Os impostos e as revoluções
Por trás das grandes transformações, sempre esteve a questão tributária
Roberto Romano
O CONTRIBUINTE Esta ilustração anônima representa o Terceiro Estado - o povo, na época da Revolução Francesa - carregando os nobres e o clero. Ele paga, mas não sabe para onde vai o dinheiro |
Quando analisa os impostos, em Economia e Sociedade, o
sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) conta uma anedota que revela o
juízo real dos contribuintes sobre o Estado. Em Nápoles, Weber pergunta
ao dono de uma fábrica algo sobre a eficácia da Camorra nos negócios.
"Senhor, a Camorra me tira X liras por mês, mas me garante a segurança. O
Estado me leva 10X e não garante nada". O bom napolitano refaz a
doutrina dos mais santos escritores, entre eles São Tomás de Aquino e
Santo Agostinho.
Não precisamos de muito latim para entender o que afirma Padre Vieira
no "Sermão do Bom Ladrão", de 1655: "Diz Santo Tomás que se os
príncipes tiram dos súditos o que, segundo a Justiça, lhes é devido para
conservação do bem comum, ainda que o executem com violência, não é
rapina ou roubo. Porém, se os príncipes tomarem por violência o que se
lhes não deve, é rapina e latrocínio. Santo Agostinho fala que os reinos
são latrocínios, ou ladroeiras grandes, e os latrocínios, ou
ladroeiras, são reinos pequenos".
O filósofo holandês Erasmo de Rotterdam (1466-1536) se levantou ao
perceber que os governantes modernos aumentavam sua fome de impostos. As
taxas servem para o bem comum? Erasmo duvidava: "Quero saber qual o
cargo, a função ou governo que não sejam venais. A odiosa política
tributária, que se torna ainda mais odiosa por causa dos funcionários
orgulhosos, gera fortes ressentimentos contra os governantes; mas, aos
seus olhos, nenhum expediente parece indigno, se produz o dinheiro que
gera a fome dos pobres e alimenta o luxo dos nobres, ou melhor, dos
ladrões". Até hoje, nos Estados Unidos, terra puritana, cartazes
advertem: "Não roube, o governo odeia competição!".
Impostos são uma necessidade ordenada pela Justiça ou uma subtração
indevida dos recursos privados? A pergunta segue a história política
desde o rei francês Felipe, o Belo (1268-1314). Para garantir o Estado,
ele assumiu pesados compromissos guerreiros e diplomáticos. Como o
recurso fácil de desvalorizar a moeda não dá certo, ele arrancava verbas
- sempre ditas, por ele, contribuições provisórias - dos contribuintes.
Foram assaltados judeus, conventos, banqueiros. Na hora de o papa
entregar seus cofres, explodiu o conflito entre Igreja e Estado. O papa
Bonifácio VIII, na bula Clericis Laicos (1296), proibia a
cobrança de impostos sem licença papal. Felipe vetou então a saída de
recursos franceses para o Vaticano. No Jubileu de 1300, muita moeda
fluiu para Roma, o que esvaziou os cofres reais. As tentativas do rei
para salvar as finanças terminaram com sua excomunhão.
A revolução inglesa do século XVII surgiu, entre outras coisas,
devido aos tributos. Mandava a Carta Magna que os reis deveriam
respeitar, quando desejassem aumentar a carga tributária, os prazos dos
súditos. Mas o rei Henrique VIII e suas filhas - Mary Tudor e Elizabeth
-, que lhe sucederam, precisavam arrancar dinheiro para manter o Estado.
Não sendo obedecidos pelos parlamentos, os três os dissolviam e
arrumavam disfarces para conseguir impostos. Lutar contra os impostos
requer mudar o Estado. Foi o que precipitou as revoluções democráticas
de Inglaterra (século XVII), Estados Unidos e França (século XVIII). As
mudanças revolucionárias diminuem o segredo estatal e obrigam os
governos à transparência. No sistema absolutista, o soberano não devia
satisfações. James I disse, em 1616: "Os reis são justamente chamados
deuses. Deus tem poder de fazer ou desfazer ao seu arbítrio, (...) e a
ninguém prestar contas. O mesmo poder possuem os reis, que só devem
prestar contas a Deus".
O rei Carlos I, filho de James, também abusava dos impostos. Até
restaurou alguns em desuso. As decisões foram condenadas pelos
democratas no Manifesto dos Niveladores, redigido pelo parlamentar John
Lilburne: "Não está em seu poder arrancar taxas sobre nenhum tipo de
alimento, ou demais bens, produtos primários, após quatro meses depois
do início do próximo parlamento, pois se trata de um peso opressivo
contra o comércio, e caro na receita. Os dinheiros gastos ali aumentam
em muito as taxas públicas; como todo dinheiro a ser coletado vem do
povo, modos pesados de taxação não podem ressurgir, nem se deve arrancar
dinheiro por outros meios (....), a não ser pela média de igual peso
para toda pessoa e situação no país".
Apesar de ter superado o absolutismo, era com ele que a Inglaterra
tratava seus colonos nos Estados Unidos. O parlamento inglês criava
impostos, a ser pagos pelos americanos, para sustentar a guerra contra a
França. Como os americanos boicotaram as mercadorias taxadas, os
ingleses criaram impostos sobre os selos e o chá. A tese que gerou o
novo Estado americano, expressa na Constituição, retomava o princípio
democrático do século XVII inglês: o Congresso define e arrecada
impostos, mas eles "devem ser uniformes em todos os Estados Unidos". O
mundo liberal ordenava que os impostos obedecessem à igualdade e não
excedessem os recursos dos contribuintes.
Outro exemplo de imposição de tributos no Absolutismo: Luís XIV, rei
da França, desejava impostos. O Terceiro Estado - o povo - pedia, em
troca, a transparência do cofre estatal. "As finanças são o nervo do
Estado. Como o sistema nervoso fica escondido sob a pele, convém manter
ao abrigo dos olhos as fraquezas ou a força das finanças", dizia o
clero.
O Iluminismo surgiu contra essa atitude. Pregava a transparência nas
contas estatais e impostos que não atrapalhassem a produção. "A glória
do soberano é pedir apenas subsídios justos, absolutamente necessários; a
felicidade dos governados é só pagar tais impostos", dizia Denis
Diderot na Enciclopédia. "Se o direito do príncipe na percepção dos
impostos fundamenta-se nas carências do Estado, ele só deve exigir o
tributo conforme tais carências (...). Os impostos no Estado são como as
velas de um navio: (servem) para levá-lo ao porto, não para sobrecarregá-lo, detê-lo no oceano e submergir."
Esses passos da Enciclopédia, além de livros ingleses e
americanos comentados em jornais, foram lidos no Brasil por insurgentes
em Minas Gerais (1789) e nas outras tentativas de aqui fazer um país
autônomo, liberal e moderno. Portugal, absolutista, ignorava o
Iluminismo e combatia as revoluções inglesa e americana. Como não
praticava a responsabilização pública dos governantes, o Estado lusitano
era ainda mais irresponsável diante do Brasil, tratando-se de impostos.
Em 1785, um Fisco arbitrário proibia aqui toda atividade industrial e
aumentava a taxação de produtos portugueses. Com as jazidas de ouro
quase secas, o governo da Corte imaginou a derrama, uma taxa compulsória
a ser paga pela população para completar a cota imposta de 100 arrobas
do metal. Dom João VI chegou a nossa terra para fugir da Revolução
Francesa e erradicar sinais das revoluções inglesa e americana. O Estado
que instaurou é de ordem absolutista, da criação do Banco do Brasil
para financiar o aparelho do governo ao centralismo que arrasta os
impostos para o Rio de Janeiro. Eram ignorados pressupostos como o de
igual repartição dos custos pelo país.
Em termos tributários, o Brasil ainda é regido de maneira
absolutista. Nossos governantes e legisladores dão as costas aos
princípios democráticos. O destino do dinheiro dos impostos é matéria
sigilosa para a cidadania. A licença para criar impostos não tem
limites. Por outro lado, a decisão do Supremo Tribunal Federal que nega a
quebra do sigilo dos cartões governamentais reforça a falta de
transparência no uso da verba pública. Quem paga o Estado só tem notícia
do dinheiro público nos escândalos, nunca punidos com rigor. Em nosso
território, os impostos são destinados em favor do poder político. A
economia e os setores que dependem de investimento governamental ficam
na perene indecisão sobre o amanhã. O contribuinte recebe deboche dos
governantes e legisladores, absolvidos pelo foro privilegiado. Aqui, só
os donos do Estado gozam de reais prerrogativas políticas. E, não por
acaso, a taxa de corrupção de nossos políticos é das mais elevadas do
planeta. Pagamos impostos para a segurança e bem-estar da sociedade?
Voltemos ao bom napolitano de Max Weber: quanta sabedoria!
Roberto Romano é filósofo e professor de Ética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) |
Foto: AKG/Latin Stock |
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.