31 de agosto de 2008
Roberto Romano
Desconfio
dos indivíduos postos sob o rótulo do “ex”. Nada mais assustador que uma
consciência atormentada pelas suas crenças e atitudes pretéritas. O arrependimento, diz Spinoza “é a
tristeza que acompanha a idéia de alguma ação que acreditamos ter sido feita
por um livre decreto da mente” (Ética, IV). Segundo o filósofo, não
surpreende que a tristeza resulte de atos “perversos” (pravi) e a alegria venha
com os retos (recti). “Na verdade, isso depende, sobretudo, da educação
(...) foram os pais que, ao desaprovar
os primeiros e exaltar os segundos, acabam por fazer com que as comoções da
tristeza fossem associadas a uns e as de alegria aos outros. O costume e
a religião não são os mesmos para todos, o que para uns é sagrado, para outros é profano, e o que para uns
é respeitoso, para outros é desrespeitoso. Dependendo de como cada um foi educado, arrepende-se de uma ação ou
gloria-se por tê-la praticado”.
Logo após essa lição de pedagogia, Spinoza discorre sobre a torpe arrogância, a
“soberba que consiste em fazer de si mesmo, por amor próprio, uma estimativa
acima da justa”.
Indivíduos ou grupos que assumiram certas doutrinas e se apossaram de postos dirigentes no Estado, na Igreja, nas associações civis, na maioria, são dominados pela soberba. Educados com a falsa idéia da própria excelência, exigem obediência, não admitem críticas nem réplicas, tendem a se confundir com o divino. A soberba, marca de Lúcifer e dos piores ditadores, dobra espinhas e mata quem ousa discordar do poderoso. O erotismo do mando, como toda paixão, ignora limites religiosos ou morais. Ditaduras, não raro, são estupros consentidos de coletividades. Quem as auxilia guarda a soberba, como se tivesse a razão no bolso, assassina corpos e almas acreditando agir livremente, quando na verdade é dirigido pelos seus mais torpes apetites. Escravos espalham servidão.
Quando o regime a que serviram ou que os serviu cai por terra, os arrependidos acusam os companheiros de tirania e atenuam a própria culpa. John Perkins (Confessions of an Economic Hit Man) é arrependido. Ele ajudou o governo norte-americano a praticar golpes financeiros e políticos contra governos do mundo. De repente escreve um livro onde retrata a si mesmo com figurações róseas, entenebrecendo as instituições a que serviu de bom grado.
Acaba de ser traduzido o volume de um outro arrependido,
no polo oposto ao de Perkins. Trata-se das memórias de Dmitri Volkogonov, “Os
sete chefes do império soviético” (RJ,
Nova Fronteira, 2008). O autor, militar de alta patente que serviu de maneira
direta os dirigentes da URSS, traça a genealogia dos tiranos que se apossaram
do Kremlin com o pretexto de levar igualdade, paz e prosperidade ao povo russo.
No prólogo o autor declara uma fé,
mantida durante sua vida inteira, e busca expiar sua culpa.
Ao
longo dos capítulos são mostrados, com documentos inéditos, as formas cínicas
de mando mantidas pelo Partido, do início até Gorbachev. Antes mesmo de ser o
dono da URSS, Lênin mostrou suas garras e ganância de poder. Por exemplo,
quando ainda em 1915 defendeu um policial, Malinovsky, com argumentos até hoje
empregados pelos soberbos de esquerda: “Temos
que ensinar” diz Lênin na defesa de um Cabo Anselmo daquele tempo, “ao nosso
povo (que é ingênuo, inexperiente e não sabe) como lutar contra desclassificados...”).
Eis a tese político revolucionária da
“consciência vinda de fora”, a qual colocou os donos do Partido acima do
proletariado. Lênin e seus áulicos
sabiam “o que fazer”. E causaram um dos piores genocídios da história. A
cada página de Volkogonov, no entanto, o leitor cauteloso se pergunta: o que
fazia o autor no instante em que as atrocidades eram praticadas e recebiam
justificação? Silêncio. É por tal motivo que agradeço muito aos arrependidos. Eles nos trazem informações preciosas sobre o
passado e o presente. Mas o cheiro da hipocrisia “arrependida” é nauseante.
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