21 Setembro 2017
“Todo o mal tem que ser desfeito, em nome de Jesus”, diz um traficante, ordenando que uma yalorixá destrua as imagens do seu terreiro em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, divulgado na quarta-feira (13). Em outro vídeo que circula nas redes sociais,
um homem “lembra” a um pai de santo que o chefe não quer macumba no
local: “É só um diálogo [segurando um taco de baseball escrito diálogo]
que eu tô tendo com vocês. Da próxima vez eu mato”, diz. As cenas
absurdas são uma amostra de uma onda de ataques a terreiros de umbanda e candomblé comandados por traficantes que seguem acontecendo no Rio de Janeiro.
Até o momento, só em setembro, foram oito casos registrados apenas em Nova Iguaçu. O Disque 100, serviço de denúncias de violações de direitos humanos do Governo Federal,
recebeu, entre 2011 e 2016, 175 denúncias de intolerância religiosa no
estado – 10% do total no país. Há relatos de ataques e perseguições em
toda a Região Metropolitana. No Rio, traficantes proíbem a prática das religiões e o uso de roupas brancas, levando filhos de santos a deixarem as favelas. Na Cidade Alta, após a troca de comando no morro em novembro do ano passado, imagens de santos foram retiradas de comércios locais.
Os casos mencionados aconteceram em lugares dominados pela mesma facção criminosa, o Terceiro Comando Puro.
As investigações correm em sigilo e parte dos envolvidos já foi
identificada. Como resposta ao crescente número de casos de
intolerância, a Polícia Civil e a Secretaria de Segurança Pública acenam com a criação de uma delegacia especializada até o fim do ano.
A conversão religiosa dos “homens do tráfico” não é um fenômeno novo,
e esse tipo de perseguição acontece há mais de 10 anos nas favelas
cariocas. Para ajudar a entender essa dinâmica em que traficantes que se
denominam evangélicos tentam combater outras religiões nos territórios que dominam, conversamos com a professora de sociologia da UFF e autora do livro Oração de traficante: uma etnografia Christina Vital da Cunha, que pesquisa o tema há 23 anos.
A entrevista é de Juliana Gonçalves, publicada por The Intercept Brasil, 20-09-2017.
Eis a entrevista.
Por que é comum que traficantes busquem ajuda religiosa?
Tanto policiais quanto traficantes, sempre estão no limite. Então, buscam proteção na religião. O salmo 91 é usado por policiais e traficantes, por exemplo. Assim como São Jorge
foi e ainda é. O que acontece com essa proximidade mais recente dos
traficantes com esse universo evangélico é que a igreja se apresenta
como uma rede que os auxilia em diferentes questões da vida, como a
preparar a saída do tráfico. O que os pastores chamam de libertação de
traficantes.
Como aconteceu essa aproximação com os evangélicos?
A primeira coisa que a gente tem que pensar quando vai se analisar
essa situação é que os traficantes são formados em um caldo cultural que
é comum hoje às pessoas de favelas e periferias. Eles sempre são
produto de um meio. A gente vem observando com o passar das décadas,
sobretudo dos anos 1990, um crescimento muito expressivo no número de
templos religiosos evangélicos. Muitos deles são de famílias
evangélicas, então já foram educados com referencial religioso. Somado a
isso, os pentecostais têm
por característica a realização de missões com grupos marginalizados,
entre eles os traficantes, oferecendo rede de proteção espiritual,
psicológica e também material. Isso tem efetividade nessas localidades,
assim como no sistema prisional.
O pastor Marcos Pereira teve grande influência sobre
a conversão de vários chefes do tráfico, a partir da ação dele nos
presídios. Mas não só ele, traficantes convertidos, a Universal do Reino de Deus e a Assembleia de Deus também participam dessas ações em favelas e periferias.
Como os líderes religiosos enxergam esses traficantes que se denominam evangélicos?
Há muitos nessa comunidade moral que é a comunidade religiosa, que
negam o pertencimento do traficante, pois ele não pode dizer que é
evangélico porque ele não tem uma conduta correta. Dizem que eles estão
em um processo. Tem muita gente séria que leva a palavra de Deus a essas
pessoas, pois acreditam que elas podem e devem se libertar. Mas também
tem os que usam o dinheiro do tráfico. A coisa é complexa e tem de tudo.
A figura de traficantes evangélicos é exclusiva do Terceiro Comando Puro - TCP?
Nos anos 2000, houve a conversão de um dos chefes do Terceiro Comando.
Essa conversão atualiza comportamentos no crime. Havia uma orientação
que levava a menos confrontos, menos mortes e também se referia às
sucessões na hierarquia do tráfico baseada em uma visão que uma pessoa
teve na igreja. A partir daí, traficantes de lugares diferentes da
hierarquia do crime passam a se vincular ao universo religioso e ter o
comportamento orientado por esse conjunto de valores evangélicos.
Agora, não podemos afirmar que todo traficante evangélico pertence a
uma única facção. É verdade que os casos midiatizados nos últimos dias
são em localidades da mesma facção. Mas, por exemplo, no Complexo da Maré [no Rio], na parte do território do Comando Vermelho é comum as pichações com salmos e orações nas paredes. É algo que faz parte da cultura da periferia.
Em que momento as religiões de matriz africana passam a ser perseguidas?
Existem líderes religiosos que incentivam a partir dos seus discursos
nas igrejas atos de combate a inimigos espirituais e terrenos. Isso é
uma prática que não acontecem só em igrejas de denominação única
[independentes] em favelas e periferias. Isso acontece também com
lideranças que estão aparecendo na mídia, e a gente vai encontrar isso
em diferentes denominações e camadas sociais.
A partir da valorização de uma teologia do domínio, insuflam o
combate ao inimigo, o combate das forças do bem contra o mal. E o mal
está localizado em determinados símbolos, signos, grupos, religiões e
comportamentos que devem ser combatidos com ações enérgicas em
perspectivas violentas.
A gente vai acompanhando os efeitos negativos na sociedade em geral, como a menina Kaylane,
que levou uma pedrada em 2015. Agora a gente vê com mais frequência
essa ação dos traficantes, mas já tem pelo menos dez anos de perseguição e constrangimento em relação a religiões afrobrasileiras nas favelas.
Por que agora os ataques se tornaram constantes e são divulgados pelos próprios traficantes?
Isso começa a sair do controle dos líderes religiosos e passa a ser
como um código entre os traficantes. Um modo de comportamento que é
divulgado como um modo de demonstrar força e domínio. E acaba
viralizando na facção, em parte tem a ver com o estímulo de liderança
religiosa, mas, também, tem relação com a própria dinâmica do tráfico. É
uma demonstração de poder que se expressa no combate a esses religiosos
que representam o mal dentro da favela. Trata-se de mais uma modalidade
de violência.
O que pode ser feito contra essa perseguição?
É muito importante que esses casos sejam midiatizados. A pessoas
precisam procurar meios de falar sobre isso. Campanhas que criem
estigmas em relação aos intolerantes e ações do estado em diferentes
frentes são necessárias para que esse ataques parem.
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