Um Blog destinado a discutir assuntos de ordem institucional, política, ética, longe do inferno definido nas supostas redes sociais, onde a covardia, a irresponsabilidade, o ressentimento e todas as paixões baixas se manifestam. Aqui, procuro pensar, sem ferir ou humilhar ninguém. Na internet, sobretudo nas mentirosas páginas "sociais", encontramos a besta fera descrita por Platão (Rep.. 588c): θηρίου ποικίλου καὶ πολυκεφάλου. Lúcido Platão!
Flores
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segunda-feira, 21 de agosto de 2017
Jornal da Unicamp, Roberto Romano : O nazismo não mora apenas em Charlottesvile
Roberto Romano
da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles
“Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo
romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis
Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da
razão” (Editora Perspectiva).
“Ainda
é fecundo o ventre de onde surgiu a besta imunda”. A frase é profética.
Nela, Brecht revela a desgraça da suposta civilização moderna e a face
horrenda das sociedades que portam a máscara democrática. Elas disfarçam
a gravidez do estado de exceção com frangalhos de leis, retóricas
camaleônicas. As instituições, em compasso de espera, nas delações
premiadas e tribunais enviesados, falecem por causa dos monstros que
alimentam nas suas barrigas de aluguel. Europa, Estados Unidos, Brasil: o
nazismo está na ordem do dia. Manifestação em Chartlottesvile, EUA: a reboque de um mandatário bufão | Foto: Steve Helber APAs
peças de Bertold Brecht alertam as consciências entorpecidas pela
propaganda, martelada dia e noite pelos que assassinam direitos,
liberdade, vidas dos “negativamente privilegiados” (Max Weber). Terror e miséria do Terceiro Reich(Furcht und Elend des dritten Reichs)peça
espantosamente atual, expõe o pavor imposto pela generalizada delação,
comum no raivoso nacionalismo. Recordemos que o autor usa a língua de
Lutero. O reformador, ao traduzir a Carta aos Romanos (13, 1-7)
usa o termo “Furcht”para salientar o elevado e sublime poder divino,
fonte legítima de mando político. O medo trazido pelo nazismo não é
divino, mas miséria humana absoluta. Pena que no Vaticano de Pacelli, a
concepção do Apóstolo tenha sido desviada até o cerne. Leia-se o
pungente O Papa e Mussolini, publicado por David Kertzer. Numa
cena estratégica do texto brechteano vemos o juiz com receio de julgar
certo processo, porque alguns acusados pertencem à SA e, do outro lado,
acusadores operam na SS. Como manter a impessoalidade do tribunal em
semelhante choque de poderes? De outro lado, pais temem que seus filhos
os delatem como contrários ao regime, porque aquela é a norma da
juventude hitlerista. Cena patética numa prisão: o comunista critica o
socialista por ter negado a frente única contra o fascismo, preferindo
dar a vitória aos sequazes de Hitler, em vez de se aliar aos comunistas.
Análises agudas de toda a produção brechteana podem ser lidas na
imprensa alternativa, mesmo em nossos dias. Por exemplo no site
lesmaterialistes.com, onde surgem leituras oportunas sobre Brecht e o
nazismo.
Diderot, no início do “Plano de uma universidade, ou de
uma educação pública em todas as ciências”, afirma com estilo também
profético : “instruir uma nação, é civilizá-la. Diminuir os
conhecimentos é a conduzir ao estado primitivo da barbárie. A Grécia foi
bárbara; ela se instruiu e se tornou florescente. E o que ela é hoje? Ignorante
e bárbara. A Itália foi bárbara; ele se instruiu e se tornou
florescente. Quando a ciência e as artes se afastaram, o que ela se
tornou? Bárbara. Tal foi também a sorte da África e do Egito; e tal será
o destino dos impérios em todos os lugares da terra e em todos os
séculos futuros”.
Não existe permanência garantida para a existência humana
civilizada, sem que os saberes científicos e técnicos domem a barbárie.
As artes, fruto mais delicado do espírito, moldam a sensibilidade,
ajudam na tarefa de Sísifo: refinar paixões e vencer a selvageria que
dormita em todos e cada um dos que se abrigam nos coletivos humanos. A
civilização possui fendas que, a qualquer momento, podem levar massas,
governos, religiões, pensamentos, ao abismo.
Volto ao teatrólogo. “O fascismo não é o contrário da
democracia, mas sua evolução em tempo de crise”. Em outro contexto, na
peça aludida acima, Terror e miséria do Terceiro Reich,surge
a passagem do pensamento liberal à tirania nazista, ilustrada pela
técnica da mentira e do medo, a perda da liberdade e dos direitos das
grandes massas, o que implode a democracia.
O que assistimos nos EUA, com a presidência Trump? Fruto
da ausência de emprego, instrução e cultura, o mandatário bufão
(palhaços no poder são perigosos, o exemplo de Hitler seria um aviso)
levantou a capa superficial de civilização que enfeitava a sociedade,
trouxe à luz o ressentimento, os preconceitos, o racismo e o nazismo de
vastas camadas dos “negativamente privilegiados” norte-americanos. Ele
prometeu devolver a América aos brancos, banir os estranhos, impor uma
nova leitura de “Law and Order”. Ele prometeu a guerra contra a
democracia, a caçada ao diferente, a morte do “inimigo interno”.
Chamou a paixão do ódio como eficaz cabo eleitoral. E venceu.
Charlottesville não é causa de nada, mas sintoma do que vai no ventre
imundo da besta.
No Brasil, segue a rotina de negar as Luzes. Aqui, os
poucos combatentes em prol do saber e da técnica estão a cada minuto
mais isolados. Eles são vozes a clamar no deserto. A rede universitária,
gerada em décadas de batalhas, está sufocada pela ausência de recursos
financeiros e pela fuga de cérebros. O brain drain faz razzia
em todo mundo, mas aqui aparece sua face genocida: pesquisas graves na
área médica e demais setores de saúde pública estão paralisadas.
Agências de fomento têm seus cofres aniquilados, pouco sobrou, em termos
federais, para a inovação industrial. A Fapesp é uma fortaleza, não
sabemos até quando, que resiste com dificuldades crescentes. Como fruto
de semelhante campanha oficial contra os saberes, o Brasil anda rápido
para trás em todos os campos científicos, tecnológicos, humanísticos. E,
no mesmo passo, milhões de seres humanos aumentam o monstruoso exército
de reserva que serve, quase escravo, aos fins do capital especulativo.
Aumentamos a barbárie, sem nunca garantir a democracia, o saber
científico, a liberdade de expressão. Responsabilidade estatal (nos três
poderes) é apenas ....uma palavra, vazia de sentido. Duas ditaduras
recentes mostram o que pode ser o nosso futuro, caso não tenhamos força
para barrar a propaganda das “reformas”, ablação última do direito que
restou aos “negativamente privilegiados”. Massas em desespero são cativas de sonhos e promessas. O
nazismo, o fascismo e todas as formas de poder ditatorial trazem o
ensinamento. Na Alemanha e demais países europeus, os políticos
(incluindo os que se diziam progressistas) brincaram com fogo ao
desprezar o peso das multidões reduzidas ao nível abaixo da
subsistência. Atenção! O ódio que tomou conta de Berlim ou de
Charlottesville, mora nas dobras da sociedade brasileira. Parte dos
nossos juízes toma o partido dos “positivamente privilegiados”, contra
os que perdem os direitos mais comezinhos. Logo, eles serão obrigados a
decidir apenas entre os membros da SA e das SS. Não haverá cidadão para
julgar, fora dos movimentos fascistas. Ressurgem nas ruas brasileiras os
gritos do ódio. É de bom alvitre rever o filme Mephisto. O cômico, quando menos se espera, abre a via da tragédia.
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