Sempre existiu e sempre existirá crise ética
no mundo. A ética resulta do equilíbrio instável entre os comportamentos
(reforçados pelos valores estabelecidos) e as novas formas de agir e pensar.
Ela, portanto, supõe a crise, cujo significado original vem do grego krisis,
“instante de passagem, de escolha, de prova, decisão”. A cada átimo os
nossos hábitos sofrem o teste maior: eles preservam a nossa vida e a existência
da sociedade que nos acolhe? Formas tradicionais de comportamento, caso não permitam
responder positivamente a tal pergunta, inevitavelmente perdem vigência em
médio ou longo prazo.
Importa recordar o significado original do
termo “ética”. Na semântica histórica o termo ressalta o sentido de “postura”
(hexis). Como a sociedade grega era guerreira, os jovens deviam aprender as
posições corretas para a corrida, o uso das lanças etc. Tal aprendizado se
fazia nas disputas, sob orientação de instrutores ou no próprio campo de
batalha (Platão diz que os meninos deveriam sentir o cheiro do sangue, nas
guerras). Era vital correr certo, pois o uso inadequado dos pés, das pernas, de
todo o corpo, faria o exército perder tempo, podendo ser vencido. Ora, quem
aprende a andar errado, repete o erro automaticamente. Idêntico automatismo
ocorre quando se adquire a posição correta. Hexis, assim, é algo vital para a
sociedade grega, sendo por semelhante motivo valorizada a sua prática certa. O
automatismo traz o problema. Quando alguém anda ou corre erradamente, com muita
dificuldade poderá corrigir o erro que, de tanto ser repetido, torna-se
inconsciente. É preciso aprender o certo desde a mais tenra infância, daí o
fato de a ética ser ligada diretamente à educação. Com o tempo, por metáfora, a
postura passou a ser empregada para a atividade da mente. Assim como se aprende
um bom gesto físico, também se aprende um bom raciocínio. Ou, em caso oposto,
uma péssima postura na forma de pensamento. Também aqui é estratégico que a
criança aprenda a boa postura desde a mais tenra idade, caso contrário ela
aprenderá formas erradas de imaginar, calcular, agir diante dos valores
imateriais.
O problema é que a sociedade grega, apesar de
sua elevação filosófica, artística, científica, assumiu o automatismo de sua
cultura, a que dizia aos cidadãos da polis que eles eram os únicos dignos de
ostentar o título de homens, seres plenamente racionais e valorosos. Assim
nasceu o mito da autoctonia e da supremacia grega sobre os orientais e os
ocidentais do Norte europeu. Aristóteles, na “Política”, diz que os homens do
Oriente têm inteligência aguda, mas são covardes. Os europeus do Norte são
bravos, mas pouco brilhantes no pensamento. Os gregos, bem, eles reuniriam a
coragem à mente lúcida. E seriam, propriamente, homens. Os demais povos, os
bárbaros (palavra produzida com uma onomatopéia, que imita sarcasticamente os
estrangeiros ignorantes da língua grega, sendo portanto alheios ao Logos, à
razão) tinham como destino ser dominados pelos helênicos.
Surge aí um automatismo que persegue a ética
ocidental até hoje, impedindo sua plena cooperação com outras éticas. Tal
postura pode ser grosseiramente racista, mas pode ser traduzida em pensamentos
etnocêntricos, embora refinados intelectualmente. É o caso do brilhante
historiador da cultura guerreira grega, Victor Davis Hanson em livros como
“Porque o Ocidente venceu?”. Mas a superioridade auto-atribuída pelos
ocidentais não vai além da imagem idealizada. Na realidade, mesmo a Grécia
entra no movimento geral das éticas mediterrâneas. Ela muito aprendeu com o
Egito e demais impérios do Oriente Médio e do Mediterrâneo.
Mais adiante, a partir do século XIV (era
cristã) a ética européia foi se transformando, a cada século mais rapidamente,
no trato com as do Oriente Médio, da África, das Américas, do Extremo Oriente.
O mesmo ocorre com as últimas diante da européia. No século XX as trocas entre
as éticas regionais do planeta se tornaram a cada passo mais aceleradas,
devido, sobretudo, às tecnologias da comunicação. Do telégrafo à Internet, o
comércio espiritual entre as éticas se complexificou, tornando-se sempre mais
amplo, emaranhado, contraditório. Os movimentos retrógrados, que insistem em
conservar valores e hábitos inadequados à nova configuração do planeta, tendem
a se definir como quistos que apenas preparam o isolamento de seus praticantes,
ou seja, elas trazem a morte próxima ou lenta de sua cultura, formas políticas,
econômicas, religiosas, estéticas e tecnológicas.
Sigo o pensamento do etnólogo André
Leroi-Gourhan. Para ele, a cultura técnica – base da ordem ética – para se
reproduzir, exige das sociedades duas forças aparentemente contrárias: a
primeira é a capacidade de inventar instrumentos, valores, hábitos; a segunda
reside na aptidão para emprestar de outras sociedades instrumentos, valores,
hábitos. Quem não consegue emprestar é incapaz de inventar e vice-versa.
É o que vemos no planeta, sobretudo após o
século XVI. Os europeus emprestaram da China, da Índia, do Japão ciências e
técnicas em todos os domínios da vida. E inventaram, a partir daí, novas
técnicas, ciências, hábitos. No campo estético tomemos, no século XVIII, no
rococó, a quantidade de formas e traços conhecidos como “chinoiserie”, ou seja,
empréstimos do Japão e da China, nas artes plásticas. No século XX, temos o
movimento amplo chamado Art Nouveau. Ele é uma síntese de elementos orientais e
do Ocidente.
O mesmo pode ser dito de toda a cultura e da
ética. Gourhan mostra, após muitas pesquisas sobre a origem e a vigência da
tecnologia desde os nossos alvores como humanidade, que nosso corpo é produto
de nossa técnica, que desde o princípio vivemos em tecnosfera.
Moldamos nosso corpo inteiro, dos pés à caixa
craniana, o que possibilitou as técnicas de manipulação e a linguagem. Mas o
principal é que o nosso corpo, base da ética, se prolonga no universo dos
objetos técnicos que produzimos, mas não criamos. É bom recordar a diferença
entre “criação” e “produção”. No pensamento judaico-cristão, existe a idéia de
um ser onipotente que gera a natureza do nada. No pensamento grego, a natureza
já está ao dispor dos deuses, que a controlam, e dos homens que imitam os
deuses, ou desafiam os deuses como Prometeu. Assim, nesta forma de raciocinar,
não existe criação, mas produção a partir e, não raro, contra a natureza que
deve ser submetida pelos nossos atos técnicos. Se não existe criação absoluta,
também não existe autoctonia técnica plena. Cada sociedade inventa sua técnica
(e nela, a sua ética) emprestando traços de outras sociedades. Só é capaz de
inventar, retomo, quem se tornou competente para emprestar.
Ou seja, a técnica é um movimento perene de
Krisis, de decisão, escolha, teste. O mesmo para a ética. Uma cultura presa em
si mesma, sem choques com outras, nada acrescenta, nada inventa no seu trato
com a natureza e consigo mesma. Daí, o fato de que a crise, longe de ser algo
nocivo, é essencial para a sobrevivência correta, a expansão e o
desenvolvimento da técnica e da ética. Outra noção de Krisis dá bem a medida da
coisa: para os médicos dos tratados hipocráticos (outra fonte rica das
elaborações éticas do Ocidente), a crise da doença é o momento em que ainda não
foi vencida a moléstia (a morte pode vir) e já surgem sinais de recuperação da
saúde. A crise, portanto, pode seguir para a morte ou para a vida. Tudo depende
da perícia técnica do médico, da cooperação do adoecido, das forças que se
chocam no seu corpo. Ocorre com a crise o mesmo que se passa no plano do
remédio. Os médicos gregos nomeiam como Pharmakon os medicamentos, que
podem ser remédios ou venenos, muitas vezes dependendo da dose, do saber
técnico no seu emprego, do corpo adoecido. Assim também na ética: ficar muito
tempo na indecisão sem usar medidas técnicas para sair da crise, significa
aceitar o desaparecimento. Mas não se deve ser precipitado, pois apressar o fim
da crise antes do tempo pode ser desastroso. Esta é a lição política ensinada
pelos médicos aos teóricos da política, de Aristóteles até Maquiavel. Trata-se
da noção do Kayrós, o tempo oportuno. Quem deseja solucionar uma crise ética ou
política deve saber qual o instante certo para decidir as coisas. Um minuto
antes, um minuto depois, pode ser a ruína de uma sociedade ou Estado. O
comércio praticado entre as éticas, desde a era antiga até a moderna, supõe a
noção de crise, de tempo oportuno, de empréstimo e invenção. Falar em
“choques” ou “guerra” de culturas e de éticas significa tomar as coisas pela
rama, ignorar o principal, a perene crise de todas as formas culturais,
aceleradas na modernidade.
O Brasil… bem, o Brasil é o amálgama de uma
ética absolutista europeia com elementos dinâmicos da modernidade. Nossa ética
se enquistou no absolutismo que ignora e mesmo combate a democracia real
(pensemos no privilégio de foro, excrescência do século XVII em pleno século
XXI brasileiro), no menosprezo pelas técnicas de ponta, na desconfiança diante
das conquista políticas mundiais, bastando ver o ódio votado aqui à liberdade
de imprensa, no veto à existência de uma oposição efetiva, no conúbio entre o
público e o privado. Emprestamos apenas alguns elementos do processo de
mundializacão técnica e ética. Somos ainda incapazes de inventar novas éticas,
o que não nos assegura um futuro invejável, apesar de todas as nossas
potencialidades e riquezas. Se continuarmos ignorando a geração técnica, se não
investirmos em inovação em nossas indústrias e direção de empresas, se
persistirmos em viver sob uma forma de governo anacrônica (o absolutismo dos
operadores do Estado, que se julgam e agem como se não devessem prestar contas
a ninguém, sobretudo ao “cidadão comum”), setores vitais de nossa sociedade e
de nossa ética serão ainda mais fossilizados, no mesmo passo em que outras
sociedades agilizam e aproveitam com sentido certo de tempo oportuno as suas
crises, assumem novos rumos, inventam novos valores e geram novos horizontes.
São frutos de nossa ética as posturas
de governados e governantes que permitem a diferença entre “ser do poder”e “ser
gente comum”. Tal resquício do absolutismo torna possível uma classe especial
de seres, os poderosos, que tudo fazem em detrimento dos cofres públicos e em
favor de seus bolsos. Vivemos até data recente com a admiração popular diante
de personagens que, se dizia, “roubam, mas fazem”. Esta complacência, ou
cumplicidade das massas, é algo preparado com muita técnica e ardilosidade, e
tem como datas principais as mesmas que indicam o nascimento do Estado
absoluto. Neste último, as fontes públicas de recurso se concentram nas mãos
dos governantes, que as direcionam no interesse do governo, sem ouvir os que
pagam impostos. Estes, por sua vez, não têm direitos a reclamar nas políticas
públicas.
Mesmo porque a essência do poder absolutista
reside na razão de Estado que é conatural ao segredo de Estado. Os impostos, a
polícia, as guerras, a administração, tudo é razão e segredo de Estado no
absolutismo. Certa feita o rei francês pediu um aumento de imposto à Assembléia
dos Estados (nobreza, clero, terceiro estado). Sua desculpa era a guerra. Os
representantes do terceiro estado pediram para inspecionar as contas reais. O
clero, setor mais influente na época, em seu voto disse que as finanças do rei
eram como o Santíssimo Sacramento no cofre sagrado. Apenas os que tinham poder
divino poderiam saber o que nelas se escondia… Segredo e razão de Estado são
sinônimos, em todos os sentidos. E o governante absolutista distribuía
privilégios para se manter no comando do Estado. Dentre os privilégios,
contemos os recursos financeiros, as terras etc. O clero e os nobres eram os
mais agraciados com tais privilégios, pagos à custa dos contribuintes. Rei,
clero, nobres, nenhum deles julgava ter de prestar contas de seus atos e dos
dinheiros. Ora, quando as revoluções modernas, republicanas e democráticas, já
tinham sido efetivadas (a inglesa ainda no século XVII, a norte-americana e a
francesa no XVIII), no Brasil do século XIX se reitera o absolutismo sob
comando do príncipe Dom João, mantendo-se os fundamentos do privilégio, do
segredo, da irresponsabilidade no manejo dos recursos públicos.
Aliás, fugido de Napoleão, que bem ou mal
representava um avanço democrático quando comparado ao Antigo Regime absolutista,
Dom João fez do Brasil um país refratário às “doutrinas infernais” da
república, da democracia etc. Foi assim que o Príncipe fez o Banco do Brasil,
que imprimiu papéis sem lastro e foi obrigado a fechar. O governante viu apenas
as suas necessidades, sem cuidar nem um pouco da accountability.
A justificativa do Poder Moderador, na Carta
de 1824, encontra-se nesta ressurreição, nos trópicos, do absolutismo. Com o
Império, concentraram-se na Corte os impostos, que os distribuía pelas
províncias e municípios conforme a sua obediência aos ditames do poder
imperial. Assim, cidades ficaram séculos sem serviços públicos elementares. É
quando os poderosos regionais se unem em oligarquias para arrancar meios do
poder central, oferecendo como troca o controle das populações e apoio aos
projetos do governo. Algo mais grave ocorre ainda no plano ético. Como as
cidades são desprovidas de recursos, os fazendeiros (candidatos a oligarcas)
que têm lugar nas Câmaras de Vereadores e na Prefeituras, emprestam o seu próprio
dinheiro (além da mão de obra escrava que lhes pertencia e dos materiais,
comprados no Rio ou São Paulo) aos cofres municipais para obras públicas. O
fato surge aos olhos dos cidadãos como um favor prestado à coletividade. Mas
breve surge a contrapartida.
A professora Maria Sylvia Carvalho Franco
mostra que, tempos após a instauração de tal prática, os vereadores e prefeitos
imaginaram o processo como rua de mão dupla: “se quando o município precisa, eu
empresto, quando eu preciso…”. Temos aí o uso de confundir o dinheiro público
com o privado, usando o primeiro para ascender socialmente, comprar postos de
mando, alianças políticas, etc. Em “Homens Livres na Ordem Escravocrata”, todo
o sistema é exposto com detalhes e provas. Importa sublinhar que a passagem do
“favor” ao uso do dinheiro público, ocorre com aprovação ou mesmo cumplicidade
dos governados. Tal é a origem do “‘é dando que se recebe” e do “rouba, mas
faz”.
Mantida a concentração do poder no palácio
presidencial, em detrimento dos Estados e municípios, mantido o sistema
concentrador de impostos no poder “federal”, as populações não têm outra
escolha senão votar nos poderosos regionais, os oligarcas, que trazem obras
para as cidades. Ou seja, elas aprendem uma ética contrária à república e à democracia.
Nem os proprietários do poder central, nem os oligarcas, imaginam ter obrigação
de prestar contas de recursos aos contribuintes. Mas exigem cada vez mais
impostos para prestar “serviços” ineficientes na saúde, educação, segurança,
cultura, ciência e técnica. Eles julgam ter direito a colocar no bolso próprio,
ou de seu partido, parte do butim, para manter os “favores”, ou seja, a
realização de obras públicas nas urbes.
E agora vem a pior parte: desafio qualquer
pessoa a lançar um candidato ético, respeitador dos dinheiros públicos, em
qualquer eleição brasileira. Se ele provar que trará, ou trouxe, obras públicas
para os eleitores, será eleito tantas vezes quanto possível o que trouxer obras
públicas. Caso contrário, receberá parcos votos.
O eleitor que, diante dos jornais, rádio ou
TV diz ter nojo da corrupção política, não sabe ou não quer saber o que os
políticos “eficientes”devem fazer, no Congresso, para conseguir os recursos. O
mínimo é praticar o “é dando, que se recebe, o toma lá dá cá”. Ou seja, a
corrupção é tridimensional: existe o corruptor de obras públicas, o corrompido
dos poderes, o eleitor… Sem uma efetiva democratização que obrigue os gestores
a prestar contas, sem uma abolição dos privilégios (em especial o de foro), sem
uma federalização que permita maior autonomia (sobretudo financeira) aos
Estados e Municípios, a fábrica da corrupção ética e financeira estará
funcionando em pleno vapor. Tenho alguns escritos sobre o problema. Em
especial, gostaria de indicar um texto meu saído na Revista de Economia
Mackenzie, cujo título é “Impostos e Razão de Estado”.
O nosso Judiciário está inserido na estrutura
do Estado brasileiro, ou seja, mesmo que boa parte de seus integrantes queira
exercer a missão de julgar de acordo com os padrões republicanos e
democráticos, a instituição é homóloga à dos outros setores, com agravantes. O
Executivo e o Legislativo seguem regras de transparência e são submetidos à
opinião pública, à imprensa, ao
voto. Quando perdem seus cargos, perdem a remuneração e, quando seus processos
judiciais não recebem o sinal do segredo de justiça, sua vida inteira se
transforma em objeto de análise pública. Não é assim com os magistrados. Quando
perdem seu cargo, guardam o pagamento, são julgados pelos pares em plano sigiloso
e, quando fica evidente a sua ausência de ortodoxia ética no cargo, não recebem
punição a tempo e a hora. O debate nacional ao redor do CNJ, as tentativas de
enfraquecer o trabalho da Corregedoria daquela instituição que deveria
controlar a prática dos juízes, tudo mostra que dos três poderes o judiciário é
o mais arredio aos elementos democráticos da transparência e da accountability.
Existem exceções, com certeza, mas a regra não é passível de aplausos unânimes.
Modo geral, os que operam no campo do direito
manifestam um alto teor de corporativismo e, em muitos casos, de desprezo pelos
“estranhos”, os “leigos”, os “cidadãos”comuns. Eles esquecem que, num mundo
altamente dividido em especializações, o jurista também é leigo para o médico,
o engenheiro, o arquiteto, o economista, o físico, o químico, o administrador
de empresas, etc. Existem
questões que vão além das especialidades. Tais questões não admitem donos da verdade
nem ditadores da ciência, seja ela jurídica. Muitos operadores do direito, aqui
incluindo advogados e promotores além de juízes, não admitem o ponto. Além
disso, o judiciário não tem exercido o papel que lhe cabe de morigerar os
outros poderes. Haja vista a facilidade com a qual é aplicado o privilégio de
foro, sem um questionamento protocolar: ele fere o princípio da igualdade de
todos perante a lei. Quando os que praticam improbidade com os recursos
públicos fogem do juiz natural, o da primeira instância, e são supostamente
colocados sob o julgamento dos tribunais superiores (quantas penalidades foram
mesmo aplicadas até hoje?) temos a ruptura com o regime ordenado na
Constituição e referendado pela cidadania. Esta última recusou a forma da
monarquia (com tudo o que ela implica no Brasil de privilégios, lembremos que
mesmos em países monárquicos do mundo atual, os políticos não gozam dos
privilégios que lhes são outorgados aqui), mas a justiça passa ao largo,
aceitando um ordenamento evidentemente injusto, escandaloso, inconstitucional.
O privilégio de foro não cria a corrupção, mas a reforça e torna os improbos
mais arrogantes, sem tomarem sequer nos dias de hoje a cautela de esconder suas
manobras fraudulentas. O que se praticava dissimuladamente tempos atrás, se
comete hoje em plena praça pública.
Acho mais adequado perguntar sobre o impacto
da corrupção sobre o Estado e a sociedade como um todo. O primeiro e mais
deletério é o sumiço da fé pública. E sem tal elemento não existe Estado de
direito. Se não é possível confiar nos gestores do Estado (nos três poderes),
não há motivo para obedecer a lei, pagar impostos, servir militarmente, viver
segundo as regras civilizadas. Investir recursos privados em setores que
dependem da administração pública, quando é sabido que tais recursos irão parar
nos cofres dos partidos e dos indivíduos que operam na política, é tarefa que
beira a falta de sentido.
As pesquisas que indicam a perda progressiva
de fé da cidadania no sistema democrático deveria ser um alerta aos que ainda
buscam um modo de vida pautado pelos valores da democracia. Mas quantos, na
camada política, valorizam a república, a democracia, a responsabilidade, o
respeito às leis vigentes? Quando legisladores quebram a lei, como ocorre com
frequência terrível no Brasil, perde sentido se falar em Estado, ou mesmo
Estado de Direito.
A violência que grassa em nossa sociedade
(basta ver o trânsito, 40 mil morte por ano, mais do que em muitas guerras
tremendas ocorridas nos últimos anos no planeta) mostra os efeitos da corrupção
de maneira clara. Basta dizer que os assassinos do trânsito, como os improbos,
escapam das malhas da justiça de modo fácil. É bom recordar o dito de Diógenes:
“A lei é uma teia de aranha que prende os insetos pequenos, e não resiste à
força dos grandes”, pois nela fazem buracos confortáveis. Pelo que ocorre no
Brasil, haja conforto! Nosso sistema leva a população a aceitar “favores” dos
que operam o Estado. Se ela não identifica favores nos oligarcas, os encontra
em ações governamentais. Antes, valia como arma política de controle o bico de
pena. Hoje, o cartão magnético do Bolsa Família e outros mais. E os setores da
classe média e dos mais bem aquinhoados temem perder algo conquistado após
muito desespero, ou seja, a inflação razoavelmente baixa e a estabilidade
econômica. Não podemos dizer que apenas a conjuntura poderia explicar
semelhante apatia popular diante da corrupção. Devemos, antes de tudo, dizer
que o alheamento não é absoluto, pois cerca de dois milhões de pessoas se
movimentaram para conseguir a lei da Ficha Limpa. Esta, apesar de tudo, marca o
desejo dos cidadãos de combater o processo corrosivo que anula o Estado de
direito entre nós.
Para compreender o motivo da suposta
passividade do povo brasileiro diante da corrupção, precisamos refletir sobre o
peso da inflação na vida nacional, de 1954 até o Plano Real. Um processo
inflacionário como o vivido em nossa terra corrompe valores, quebra
resistências éticas, abre caminho para o desespero de indivíduos, grupos,
classes. Permitam que eu cite um dos autores mais relevantes na análise
política e antropológica do século XX, Elias Canetti. Em sua obra lúcida e
profunda chamada “Massa e poder”, existe um capítulo fundamental intitulado “A
inflação como fenômeno de massa”. Em outros livros e textos ele comenta o
impacto da inflação na ordem social e política. Tanto sua autobiografia (“Die
Fackel im Ohr” ou “A torcha no ouvido”), quanto “Auto-da-fé” (“Die Blendung”)
trazem situações vividas durante o tremendo processo inflacionário de Weimar.
Como seu contemporâneo Georg Simmel, que publicou um monumento teórico chamado
“Filosofia do Dinheiro” (“Philosophie des Geldes”, 1900, existe tradução
inglesa da obra, “The Philosophy of Money”), Canetti presta atenção ao papel do
dinheiro na ordem cultural moderna e na geração da identidade psicológica das
pessoas.
Ele parte de um fato incontestável: “Pode-se
afirmar que nas nossas civilizações modernas, excetuando-se as guerras e as
revoluções, não existe nada que em sua envergadura seja comparável às
inflações”. Canetti mostra como há um nexo entre o corpo do homem, a sua mão sobretudo,
e a moeda. Com o enfraquecimento deste vínculo, após o papel moeda (embora o
padrão ouro ainda garanta a confiabilidade de uma economia), ainda permaneceu
um ponto de estabilidade e confiança nos governos democráticos. Trata-se da
cifra que indica o “milhão”. Como designação de um número, o “milhão” tanto
pode referir-se ao dinheiro como aos homens. E Canetti nos reconduz à íntima
passagem entre a inflação verbal e a econômico-política. Milhão: “O caráter
duplo da palavra pode ser analisado muito bem nos discursos políticos. O prazer
voluptuoso do número que cresce repentinamente, por exemplo, é característico
dos discursos de Hitler. Em geral, ele se refere aos milhões de alemães que
ainda vivem no exterior do Reich que ainda precisam ser redimidos”.
Importa sublinhar: no mundo atual, massa e
milhão relacionam-se imperativamente. No processo inflacionário, entretanto, “a
unidade monetária perde repentinamente sua personalidade. Ela se transforma na
massa crescente de unidades; estas possuem cada vez menos valor à medida que
aumenta a massa. Os milhões, que tanto se quis possuir, estão repentinamente em
nossas mãos, mas já não são mais milhões, apenas se chamam assim.
Na inflação, ocorre um elemento perverso e
perversor: “O que cresce toma-se cada vez mais fraco. O que antes era um marco
é agora dez mil, depois cem mil, depois um milhão. A identificação do homem
individual com seu dinheiro é abolida desta forma”. O homem, que antes confiava
na sua moeda ou bilhete, não “pode evitar sentir seu rebaixamento como um
rebaixamento dele próprio. (…) A inflação não abala apenas tudo externamente;
nada mais é seguro, nada permanece no mesmo local durante uma hora; em virtude
da inflação, ele mesmo, o homem, diminui. Ele mesmo, ou o que ele foi, é nada;
o milhão, que ele sempre desejou ter, também é nada. Todos o possuem. Mas cada
um é nada”.
A inflação, desse modo, pensa Canetti, é uma
“desvalorização dupla (…), o indivíduo sente-se desvalorizado, porque a unidade
na qual confiou, que ele respeitava tanto como a si mesmo, começou a deslizar
para baixo. A massa sente-se desvalorizada. (…) Como pouco se vale sozinho,
igualmente pouco se vale unido aos demais. Quando os milhões aumentam, todo um
povo de milhões se converte em nada”.
A massa, entretanto, não se esquece de sua
desvalorização. “A tendência natural, a partir daí, é a de encontrar algo que
valha ainda menos do que a própria pessoa, algo que possa ser desprezado da
mesma forma como se foi desprezado antes.” A massa, digamos, busca um bode
expiatório onde descarregar o sentimento de ser nada. Canetti aponta para o
vínculo entre a inflação alemã e os milhões de judeus, supostamente inferiores
aos arianos empobrecidos pela inflação, mortos nos campos de extermínio.
A lição trazida pelo processo inflacionário
de Weimar não foi aprendida o bastante pelas sociedades ocidentais. O
descontrole da economia traz inflação e, com ela, massas dispostas a seguir os
mais diversos Messias, cobrando de supostos culpados toda a insegurança e
humilhação vividas. Basta ver o que se passa na suposta União Européia
nos últimos tempos. Recomendaria modestamente a leitura de um livro relevante
para os nossos políticos, magistrados, universitários, jornalistas. Penso no
volume publicado por Bernd Widdig (“Culture and inflation in Weimar Republic”),
onde inclusive existe um capítulo inteiro dedicado às análises de Elias
Canetti.
No caso brasileiro a população, desacostumada
aos procedimentos democráticos (no século XIX, os nossos governantes
dificilmente poderiam ser postos entre os campeões da democracia), algo piorado
por dois regimes de exceção no século XX, e também afeita aos favores que
espera dos que operam o Estado, não teve oportunidade de exercitar ativamente a
crítica e a cidadania. Se na Alemanha, onde o nível da participação política
das multidões foi elevado, sobretudo após 1848 (a era das revoluções) aconteceu
um descontrole econômico e político desastroso como a inflação, conduzindo à fé
cega num redentor, no caso Adolf Hitler, não é de espantar que no Brasil tenham
medrado arremedos messiânicos como o de Jânio Quadros, José Sarney (recordemos
a histeria dos “fiscais do presidente” que invadiam supermercados, prendiam
gerentes, penetravam em fazendas na caça aos bois gordos, com base na lei
delegada etc), Fernando Collor… A cada nova onda de fé no salvador
presidencial, seguia uma onda de humilhação, perda da autoestima, desespero
diante do presente e do futuro. A apatia que hoje se observa nas massas
urbanas brasileiras tem várias faces, sendo que a primeira é justamente a
segurança econômica, da qual fala a propaganda oficial necessariamente.
Protestar contra a corrupção parece ser algo
menor, se comparado ao pesadelo vivido antes do Plano Real. Acrescente-se que a
mesma propaganda “sequestrou” o peso dos governos Itamar Franco e Fernando
Henrique na construção daquela segurança: “nunca, antes neste país…”. A segunda
face, mais triste, é o conúbio dos eleitores com os corruptos que lhes fazem
“favores” pessoais ou coletivos (trazem obras para as cidades etc). A terceira
é o controle quase absoluto do governo federal sobre as obras públicas no país
inteiro, facilmente transformando-as em instrumento político eleitoral. E temos
várias outras faces.
Mas digamos, para encerrar esta longa
resposta, que um povo que viveu sob a inflação e foi humilhado ao máximo por
ela, se dispõe à entrega total a um líder populista. E tal fato traz muitas
preocupações com o futuro da democracia.
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