesses. Naquela manhã, produziriam mais uma vítima. Uma vítima que, anos antes, lograra enfurecer os militares a ponto de alterar o destino do regime.
O apelante Márcio Moreira Alves, ex-deputado pelo MDB do Rio de Janeiro, não seria submetido aos rigores da lei. Seria submetido, desta vez no STM, aos rigores da ira e do rancor que provocara na caserna. Os 12 ministros presentes na sessão – todos sexagenários; nove deles trajando uniformes militares; os demais de paletó e toga – sentenciariam uma das figuras mais odiadas do regime. Seria mais uma sessão secreta do tribunal. Mas uma sessão secreta que, agora se descobre, foi gravada pelos militares – assim como outras 800 sessões, cujos áudios foram obtidos por ÉPOCA. E, graças a esse precioso e inédito registro histórico, revelam-se, entre outras, as três horas de falas políticas que culminaram na previsível e silenciosa morte jurídica da Apelação 41.098.
Com seus cabelos brancos e óculos de lentes grossas, o advogado Augusto Sussekind, defensor de Moreira Alves, abriu a sessão. Havia oito anos vigorava no Brasil o Ato Institucional no 5. O réu dera aos militares o pretexto de que precisavam para endurecer o regime. No dia 2 de setembro de 1968, Moreira Alves foi ao púlpito da Câmara dos Deputados e, num discurso que julgava inconsequente, convocou um boicote aos desfiles em comemoração da Independência do Brasil. Clamou, ainda, que as moças cessassem seus relacionamentos com cadetes e soldados. O presidente Costa e Silva e os membros de seu governo ficaram furiosos. Iniciaram uma inquisição contra Moreira Alves, mas tiveram seu pedido para processá-lo negado pela Câmara. Os deputados entenderam que Moreira Alves estava protegido por sua imunidade parlamentar; a votação terminou com deputados entoando o Hino Nacional nas galerias do Congresso. O aprofundamento da repressão viria de qualquer forma. Moreira Alves o desencadeou. Costa e Silva decretou o AI-5 em 13 de dezembro de 1968 e jogou o Brasil na escuridão.
Moreira Alves foi cassado e expurgado da vida política. Exilado, ele ainda respondia a um processo na Justiça Militar. O ex-deputado fora absolvido em primeira instância. A denúncia do Ministério Público Militar dizia que o ex-deputado “sempre procurou demonstrar claramente suas tendências de esquerda” e “estabelecer a cizânia entre o Povo e a Revolução”. O conteúdo subversivo de seus discursos causava tal emoção na nação que, por conta desse tom, dizem os procuradores, foi desencadeada “a nova fase da Revolução” – o AI-5. Naquela manhã de dezembro de 1976, o caso atingia a última instância da Justiça Militar. Das 15 altas e imponentes cadeiras de madeira destinadas aos magistrados, três estavam vagas.
Terminada sua sustentação oral, Sussekind foi convidado a se retirar do plenário, no 2º andar do STM – prédio inaugurado em Brasília em 1973. A discussão do caso ocorreria em uma sessão secreta. Era a legislação da época. Por 40 anos, os debates e os fundamentos que justificaram a condenação de Moreira Alves a dois anos e três meses de prisão pelo STM ficaram trancados num arquivo de quatro gavetas, numa sala contígua ao pleno do STM. Não só os desse caso. Foram mantidos em segredo os áudios de todos os julgamentos secretos do tribunal. Após uma determinação do Supremo Tribunal Federal em uma ação movida pelo advogado e pesquisador Fernando Fernandes, as históricas gravações do STM foram liberadas e obtidas por ÉPOCA. (Ouça ao fim do texto o áudio do julgamento de Moreira Alves.)
Em 1998, ÉPOCA já revelara a íntegra das gravações da sessão do Conselho de Segurança Nacional, que, na tarde de 13 de dezembro de 1968, apagou qualquer vestígio de democracia no Brasil. Os áudios publicados agora demonstram, pela primeira vez e com a força que somente gravações fornecem, como os ministros do STM ignoravam conscientemente a lei para proferir condenações que agradavam ao regime militar. Tomavam cotidianamente decisões de acordo com suas convicções pessoais. Tratavam com ironia e descaso as denúncias de maus-tratos a presos. Davam de ombros às alegações de que depoimentos haviam sido prestados sob tortura. O valioso registro em áudio é um pacote com mais de 10 mil horas de gravação de sessões secretas e não secretas a partir de 1975.
ÉPOCA analisou mais de 150 horas de sessões secretas realizadas entre 1975 e 1978 no STM. No período, com o general Ernesto Geisel na Presidência da República, começava-se a discutir uma abertura política. Mas alas radicais das Forças Armadas seguiam torturando presos políticos e cometendo crimes endossados pelo Estado. Como o Superior Tribunal Militar era a última instância recursal da Justiça Militar, era nos ombros e na consciência daqueles juízes que estava depositada qualquer esperança de reparação, de equilíbrio – de Justiça, afinal.
O STM não entregou justiça a Moreira Alves. Os ministros presentes naquela manhã reconheceram que a lei tornava impossível a condenação de um deputado por discursos feitos durante seu mandato. Mas aquele ex-parlamentar, traidor da pátria, não podia ficar impune. Um a um, os magistrados, com desassombro e tranquilidade, foram criando artifícios retóricos para ignorar a legislação.
De origem civil, o ministro Amarílio Salgado foi o relator do processo. Ao defender que Moreira Alves fosse condenado, justificou: “É, infelizmente, adepto da foice e do martelo esse homem”. Seguiu-se uma discussão na qual os ministros abandonaram as aparências de equidistância legal. General do Exército, dez medalhas no peito, o ministro Rodrigo Octávio diz que aquele colegiado devia agir como um “tribunal de segurança”, não um “tribunal de Justiça”. “Condená-lo em bases jurídicas é completamente inexequível. Agora, nós vamos tomar, eu vou tomar uma decisão revolucionária. Estamos hoje preservando o regime revolucionário, a irreversibilidade dos objetivos revolucionários, não podemos de maneira nenhuma deixar de fazer isso”, explicou-se.
O voto surpreende porque Rodrigo Octávio passou para a história como um general relativamente liberal. A atuação de Rodrigo Octávio incomodava a linha-dura militar. Ele chegou ao STM em 1973. Em março de 1977, defendeu, no plenário, a revogação parcial do AI-5, o mesmo ato institucional no qual se baseara para condenar Moreira Alves meses antes. Para o historiador Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e estudioso da ditadura militar, essa ambivalência era característica do tribunal. O STM era acusado pelos opositores do regime de ser um tribunal de exceção; e, pela linha-dura militar, de ser uma Corte benevolente. A atuação do STM nesse período é marcada por essa contradição entre se ater à letra da lei, mesmo à lei da ditadura, ou julgar os processos de acordo com os interesses políticos e de sobrevivência dos militares.
Um aparato constitucional formulado pela ditadura – a Constituição de 1967 – ainda garantia algumas liberdades democráticas (como a necessidade de autorização da Câmara para processar um parlamentar). Esse aparato foi alterado pelos atos institucionais. “O STM ficou o tempo todo nessa corda bamba. Em alguns momentos, ele pôde e teve de observar apenas a Constituição. Em outros, teve de se render ao AI-2 ou o AI-5”, diz Fico. “E houve casos como o de Moreira Alves. Estivessem ou não os atos institucionais em vigor, a decisão seria eminentemente política, como de fato foi.”
A ambiguidade de Rodrigo Octávio revelada nos áudios inéditos é reflexo disso e mostra a importância de conhecer o interior das instituições que sustentavam a ditadura. “Essa busca por atalhos na Constituição para resolver os problemas do país é flagrante nas discussões do STM”, diz Fico. “A divulgação desses áudios é essencial. Por meio deles, concebemos, com clareza, os debates que resultaram na moldura institucional do regime militar.”
Um aparato constitucional formulado pela ditadura – a Constituição de 1967 – ainda garantia algumas liberdades democráticas (como a necessidade de autorização da Câmara para processar um parlamentar). Esse aparato foi alterado pelos atos institucionais. “O STM ficou o tempo todo nessa corda bamba. Em alguns momentos, ele pôde e teve de observar apenas a Constituição. Em outros, teve de se render ao AI-2 ou o AI-5”, diz Fico. “E houve casos como o de Moreira Alves. Estivessem ou não os atos institucionais em vigor, a decisão seria eminentemente política, como de fato foi.”
A ambiguidade de Rodrigo Octávio revelada nos áudios inéditos é reflexo disso e mostra a importância de conhecer o interior das instituições que sustentavam a ditadura. “Essa busca por atalhos na Constituição para resolver os problemas do país é flagrante nas discussões do STM”, diz Fico. “A divulgação desses áudios é essencial. Por meio deles, concebemos, com clareza, os debates que resultaram na moldura institucional do regime militar.”
Àquela altura do julgamento, o STM já havia resolvido condenar Márcio Moreira Alves. O ministro Jacy Pinheiro, civil, ressaltou os riscos de uma absolvição para a segurança nacional: “Um homem desta natureza, que agiu dentro do país e fora do país, nestas circunstâncias, com tamanha agressividade política, ele poderia retornar perfeitamente à sua terra, o que seria um verdadeiro escárnio para nós. Dentre os males, eu prefiro o menor”. Seu colega de toga, o almirante de esquadra da Marinha Octávio José Sampaio Fernandes utilizou a frase de um antigo integrante da Corte para se justificar: “O que se procura aqui é fazer a justiça, evidentemente dentro da lei. Mas o saudoso ministro Alcides Carneiro já teve aqui uma vez uma expressão ‘se se trata de fazer justiça, mesmo que ela fira a lei, deve-se fazer justiça’. No caso em apreço, a condenação desse moço, no meu entendimento, é um ato de justiça”.
A noção de justiça do ministro Fernandes e de seus colegas não constou da ata daquela sessão, único documento público sobre o julgamento. No papel, o STM optou por um registro que apontava o cumprimento da lei: “Combatido com a lei e pela lei o crime desses que tramam contra a tradição democrática, que conspiram contra a unidade moral e espiritual desta grande nação”. Assinam a ata os 12 ministros que participaram do julgamento. Condenado, Moreira Alves ficou impossibilitado de voltar ao Brasil, sob risco de ser preso. Manteve o exílio, passando por Chile, França, Cuba e Portugal. Só voltou para casa depois da aprovação da Lei da Anistia, em 1979. Tentou se reeleger deputado federal em 1982 e 1986, mas não conseguiu. Dedicou-se ao jornalismo, foi colunista de O Globo. Morreu em 2009, sem saber mediante quais argumentos fora impedido, pelo STM, de regressar ao país.
Ouça o debate dos ministros do STM no julgamento de Márcio Moreira Alves
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