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Militares e empresários minaram Justiça no Golpe, demonstra livro
Historiador analisa CLT e contesta versão de sua origem fascista
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período entre 1963 e o Golpe de 1964, a Justiça do Trabalho vinha
tomando uma série de decisões favoráveis aos trabalhadores e sindicatos,
que tinham aprendido a “jogar o jogo” da legislação e da justiça
trabalhistas, usando a seu favor as regras do “sistema CLT”. É o que diz
o historiador e professor Fernando Teixeira da Silva, do Departamento
de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da
Unicamp. Silva acaba de lançar o livro “Trabalhadores no Tribunal:
Conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no Contexto do Golpe de
1964” (Editora Alameda/Fapesp).
O autor analisou as decisões tomadas pela Justiça do Trabalho
paulista no que chama de “grande ano de 1963” – do início daquele ano
até a deflagração do golpe, no fim de março de 1964, e encontrou um
padrão de crescente atendimento às demandas dos trabalhadores pelos
tribunais especializados, em especial o Tribunal Regional do Trabalho da
2ª Região (São Paulo).
“O que ficou muito evidente é que a Justiça vai se posicionando cada
vez mais favoravelmente às demandas dos trabalhadores”, disse Silva.
“Isso fica ainda mais claro a partir do segundo semestre de 63, quando
os trabalhadores passam a ter uma movimentação política extraordinária,
não apenas em relação a suas demandas específicas, mas também em relação
à politica nacional como um todo, e essa pauta dos movimentos sociais
passa a interferir diretamente no comportamento dos magistrados”.
A
partir da análise de mais de cerca de 500 processos, o autor afirma que
“a Justiça teve um comportamento bastante favorável, no sentido de um
maior equilíbrio da distribuição de renda. Se não era tão impactante,
foi o suficiente para deixar empresários e fazendeiros extremamente
contrariados em relação à Justiça do Trabalho”. Tanto que, depois do
Golpe de 64, aponta Silva, uma das primeiras medidas do governo militar
foi limitar drasticamente o chamado poder normativo da Justiça do
Trabalho – sua prerrogativa de definir reajustes salariais e novas
condições de trabalho.
“Porque o governo militar sabia, assim como os empresários, que a
Justiça vinha atualizando os salários de acordo com a inflação, em
alguns casos até um pouco acima da inflação. Então, a resposta foi
imediata, tentando controlar esse poder da Justiça de definir qual
deveria ser o aumento salarial das categorias nos momentos de dissídios
coletivos. Essa é uma das implicações da pesquisa”, disse.
Rurais
Outro resultado da pesquisa, afirmou Silva, foi perceber como a
Justiça e os trabalhadores urbanos “abriram a oportunidade
extraordinária de participação dos trabalhadores rurais no tribunal”, ao
menos do caso do Estado de São Paulo. “Essa movimentação dentro dos
tribunais teve impacto nas relações de trabalho, nas fazendas, sobretudo
no final de um processo muito longo de definhamento do colonato, que
até então definia as relações de trabalho no campo”.
“Esse é um fenômeno muito interessante, para o qual a pesquisa passou
a dar atenção em tempos recentes: a Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT) dava algumas possibilidades de recurso, de acesso a direitos, para
os trabalhadores rurais. Como salário mínimo, carteira profissional,
direito a férias. Esses trabalhadores começaram a entrar na Justiça, a
partir dos anos 50, para reivindicar esses poucos direitos que a CLT
cobria”, declarou.
No caso específico de São Paulo, a pesquisa de Silva viu como os
trabalhadores dos canaviais conseguiram, caso a fazenda tivesse uma
usina e fizesse a transformação da cana em açúcar e álcool, passar a ser
considerados industriários. “Foram basicamente os sindicatos dos
trabalhadores da alimentação que ingressaram na Justiça, ampliando esses
direitos. E começaram a ganhar, inclusive com contratos que reconheciam
o direito desses trabalhadores, os mesmos direitos que havia na CLT”.
Aos poucos, aponta o pesquisador, a Justiça do Trabalho foi ampliando
a sua jurisdição em relação às questões do campo. Um dos resultados foi
o Estatuto do Trabalhador Rural em 1963, adotado no governo João
Goulart. “Em grande parte, isso é consequência do avanço da
sindicalização no campo, das lutas no campo, mas também dessa luta
miúda, feita nos tribunais, no dia a dia, através de trabalhadores, seus
advogados e seus sindicatos”.
Pelega ou fascista?
O livro aborda, e busca refutar, duas críticas comumente feitas à
estrutura brasileira de legislação trabalhista e Justiça do Trabalho –
pelos liberais, de que teria uma inspiração fascista e paternalista;
pela esquerda, de que seria uma forma de “domesticar” as reivindicações
dos trabalhadores.
“É preciso entender a Justiça como uma série de contradições”, disse
Silva. “Ela não é, necessariamente, pró-trabalhadores ou pró-patrões, a
princípio. Se a gente pensar que a Justiça, de modo geral, é um campo de
conflitos, vai depender muito de uma série de outras variáveis – a
constituição dos tribunais, a formação desses magistrados, o grau de
mobilização dos empresários, dos trabalhadores, dos sindicatos, quer
dizer, a Justiça em si não é uma coisa ou outra, a priori. Vai depender
de uma serie de outros fatores, muitos deles conjunturais”.
No período específico estudado, “a ação da Justiça foi mais
propositiva em relação aos direitos dos trabalhadores do que quando eles
entravam em acordo direto com os empresários”, afirma o pesquisador. “É
muito evidente que a Justiça estava favorecendo os trabalhadores muito
mais do que as negociações diretas com os patrões”.
Naquele momento histórico, “os juízes começaram a manifestar, nos
seus votos, uma sensibilidade em relação aos argumentos levantados pelos
trabalhadores, no sentido de uma maior distribuição de renda”, aponta.
“Inicialmente, no primeiro semestre de 1963, eles procuram agir de
acordo com o que se esperava, por parte do governo e dos empresários:
respeitar o Plano Trienal do governo, elaborado pelo economista Celso
Furtado, em que trabalhadores e patrões deveriam apertar os cintos,
controlar aumentos de salários”, descreve. “No entanto, a Justiça
percebeu que o controle da inflação estava praticamente fora das
possibilidades do governo: no segundo semestre já era muito claro que o
governo não tinha esse controle. Aí, cada vez mais, a Justiça passa a
jogar favoravelmente aos aumentos demandados pelo movimento operário”.
Além disso, os trabalhadores passaram a explorar brechas na
legislação, incluindo a lei de greve, para pressionar a favor de suas
reivindicações. “Eles utilizaram essas brechas para, justamente,
incentivar mais greves e um movimento operário cada vez mais organizado.
Então, é preciso entender como é que os juízes acabavam sendo, de
alguma forma, pressionados diretamente pelos trabalhadores e como
acabaram reagiam a essas pressões”.
A ideia da inspiração exclusivamente fascista do aparato trabalhista
brasileiro também não se sustenta, disse ele. “A partir de uma
comparação muito sistemática entre a Justiça do Trabalho brasileira e a Magistratura del Lavoro
do fascismo italiano, pude mostrar que, na prática, são duas justiças
muito diferentes do ponto de vista de questões como representação
paritária, em relação à conciliação de classes, ao próprio poder
normativo, enfim, a uma série de questões em que se comportavam de
maneira muito diferenciada e tinham uma estrutura também muito
distinta”.
A pesquisa de Silva mostrou que o desenho da Justiça do Trabalho
brasileira se apoia em diversas fontes internacionais, incluindo
experiências da Austrália, da República de Weimar e, mesmo, do New Deal dos Estados Unidos.
“Então, não podemos atribuir uma identidade única a essa Justiça a
partir de um ‘pecado original’, como se tivesse comido a maçã fascista,
mordido a mação de Mussolini, definindo tudo isso como um modelo
fascista, autoritário, populista, que deve ser destruído”, disse o
autor. “A CLT, a Justiça do Trabalho, o direito social, de maneira mais
geral, já é um patrimônio dos trabalhadores. Não é algo que foi
simplesmente montado de cima para baixo para manipular, para controlar.
São instrumentos também mobilizados e apropriados pelos trabalhadores”.
Legislado ou negociado
“Isso fez com que esse edifício todo que se ergueu no Brasil, que é o
modelo legislado, se colocasse muitas vezes em defesa dos
trabalhadores, ao contrário do que poderia ter sido em um modelo
negociado, de simples relação direta com os patrões sem o anteparo da
Justiça, sem o anteparo da CLT”, afirma Silva. “Se formos pensar em
termos contrafactuais, uma não-existência da CLT, da Justiça do
Trabalho, teria sido muito mais prejudicial aos trabalhadores. Quanto a
isso, não tenho dúvida”.
Nesse contexto, o pesquisador acredita que a inversão da estrutura
tradicional de resolução de conflitos trabalhistas no Brasil – onde o
legislado se sobrepõe ao negociado – representa uma perda para os
trabalhadores.
“Esse arcabouço legal continua a ser importante. O que acontece hoje é
que você tem uma profunda recessão, um ataque extraordinário aos
direitos dos trabalhadores, mas também ao Direito do Trabalho, a noções
protetivas desses direitos”, disse. “Este é o momento em que mais temos a
perder. Durante toda a história do Direito do Trabalho, talvez
estejamos vivendo o período mais difícil, mais frágil”.
“Não diria que não é preciso haver mudanças legais, mudanças nessas
estruturas, nessas tradições”, ressalva. “Mas cabe, sobretudo, ao
movimento operário, aos trabalhadores, ao movimento sindical, se
manifestar a respeito. Neste momento, eliminar toda a tradição de
direitos que foi construída é um risco muito grande não só para os
trabalhadores, mas para a sociedade”.
SERVIÇO
Título: Trabalhadores no Tribunal: Conflitos e Justiça do Trabalho em São Paulo no Contexto do Golpe de 1964
Autor: Fernando Teixeira da Silva
Páginas: 307
Editoras:Alameda/Fapesp
Preço: R$ 54,00
Autor: Fernando Teixeira da Silva
Páginas: 307
Editoras:Alameda/Fapesp
Preço: R$ 54,00
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