DOUTORADO HONORIS CAUSA DA UNICAMP A DOM PAULO, OUTUBRO DE 2000
SAUDAÇÃO AO NOVO
DOUTOR PELO PROFESSOR DR. ROBERTO ROMANO
Ecce exiit, qui seminat, semirare. Não seria preciso a lembrança de
Vieira para dizer o quanto é vital a missão de quem semeia o verbo. Pedras,
espinhos, pássaros, toda a natureza e todos os espíritos podem destruir o véu
diáfano da palavra prenhe de sabedoria. A infertilidade, não raro, encontra-se
fora do semeador, quase sempre localiza-se no ambiente, nos ouvidos que
deveriam acolher a mensagem. Mas a palavra, sal da terra, também perde o sabor.
Então, a culpa é de quem semeia. A sentença vem na frase cristã sobre os homens
que nem a peixe nem a carne se parecem, mas ficam alheios às dores e alegrias
dos homens. Quem não salga, é pisado, cedo ou tarde, pelos tempos ou espaços,
físicos ou sociais. Conculcatum est! Para
que serve um sal insípido? Para nada.
Na Universidade e na Igreja,
Paulo, existem semeadores. Eles podem perder os homens, e se perder. Felizes os
que não colocam sobre as costas dos mortais cargas que não poderiam nem sonhar
em conduzir! Tanto na cultura cristã, quanto no pensamento grego, temos a clara
idéia do mundo espiritual como semeadura, com fertilidade ou pobreza de frutos.
Plutarco afirma, em algum lugar, que o ensino platônico é como água prenhe de
vida caindo sobre as mentes dos ouvintes. As palavras filosóficas, se caem em
terreno favorável, florescem e dão frutos. Caso oposto, os signos de sabedoria,
em contato com a mente álgida do receptor, se transformam em chuva de gelo,
dando morte momentânea ao verbo sapiente. Quando o terreno muda, adubado pela
vida ou pela educação, as palavras congeladas podem se dissolver, e liberam o
conhecimento nelas escondido. Platão compara os indivíduos a frutos agrícolas.
Uns podem alimentar a vida coletiva, e sua existência melhora o padrão humano
em geral. Outros, grãos duros, encruam, não mergulham no alimento comum servido
à polis. Eles não entram no circuito
pleno das duas palavras essenciais ao ideário platônico e à Grécia no seu todo:
paideia kai trophes. Quantos grãos
encruados existem, Paulo, na Igreja e na Universidade! Quanta semente infértil,
quanto gelo!
Sabemos, desde o teu predecessor
de mesmo nome, Paulo, o grande significado da metáfora corporal. Esta também
nos envia aos vários saberes, gregos, judaicos, latinos. A realidade plena do Corpus mysticum nos ultrapassa. Mas
sabemos que, no interior da comunidade, todos pertencemos ao mesmo sangue, à
mesma carne, ao mesmo hálito divino. Sabemos, mas poucos têm a virtude
suficiente para viver esta comunhão, num banquete partilhado pelos nossos
irmãos, sobretudo aos que se recusa até as migalhas.
Paulo: és pastor e doutor. Sabes,
por teoria e vida, o quanto o mestre da República,
ele novamente, prezava o cão enquanto imagem da sabedoria. Rabelais conta, na
boca de um personagem, que segundo Platão o cachorro, e não tanto o homem, é o
animal filosófico por excelência, porque não se contenta com a superfície das
coisas e busca a substância alimentícia escondida no interior do osso. E o cão,
ainda no ensino platônico, deveria ser o ícone do governante justo: bom e manso
para os de casa, feroz para com os inimigos. Em todo o teu período pastoral, à
frente de uma das mais violentas dioceses do Brasil, tu defendestes os de casa,
os pobres, os perseguidos. E fostes um anteparo contra os lobos. Em tempos de
FMI, é bom recordar teu exemplo, porque raramente encontramos estas marcas caninas
em nossos magistrados civis. Basta recordar a atitude dos nossos ministros, por
ocasião do recente plebiscito sobre a dívida externa brasileira, liderado pela
CNBB e pela sociedade política nacional. O dirigente, pastor de homens, deve
incentivar nos dirigidos o amor dos seus iguais, através da philia. Uma cidade inimiga de si mesma,
diz o grego, de modo próximo aos Evangelhos, não subsiste. Nas Leis,
encontramos a frase bela e terrível sobre a boa cidade, aquela onde é proibido
a caça aos homens, e onde as dores e alegrias dos indivíduos são as dores e
alegrias do todo, e vice versa. No grande corpo da polis é preciso que os membros se rejubilem e chorem, em ritmo
igual. Se a maioria chora, e a minoria ri, algo errado, doente, encontra-se no
corpo.
Mas para que todos percebam o
alcance deste viver em comum, é preciso que lhes seja ensinada a sapiência. E
aí, recomeça o cântico da educação dos homens através dos tempos. Para que o
saber frutifique, alguém precisa sair, e semear... com todos os riscos que isto
implique, como as tempestades, os envaidecimentos humanos, as calúnias, os
choques, o medo, as esperanças contrariadas. Ninguém semeia tendo certeza da
colheita. Cabe a Deus e à sua Providência, definir este ponto. Ou cabe à
natureza. Jean Pierre Vernant, um sábio estudioso do conhecimento grego, diz
que é bom notar as diferenças da imaginação do mando, no Ocidente e no Oriente.
Enquanto nos apegamos à figura do
pastor, dinâmica por excelência, a China idealiza o dirigente como jardineiro
que assiste o crescimento das plantas, sem intervir indiscretamente, e sem
retirar o movimento dos liderados. Raros homens que exercem o mando unem as
virtudes do pastor e as do jardineiro. Teu governo, na diocese de São Paulo,
jungiu estes dois valores. Corajoso, como só podem ser os homens de fé e cheios
de retidão, teu comando empurrou os tíbios para a defesa da vida humana,
sobretudo na época mais negra de nossa história, tempo do poder castrense,
apoiado no terror e na tortura, na morte e no desaparecimento dos que não
aceitavam o fim da sociedade civil. Mas além da tua liderança, como pastor
intrépido, ressaltou diante do mundo e do Brasil a tua paciência de jardineiro
das almas.
Ensinastes, semeando nos sermões,
nas praças públicas, nos atos contra as atrocidades, nos cárceres, nas favelas,
nas mansões dos ricos, nos palácios dos poderosos. Sempre igual e sempre
diverso, conforme é imperativo do lavrador evangélico, grego com os gregos,
romano com os romanos. Não foram esquecidos em tua vigília pastoral os irmãos reformados,
os judeus, os seguidores do Alcorão e os sem crença. Todos são unânimes ao
agradecer a presença do teu báculo amigo. Nenhum brasileiro esquecerá tuas
palavras impregnadas de cólera divina, na cerimônia fúnebre onde choramos
Vladimir Herzog, as frases que recuperaram a dignidade plena da Igreja e do
povo brasileiro, no crepúsculo de sinistra ditadura. Este lado é uma das faces
mais sublimes de nosso hóspede. Ele merece nosso aplauso também por razões
especulativas, acadêmicas.
Quando Paulo Evaristo Arns
começou a semear, preparou boas sementes. O humilde franciscano rumou para a
Sorbonne, onde aprendeu os mistérios dos livros e do Livro, alimentando-se dos
frutos produzidos por Jerônimo e todos os que ajudaram a edificar um jardim
espiritual de vastidões infinitas. Paulo mereceu o título de doutor, com um
trabalho acadêmico que ilumina aspectos importantes da nossa civilização. Após
mergulhar nas fontes do Verbo, ele retornou ao Brasil, onde exerceu a cura
d´almas, sempre proclamando a palavra, humana e divina, com prudência e
coragem. Praticou os mandamentos do Cristo ao visitar os doentes, atender os
presos, lutar pela família e pela dignidade da pessoa humana.
Neste ato, Paulo, não cabem
muitas palavras. O silêncio respeitoso diante de tua figura ímpar, vale mais do
que longos discursos. Bem vindo entre nós, que tentamos cultivar o Logos, tu que és um dos mais belos
exemplos da semeadura do Verbo encarnado. A UNICAMP te homenageia com a sua jóia mais rara, o seu título mais
essencial, mais precioso. Ela tem certeza de que tu o mereces e que ela merece
a tua presença. Esta alegria é a nossa festa de hoje. Nas antigas cerimônias de
entronização papal, após o ofício divino, o carmelengo entregava ao novo
pontífice uma bolsa com moedas de ouro, pro
missa bene cantata. Não temos espécies materiais, mas este título é áureo
no espírito, e nós te entregamos a honra de Doutor Honoris causa pela UNICAMP,
pro vita bene cantata. Deus te
proteja e nos salve.
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