São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 2006 |
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Riso e democracia ROBERTO ROMANO
Claude Roy A democracia fortalecida por Sólon agonizou em 322 a.C. Mas viveu 200 anos. O regime se tornou viável porque destinado a 42 mil cidadãos. Outra vantagem do modelo ateniense -paradigma do Ocidente político- reside nos seus prudentes estadistas, contra os demagogos. Os líderes ponderados praticam um imperativo categórico: "nada em demasia". Desse modo, a dosagem dos elementos constitucionais permitiu que o Estado não fosse conduzido segundo princípios vagos (alimento para os demagogos) nem retomasse a tradição inquestionada (alimento dos aristocratas). A democracia ateniense, elaborada lentamente, experimentou modificações sucessivas. Nenhum setor social teve preponderância absoluta no jogo político nem aniquilou os demais. Cada instância de poder era corrigida por outra, de modo que todas contribuíssem para a boa ordem constitucional. Entre os direitos garantidos na democrática Atenas, o mais elevado é o de opinião, unido à crítica e ao riso. Os inimigos daquele regime se beneficiaram da sua moderação. Apesar de algumas tragédias, como o processo de Sócrates, a tolerância imperou na cidade e, nela, foi possível criticar com máxima crueza as instituições e os seus chefes. Mesmo Sócrates, durante um terço de século, falou com toda liberdade contra a ordem democrática. "A comédia, a tragédia, o panfleto, os textos de propaganda hostis ao regime, às inúmeras leis e aos órgãos diretivos ou contra os seus defensores não foram perseguidos. Logo, um grande liberalismo, uma verdadeira liberdade de imprensa duplicada pela tribuna livre, onde se combatiam concepções e paixões variadas: a "oposição" política intelectual não foi proibida" (P. Cloché, "La Democratie Athénienne"). "A República" de Platão é um requisitório violento contra a democracia em nome da justiça. As peças de Aristófanes (sobretudo "As Vespas") caçoam dos sagrados valores democráticos justamente no ponto dolorido e atacado por Platão: a justiça. Aristófanes pinta os juízes democráticos como venais. O riso das platéias consagra o seu gênio, mas evidenciam seu erro político e ideológico. Sem riso, não existe democracia. É por tal motivo que as democracias ocidentais são hoje atacadas -na guerra das sátiras caricatas- pelas massas que se curvam, sérias e silentes, sob as piores ditaduras. Na ordem cristã, apesar dos muitos tiranos sérios, há abertura ao riso. Ainda agora pode-se ler na prestigiosa revista "Concilium" artigos como o de Karl-Joseph Kuschel sobre o poder liberador da gargalhada. Nenhum católico verdadeiro ignora os conselhos de Pascal na 11ª "Carta a um Provincial": "Há muita diferença entre rir da religião e rir de quem a profana por opiniões extravagantes (...) seria impiedade deixar de impor o desprezo pelas falsificações que o espírito do homem opõe à religião". O Éden prometido é um lugar onde a liberdade e o riso se realizam ao máximo: "Os justos rirão e tremerão ao mesmo tempo". Pascal evidencia o castigo do pecado pelo riso divino: "Nas primeiras palavras ditas por Deus ao homem após a queda se encontra uma caçoada e uma ironia picante (...) pois, seguindo-se à desobediência de Adão, Deus, como castigo, tornou-o sujeito à morte e, após tê-lo reduzido à condição miserável devida ao pecado, riu dele com palavras de brincadeira. Eis que o homem se tornou um de nós. Isso é uma ironia cruel e sensível pela qual Deus o espetou vivamente". Quando se proíbe o direito humano ao riso, a inteligência, a fina percepção e a crítica são torturadas. Não por acaso, Kant diz que a religião, com a sua santidade, e os governos, com a sua majestade, não têm a prerrogativa de fugir à crítica. O autor dos "Sonhos de um Visionário" sabia manipular a risada, algo aprendido com Voltaire, outro que ajudou a destruir o reino da pretensa santidade que mantinha fogueiras e autos da fé. Na ordem laica, a religião deve ser vista oficialmente nos limites da simples razão. Sem mais. Os brasileiros aprenderam a valorizar o riso contra as duas ditaduras do século 20. Sem Stanislaw Ponte Preta e o "Febeapá", muito sangue a mais correria no solo brasileiro. O mesmo vale para o "Pasquim" e todos os nossos cartunistas, vítimas preferidas da censura. Após tanta luta, é covardia aceitar o ultimato dos que se pretendem sérios quando se trata da sua religião ou ideologia, mas se sentem à vontade para pregar o ódio, silenciar sobre homens-bomba quando estes se proclamam fiéis a sua crença. Não é hora de fazermos mea-culpa, renegando o sangue dos nossos mártires, como Vladimir Herzog e milhares de outros. É tempo de ampla defesa da democracia. E do nosso direito sagrado de rir neste vale de lágrimas onde pontificam os que defendem o terror e a censura. Roberto Romano, 59, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo). |
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