Vergonha: procura-se.
Roberto Romano
Veja último número de dezembro de 2018.
Uma frase sempre vem aos lábios dos
brasileiros deseducados, truculentos, egoístas e malandros, quando postos em
situação difícil de ser resolvida corretamente. O fulano ou fulana fura a fila
do banco ostentando ares de superioridade, vê-se repelido pelos que exigem seus
direitos e, pode até não falar, mas pensa: “O Brasil é assim mesmo”. Várias
sandices estão reunidas aí, nesta lógica distorcida. Com ela, o inefável tolo
quer dizer que ele, isso mesmo, o ser muito importante que está acima dos
outros, não tem laços com a cultura de seu povo. A plebe não viaja para Nova
York, Paris, Londres ou Roma. Logo, ela não percebe o quão sublime é o
personagem que reivindica o privilégio de romper normas comezinhas de
civilidade, como respeitar o próximo, os lugares na fila e a vaga no
estacionamento, entre muitas outras. Se topa com alguém que aponta sua falta de
educação, o ser superior apela: “Que gente chata!”. E acabou, tudo se resolveu.
Trata-se daquela finura de trato que espelha o gosto estabelecido. Tais indivíduos
são finos em demasia, tomam champanhe com linguiça. “O Brasil é assim mesmo”.
Estacionou na vaga dos deficientes
físicos? No worry! “Ficarei apenas uns minutinhos e já volto”. Berra nos
restaurantes, gargalha a ponto de impedir a refeição alheia? Sem problemas: os
demais clientes que se danem, “quero ser feliz com os meus amigos e colegas”.
Para na fila dupla quando leva os pimpolhos ao colégio? “O trânsito brasileiro
é primitivo, insuportável”. Empurra um desprevenido no corredor do shopping
center? “Desculpa, eu não vi”. Sequer desconfia o truculento que a segunda
pessoa do singular é uma forma lastimável de desrespeito. E ademais o “não vi”
prova uma inconsciência total no campo ético. Quando alguém se move no espaço
público, o ético, o moral, o polido é ver o corpo alheio, tomar cuidado para
não ferir.
Na sociedade brasileira, condutas
perniciosas de indivíduos e grupos são herança do que havia de pior no regime
absolutista que regeu nossa história colonial. Os portugueses entram no cômputo
dos povos europeus que sofreram, durante séculos, a centralização do poder nas
mãos do rei. Aquela política repousava em alguns elementos estratégicos. Para
dobrar a espinha de sacerdotes e nobres, o rei lhes distribuía favores,
dava-lhes isenção de impostos, títulos, subvenções, cargos. Sem tal partilha,
ou ele era assassinado, ou não conseguia governar. Para obter os favores do
rei, as “elites”, por sua vez, precisavam apelar para intermediários entre elas
e o trono. Na indicação de um cargo, o rei pagava favores para, em troca,
ganhar o favor da governabilidade. Nobres e clero, por seu lado, pagavam
favores aos intermediários e ao rei. Trata-se de um circuito poderoso cuja
moeda é a bajulação universal, a compra e venda corrupta de
favorecimentos.
Historiadores apontam na sociedade
absolutista um dos regimes mais corrompidos da saga humana. No Antigo Regime
tudo se comprava, tudo se vendia, tudo se obtinha com a prestação de favores
tanto aos indivíduos no mesmo nível social e político quanto aos “superiores”,
que facilitavam a outorga de empregos e recursos. A sociedade absolutista era
um tecido muito denso no qual dominava o favor. O indivíduo se rebaixava diante
de alguém mais importante e pisava na garganta de quem estava abaixo de sua
posição.
Ocorre que a covardia subserviente se
transforma, conforme a situação, em covardia arrogante. Assim foi gerada boa
parte das elites do Antigo Regime, a cuja reiteração imaginária assistimos hoje
quando o fulano pergunta, cheio da pior empáfia: “Sabe com quem está falando?”.
Em terras polidas e cultas, a pergunta, em situações tensas e similares, é o
contrário: “Quem você pensa que é?”. Ou seja, a igualdade no trato não pode ser
quebrada, salvo em caso de vácua pretensão, por ninguém. Mas no Brasil o favor
garante que o bajulador se apresente como tirano, se imagine estar frente a
alguém inferior, “diferenciado”.
Não causa nenhuma surpresa que, já na
carta em que Pero Vaz de Caminha anunciou ao rei de Portugal a descoberta do
Brasil, cargos sejam pedidos humildemente como favor, em prol de parentes. E
temos aí a forma pela qual foi moldada a sociedade brasileira. A prática do
favor, a reivindicação de “superioridade” sobre quem não é nobre, rico ou
padre, favoreceu a formação de um coletivo sem a noção mínima da igualdade
republicana. Como dizia o padre Antônio Vieira, os brasileiros não são
“repúblicos”. Ao contrário do povo inglês, do francês e do americano, não
praticamos as virtudes da responsabilidade diante do povo (accountability) e a
igualdade política. Na Revolução Puritana do século XVII, que instaurou a
monarquia constitucional na Inglaterra, o partido mais importante tinha como
nome e slogan o termo levellers, ou seja, niveladores, anuladores das
diferenças. No Brasil, os igualitários sempre foram vencidos pelo Estado e a
vitória coube aos que beijam os pés dos governantes e insultam os vencidos.
Gerou-se em 500 anos uma noção de elite sem paralelo nos centros civilizados do
planeta.
Aqui, mesmo nos dias de hoje, vivemos
como se estivéssemos no Antigo Regime. Os cargos nas empresas públicas e
privadas são distribuídos segundo padrões do favor político, ideológico ou
religioso. É a regra do “quem indica”. Sob o império do favor, indivíduos e
grupos agem como se fossem melhores do que os “simples pagantes de imposto”.
Ou, na linguagem de Dom João VI, “a gente ordinária de vestes”. Daí o
sentimento de impunidade presente nos setores que, por estarem em posições de
poder ou prestígio, usam a famosa carteirada (em duplo sentido: cargos e bolsos
repletos) para negar direitos aos outros cidadãos. Quanto mais grosseiros e
injustos, mais autorizados se sentem a romper o contrato social.
Na cidade de Atenas, onde se definiu
a composição mais relevante da ordem democrática, algumas leis foram
estratégicas nesta empreitada. A primeira tratava da responsabilidade nos
serviços públicos. Só podiam ser eleitos aqueles que provavam por exame
(Dokimasia) a posse de saber técnico e prudência ética para os cargos. Se no
Brasil de hoje tal princípio vigorasse, muitos que se imaginam de elite
estariam sem emprego. Outra lei essencial era a da Hybris (orgulho desmedido,
arrogância). Um indivíduo mais bem aquinhoado pela sorte que humilhasse outro
com menores recursos recebia penalidades físicas ou pecuniárias. Se aqui
tivéssemos algo similar, os cofres públicos estariam abarrotados. A falta de
respeito impera em nosso meio. Como o ser humano é mimético, costumes
grosseiros se espalharam pelo corpo social. Não apenas a elite, mas também
vastas camadas populares reiteram, sem nenhum recato, formas brutais de
comportamento.
Por último, em Atenas uma forma de
ser era fundamental: o indivíduo ganhava valor se manifestasse um sentimento de
vergonha por atitudes incorretas. Faltar com o respeito aos idosos, às mulheres
e crianças, aos mais fracos, era visto como uma indignidade sem tamanho. Quem
não se ruborizasse por ter insultado algum concidadão deixava de ser um animal
político e se transformava simplesmente em um animal. O termo Aidós
(“vergonha”, “respeito”, “reverência”) servia para discernir quem era honesto e
quem não merecia acatamento social e político. Em suma: entre as qualidades
atenienses que fizeram a glória da polis democrática, talvez a que mais faça
falta ao Brasil seja a vergonha. Pensadores e políticos realistas, os atenienses
democráticos sabiam que é impossível manter um coletivo unido se não houver
equilíbrio entre honra e pudor.
Antes de encerrar, ressalte-se ainda
outra lei ateniense, a que dizia ser proibido mentir ao povo. No livro
Deception and Democracy in Classical Athens (Mentira e Democracia na Atenas
Clássica), o historiador inglês Jon Hesk observa que, em Atenas, a honra
política estava interligada a um permanente respeito à verdade. Aristófanes e
Platão caçoaram em muitas ocasiões dos demagogos que, levados pela sofística,
prometiam mundos e fundos nos debates eleitorais. A falta de verdade, o uso da
mentira deslavada, o entusiasmo pelos favores, o desprezo pelo populacho, tudo
isso faz do Brasil um arremedo trágico e ridículo da vida democrática.
A honra traz a fé pública, condição
da efetiva estabilidade econômica e política. A lógica de tal aporia é tirada
por Santo Agostinho: sem a justiça e a vergonha, os Estados não passam de
grandes quadrilhas. E as quadrilhas formam pequenos Estados. O Brasil que decida:
seguirá a honra e a vergonha ou permanecerá na lama, reclamando da corrupção
alheia? A imagem que muitos brasileiros fazem de si mesmos é a de espertalhões
que podem enganar os incautos. O “jeitinho” presente nos fura-filas, nos
usurpadores de vaga no estacionamento e nos que mentem em público e no privado
reitera uma sociedade cuja ética é tortuosa e sempre beira o desastre. Não é
possível ter bons governos com uma cidadania que ignora seus deveres. E assim
caminha este país, de esperteza a esperteza, rumo ao desalento ressentido de
todos contra todos. “O Brasil é assim mesmo”...
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