Roberto Romano
da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles
“Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo
romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis
Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da
razão” (Editora Perspectiva).
Golpes à vista!
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Após o regime imposto em 1964, poucos acadêmicos e políticos acreditavam que no futuro próximo haveria ameaça de outro golpe civil militar. A confiança era tamanha que alguns pontos estratégicos passaram sem grandes traumas na Carta de 1988. Uma batalha ganha pelos defensores do status quo autoritário foi definida no Artigo 142: as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Anódina na aparência, tal fórmula permite ao poder público exigir dos quartéis intervenções no campo civil, para manter a norma e impedir sublevações. Nada, em tal item, traz novidades para quem estuda a história dos Estados antigos, modernos e contemporâneos. De modo diverso ao previsto no Artigo 48 da Constituição de Weimar, a convocação do braço castrense não é agora atribuída apenas ao Presidente da República, mas aos três poderes. Leia-se o texto de Ruth Zimmerling, Alemanha: parlamentarismo e o fantasma de Weimar (Scielo). Trata-se de uma diferença considerável, sobretudo se levarmos em conta a hegemonia mantida pelo Executivo federal brasileiro.
Após o regime imposto em 1964, poucos acadêmicos e políticos acreditavam que no futuro próximo haveria ameaça de outro golpe civil militar. A confiança era tamanha que alguns pontos estratégicos passaram sem grandes traumas na Carta de 1988. Uma batalha ganha pelos defensores do status quo autoritário foi definida no Artigo 142: as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Anódina na aparência, tal fórmula permite ao poder público exigir dos quartéis intervenções no campo civil, para manter a norma e impedir sublevações. Nada, em tal item, traz novidades para quem estuda a história dos Estados antigos, modernos e contemporâneos. De modo diverso ao previsto no Artigo 48 da Constituição de Weimar, a convocação do braço castrense não é agora atribuída apenas ao Presidente da República, mas aos três poderes. Leia-se o texto de Ruth Zimmerling, Alemanha: parlamentarismo e o fantasma de Weimar (Scielo). Trata-se de uma diferença considerável, sobretudo se levarmos em conta a hegemonia mantida pelo Executivo federal brasileiro.
Deixemos
de lado a capacidade de operacionalizar o uso da força pelos três
poderes. O fato é que a Carta garante a legalidade da intervenção
militar. Durante o tempo em que o texto magno foi elaborado, os
responsáveis por aquela parte se dividiram. Os mais arredios à
democracia direta e à soberania popular apoiaram a redação final, mas
queriam maior rigor no texto. Os democratas desejavam atenuá-lo ao
máximo. E perderam.
Sigo adiante na lógica subjacente à fórmula acolhida e
promulgada. A menção explícita à lei e à ordem retoma uma história
milenar, vivida desde a república romana. Refiro-me à ditadura.
Consultemos os pensadores das Luzes que recolhem os elementos
históricos, imanentes ao problema. Diz a Enciclopédia
coordenada por Denis Diderot: “como os romanos expulsaram seus reis,
viram-se na obrigação de criar um ditador nos perigos extremos da
república, como por exemplo quando ela era agitada por sedições
perigosas, ou atacada por inimigos temíveis”. Suspensas as demais
autoridades, o ditador tinha poder de vida e morte na cidade e no
exército. “Mas como ele podia abusar de tão vasto poder, muito suspeito
aos republicanos, sempre se tomou a precaução de limitar seu mando em
seis meses”. Com Sila, a ditadura praticou crimes terríveis. Para
autorizar tais vilanias ele se declarou ditador perpétuo, usurpando a
força ditatorial. E comenta o enciclopedista: “soberano absoluto, ele
mudou a seu talante a forma do governo, aboliu antigas leis e proclamou
novas, se tornou senhor do tesouro público e dispôs despoticamente dos
bens de seus cidadãos”. Cesar, vitorioso à custa de muita corrupção,
inclusive financeira, retoma a ditadura perpétua e governa como senhor
do mundo e da república. Termina da forma conhecida.
Para explicar os fatos da ditadura romana, particularmente as
de Sila e Cesar, existem imensas bibliotecas, da Idade Média aos nossos
dias. Limito-me a um comentário significativo da biografia publicada por
Luciano Canfora. Ao indicar o banditismo assumido por Clódio, um tonton macoute
da época, diz o historiador: “Com sua presença agressiva (de Clódio) na
cena política da capital chega-se ao ponto extremo e se concretiza
aquela degeneração parasitária do proletariado urbano de Roma, premissa
não secundária da decisão de Cesar de desvincular-se da política
tradicional popularis e de sua dinâmica.
Quando as classes se decompõem na incapacidade não só de assumir uma
função diretiva como também de adaptar-se à hegemonia de outros grupos,
afloram fenômenos de parasitismo cego e de liderança de ação violenta
que desqualificam, frequentemente por um tempo às vezes longo demais, a
tradição democrática”. (Júlio César, o ditador democrático).
Para vencer sedições e “ameaças à ordem”, os ditadores Sila e
Cesar, mas também outros aparentemente mais controlados até os nossos
tempos, “colocam fim a uma época de anarquia mas igualmente ao ‘antigo
regime’ que sua propaganda desacredita por todos os meios. (...) O
ditador possui e impõe um programa geralmente bem marcado do ponto de
vista político e social, o que traz uma ruptura violenta com o regime
precedente. (...) Seu principal meio de ação é a violência que se
acompanha de um terror mais ou menos intenso. Os instrumentos de tal
violência podem ser o exército, ou as milícias privadas” (Paul Petit, “Dictatures et légitimité dans “Empire Romain”, in Dictatures et Légitimités, org. por M. Duverger).
Os estudiosos do regime ditatorial, desde a era antiga, indicam
um ponto importante, mas pouco percebido pelos que defendem aquele
“remédio” para os males do Estado, a começar com a corrupção econômica e
política. O regime ditatorial não é um meio para instaurar novas
estruturas estatais e de sociedade. Ele é primordialmente conservador,
quando não reacionário. Sua missão se define como negativa e tem como
tarefa afastar o coletivo da possível destruição, daí a sua
excepcionalidade e o caráter salvacionista de seu titular, individual ou
de grupo. Tal aspecto é sublinhado por Spinoza, o autor ético da
modernidade política e democrática: “Nos momentos de aflição, quando
todos são tomados de terror pânico (...) os rostos se voltam para o
homem cujas vitórias o colocam em plena luz”. (Tratado Político, capítulo 8) Os apavorados livram o ditador do respeito à lei. Na tarefa de manter um status quo,
o possuidor temporário do mando absoluto destrói aquilo mesmo que ele
supostamente deveria garantir. Um comentário excelente encontra-se no
livro de Marie-Laurie Basilien-Gainche: État de droit et états d’exception.
A ditadura de 1964 tinha como emblema lutar contra a corrupção e
a subversão. No caso da segunda, os governantes impostos travaram
cruentas batalhas, com muitos atentados às liberdades democráticas e aos
direitos civis. No caso da primeira, o Congresso e a política não
deixaram de abrigar, durante toda a ditadura, notórios corruptos ou
facilitadores da corrupção. A lista é longa, e pode começar com Paulo
Salim Maluf, terminando em Edison Lobão e outros apelativos sonoros.
Basta olhar tais nomes que operavam a ordem política nacional, e ainda
hoje acionam os mecanismos do Estado, para nos darmos conta da derrota
programada, ocorrida no regime autoritário, na suposta ou real luta
contra a corrupção. Buscar uma ditadura para destruir formas corruptas é
tarefa duplamente perigosa e inútil. Primeiro, se o regime foi
idealizado para manter a lei e a ordem vigentes, nos casos brasileiros
do século XX a lei e ordem foram mantidas, com todas as suas
iniquidades, irmãs gêmeas da corrupção. E o regime de força, dada sua
própria natureza negativa, não tinha legitimidade nem condições
objetivas para edificar novas formas de Estado e sociedade. Décadas de
regime autoritário não produziram formas melhores de governo, de
controle político, de justiça e cidadania. Quando acabou o Estado
ditatorial, pelo menos temporariamente, o país estava na mesma, ou pior,
do que antes de sua instauração.
Ditadura e golpe de Estado formam um todo coerente. No século
XX ocorrem inúmeros golpes de Estado, produzidos por motivos
ideológicos, religiosos, políticos. Na madrugada, tanques de guerra
tomam as ruas. Estações de rádio e televisão transmitem informes do
governo ameaçado. O legalismo silencia e surgem proclamações dos que
desejam o poder. Música patriótica compõe o apelo emocional ao povo.
Caídos os dirigentes antigos, os novos interrompem os direitos públicos
para limpar a pátria de toda corrupção, vencer os inimigos. “Se eles
fossem vitoriosos, fariam mais ou pior do que efetivamos”, a frase
modula o discurso dos novos palacianos. Poucos países saíram de
semelhante dança macabra aptos para a democracia e puderam confiar em
técnicas políticas ou jurídicas aptas a produzir um Estado onde exista o
convívio entre diferentes opiniões.
O modelo acima deixa na sombra que o golpe de Estado é mais
sutil do que a intervenção das casernas. Um golpe pode ser incruento e
não suspender todos os direitos. Caso se efetivem mudanças micrológicas
na ordem legal e de governo, com pequeno acréscimo ou subtração nas
leis, o seu efeito é tão desastroso para a democracia quanto um
“pronunciamento” armado. Somadas, as micro-intervenções criam rupturas
no direito público e privado, o que gera medo e desconfiança geral
frente às instituições.
Em Gabriel Naudé encontra-se o esboço dos golpes modernos. As Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado
(1639) ordenam um modelo a ser observado e temido pelos democratas.
Segundo Naudé, “o bem e a utilidade pública vêm antes da utilidade
particular”. Os golpes definem “atos extraordinários que os
príncipes são constrangidos a executar contra o direito comum, quando
os negócios se tornam difíceis ou desesperados, sem observar nenhuma
ordem ou forma de justiça”. No golpe “a tempestade cai antes dos
trovões, a execução precede a sentença, (...) um indivíduo recebe o
golpe que imaginava dar, outro morre quando se imaginava seguro, u m
terceiro recebe o golpe que não esperava”. O governante que perdeu é
punido e depois sentenciado pelos vencedores.
Foi o que ocorreu com o Ato Institucional n.º 1 (AI-1).
Aposentadas as noções de legitimidade e de soberania vigentes, o texto
proclama: "A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte,
se legitima por si mesma. (...) Ela edita normas jurídicas sem que
nisto esteja limitada pela normatividade anterior à sua vitória”.
No Ato institucional de número 1, fala-se da onipotência trazida pelo poder constituinte.
É impossível compreender aquele texto, que instaurou a ditadura de
1964, sem ler os trabalhos de Carl Schmitt, teórico frequentado por
Francisco Campos, o pai da Polaca e dos Atos institucionais, do primeiro
ao quinto. “A ditadura soberana é a comissão da ação incondicionada de
um poder constituinte”, adianta Carl Schmitt no seu tremendo A Ditadura,
no capítulo intitulado “O conceito de ditadura soberana”. Diante de
notícias como a defesa do golpe por um general da ativa, algo que
necessariamente exigirá um regime de força, é aconselhável ler com
cautela e atenção redobrada o citado livro-chave de Schmitt. Tal exame
vale bem mais do que a frequência às redes sociais. Em Schmitt, temos a
trilha de nosso destino, tal como se definiu no século XX e como poderá
ser retomado no século XXI. Finalizo: não raro, a ameaça de um golpe dos
quartéis serve para ocultar os golpes de Estado mais letíferos. Hoje,
no Brasil, os golpes se condensam nas mudanças das leis, como a da
previdência, trabalhista, direitos ecológicos e humanos. Além, claro,
dos golpes definidos pela “reforma política”. Com medo ou por amor aos
tanques, muitos aceitarão os golpes preparados sine ira et studio pelos corrompidos palacianos. O resto é silêncio.
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