Moacir Pereira Alencar Júnior. (BLOG)
“A indiscreta falta de charme da Universidade” – por Roberto Romano
Após
ler na íntegra o artigo de Roberto Romano – professor de ética e
filosofia da UNICAMP – publicado em 1987, no livro LUX IN TENEBRIS (Luz
nas Trevas – livro sobre meditações sobre filosofia e cultura – páginas
87-96), resolvi destacar excertos deste artigo, que na década de 1980
fazia criticas contumazes ao nosso modelo de universidade e o modo de
ação e construção da intelectualidade brasileira. Após a análise do
artigo, encontrei muitas semelhanças com nossa realidade acadêmica –
quase três décadas depois. O modelo adotado em nossas universidades
públicas – na metodologia e na relação discente-docente está cada vez
mais sem fisionomia, empobrecido, pormenorizado e vulgarizado.
Encontramos
um culto pelo panfletário, um louvar ao desconhecimento, onde a
verdadeira construção de um debate com sabedoria, seriedade e objetivos
claros se tornam cada vez mais escassos, sendo por muitos evitado, por
interesses imediatistas, ou pelas perspectivas mais obscuras possíveis.
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[…] Nos recintos acadêmicos brasileiros,
sempre que alguém pronuncia a palavra santa, “transformação”, os
ouvintes são tomados de um pânico religioso. A ordem – transformar –
deixa de lado, entretanto, pela angústia de vencer o tempo, o “formar”
que lhe é essencial. A forma torna-se questão menor desde que alguns
conteúdos sejam veiculados, ele pouco importa. Na universidade vivida e
pensada assim, não se faz filosofia. Tal nome disfarça uma técnica, ou
várias, de manipulação da fala e consciência alheias.
A fragmentação de forma e conteúdo,
solidária com a divisão do trabalho espiritual resulta, sempre, na
“falta de cultura dos especialistas” para usar o Tom de Nietzsche.
Mentes afeitas a operações repetitivas, os especialistas tornam-se
insensíveis – são anaístetos, como diriam os gregos – e não percebem as
delicadas e multicoloridas teias da vida.
[…] Rapidez, fragmentos, divisão,
incultura, grosseria: falta de sensibilidade para o belo e para o
verdadeiro, tais são as cicatrizes profundas, na face da universidade
“transformada” pelo Estado, pelo populismo, pela mercantilização da alma
brasileira. […] Colocamos como padrão do conhecimento sua “utilidade”,
militantes progressistas e mantenedores do status quo
unem esforços. Triste coincidência dos opostos. […] O conteúdo, separado
da forma, é, justamente, o correlato de uma sociedade esfacelada, feia,
não verdadeira.
[…] O populismo romântico erige,
justamente, esse defeito sem ideal, norma de gosto e vida. Ao invés de
lutar para que as formas de pensamento, ação, modos sociais, artes,
ciências se refinem, pelo trabalho disciplinado do espírito, as hordas
dos parasitas intelectuais, que vivem do “popular”, tudo fazem para
banir, na universidade, e se possível, do social, as formas culturais
que são patrimônio humano. Desculpa: trata-se de purificar o saber das
influências deletérias burguesas.
Numa universidade paulista, um desses
doutrinários do “saber popular” irritou-se profundamente, quando colegas
referiam-se a Proust, Balzac, e outros escritores, numa discussão
sobre o ensino de … literatura. “O povo não precisa de espírito, nem de
Balzac, nem Proust. Precisa é de feijão!”. Foi delirantemente aplaudido
por meio auditório de imbecis, responsáveis pela formação de jovens
estudantes. Foi explicado ao demagogo, com muita paciência, que é
exatamente isto o feito hoje com o proletariado, cujo movimento máximo
permitido, em termos somáticos, é o de conduzir mão para a boca. Nada
mais. E que sua fala “revolucionária” só piorava a dominação burguesa
habitual. Alguém lembrou Sartre: não foi exatamente o número de sacos de
batata introduzidos na França, antes de 1789, que decidiu a revolução
francesa…
A vida encerrada nos limites da
militância é rápida, descompromissada com o belo, o verdadeiro.
Justamente por isto, ajuda a impedir qualquer transformação. Muitos
progressistas imaginam até que modernizar e revolucionar uma sociedade
tem o mesmo significado. Ora, existem instituições bastante modernas,
como o Estado e a Igreja, mas demasiado conservadoras. […] A reflexão
sobre a forma pode esclarecer o quid pro quo semelhantes a este – entre progressismo e modernidade – cujos resultados foram danosos, sobretudo para os dominados.
O lugar comum mais expandido, na
Universidade de hoje, é a ideia de uma “consciência crítica”.Tudo é
crítico, evidentemente. O aluno do primeiro ano precisa demonstrar a
posse de tal qualidade, ou está perdido. A crítica se exerceria antes do
conhecimento basilar do campo discutido. Kant levou décadas e décadas
estudando a físico-matemática de Newton, a filosofia de Hume, refutando
em silêncio Leibniz ou Wolff. Só depois disso escreveu a Crítica da Razão Pura. Marx passou tempo semelhante no Museu Britânico, estudando Ricardo, Adam Smith, Hegel. Aí redigiu a Crítica da Economia Política. A
epistemologia engraçada, assumida pelos estultos mestres populistas,
por medo ou conivência face aos alunos, diz que a verdade não se
encontra nos livros ou laboratórios, mas na vida. Dessa mentira piedosa
os estudantes só se darão conta, após a queda na existência efetiva da
empresa, das igrejas, dos partidos. Ali, quem não sabe é conduzido.
Recebe ordens, aguilhões como diz Canetti.
[…] A filosofia não se limita a vivência.
[…] Com tantas cabeças “críticas” militantes, é estranho, no mínimo,
que tudo continue estável nas ligações curriculares entre universidades e
instituições centrais da República. Poucos se interrogam sobre a
relação existente entre diploma, competência, requisitos disciplinares.
Desde o princípio, parcas são as interrogações sobre as próprias
“especilidades”. […] A imaginação se estiola nesta subcultura
universitária e militante, perfeitamente hospedada pelas malhas da grade
curricular. Ambas barbárie populista e rede dos cursos burocraticamente
determinados, colaboram para o assassinato das almas universitárias,
pouquíssimas, que ainda insistem em desabrochar para o diálogo
internacional do espírito. Não surpreendente, pois, que as monografias
terminais dos cursos sejam provincianas e calamitosas. Nelas amontoam-se
lugares comuns sem a mínima invenção e inteligência. Triste ladainha do
Mesmo.
Sem graça, verdade ou beleza, não
espanta, também, que os cursos de graduação e pós-graduação sejam cada
vez mais pobres, enfadonhos. Os populistas acadêmicos, hoje, são
impotentes para perceber até o que fazem da universidade. Como dela
desacreditam, possuem extrema flexibilidade, prestando-se prazerosamente
ao serviço de caluniá-la. Os mesmos que um dia a denunciam como “inútil
porque burguesa”, no momento seguinte aceitam assumir compromissos com
autoridades – laicas ou religiosas – cujo único alvo é domar seu ímpeto.
Aí, os parasitas do populismo mostram sua face burocrática: sentam-se
nas pretensiosas comissões de “alto-nível” e passam a tonitroar medidas
punitivas, dirigindo-as aos colegas mais livres e cultos, ou menos
espertos. Tais carreiras, dos servos espirituais, são rápidas: mestres
na adulação dos poderosos, e na auto-propaganda indulgente face á massa,
utilizam tal técnica infalível, poupando, assim, o tempo. Desse modo,
irritam-se contra seus pares que se atrasam, detendo-se em tolices
superadas, como a verdade, a ética profissional, o orgulho, o direito de
errar no vagaroso processo de pesquisa.
[…] Para isto, torna-se preciso colocar
nas mãos e olhos dos estudantes, não mais compêndios só utilizáveis
para o enrijecimento de sua alma, mas textos de filósofos que ensinem o
valor da vida e da beleza, estas coisas tão inúteis para os poderosos de
sempre. (caminhando na busca da síntese das sensações).
[…] Sabemos agora porque a universidade é
tingida de preto e branco, pelo maniqueísmo, ou cobre-se com o pó
mortal das Quartas-feiras especulativas. Dela foram banidos os matizes, a
suave coloração das vogais, a música da Gaia Scienza.
Em seus recintos, predomina a pressa no alinhamento. Ali, os ouvidos
são violentados pelo passo de ganso – movendo-se pelo ritmo rápido e
surdo das consoantes – e temem o grito de guerra contra a vida. Nas
disciplinas, ensina-se o pavor pela beleza, resultando o ódio pelo
raciocínio elegante. Tudo isto sufoca o pesar e torna quase impossível o
conhecimento. Impera, soberana, a metafísica dos “pobres”, presa ao
empírico mascarado de “concreto”; o “útil”, o “comunitário”, o vulgar.
No mais profundo esquecimento do ser, define-se a miséria máxima da ação
e da palavra. […] Restam apenas os corvos acadêmicos, com seu coro
“crítico”: “uni-verso, uni-versitas”. Filosofia? Never More…
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