Bolivarianismo?
Dar a Chávez e Maduro o título de bolivarianos é falsificação, favor não insistir nessa piada
Roberto Romano*
30 Abril 2017 | 03h00
O elogio da ignorância, no Brasil, resulta de uma síntese
efetuada por intelectuais, políticos, clérigos. Tal operação tem nome
comum: populismo. Não se trata apenas de ideologia, existem populistas
de esquerda, de direita, católicos, protestantes, muçulmanos. A
demagogia, doença antiga, já na Grécia democrática recebeu seu nome de
batismo. Após a queda do Império Romano, o apelo ao povo como árbitro
supremo de todo poder e saber definiu movimentos de massa, fracassados
ou bem-sucedidos. O romântico Michelet evoca a chusma popular como
figura Christi, presença do Messias.
O populismo recusa a pesquisa para a descoberta do verdadeiro. A
sua demagogia reúne em poucos chavões um arsenal tosco de propaganda. Os
totalitarismos do século 20 levaram tal política ao absurdo. Goebbels,
de um lado, os “jornalistas” do Pravda, de outro, abusaram do populismo
em doses diárias, sorvidas pela multidão em padrões pantagruélicos.
Afinal, “engolimos avidamente a mentira que nos lisonjeia, bebemos gota a
gota a verdade que nos amargura” (Diderot).
No Brasil, as ditaduras do século 20 moveram o terror contra a
busca científica. Vem desses tempos o vezo de desqualificar quem se
levanta contra as “verdades” estabelecidas. O uso das aspas estigmatiza
indivíduos e grupos (“ditos” intelectuais) que pedem reflexão e ameaçam
certezas. O povo, dirigido pelo Estado e seu partido, tem sempre razão.
Duvidar é ato de lesa-majestade. Os donos das massas sentem-se à vontade
para destruir saberes que abalam crenças. Autores e livros são
aniquilados, nos autos de fé nazistas ou stalinistas.
No Brasil, juízes populistas afirmam, sem pestanejar, que a
prática da Federação vem do Estado norte-americano. Passam a borracha
sobre a experiência romana, da qual surgiu o nome, foedus, que nutre
Montesquieu, anterior à Constituição daquele país. Basta consultar o
Livro X de O Espírito das Leis. Dou a seguir um só exemplo, muito falado
em nossos dias. Trata-se do slogan que evoca o “bolivarianismo”.
Quando se fala nos governos chavistas e similares, dá-se de
barato que eles são inspirados nas lutas e teses de Simón Bolívar.
Trata-se de estelionato, um a mais, populista. O herói do século 19 é um
erudito. Seu modelo do regime ditatorial sai da história romana, algo
comum entre os teóricos da modernidade, incluindo os que fundaram os
Estados Unidos da América. Bolívar tem como paradigma Quinctius
Cincinnatus, herói da ditadura latina. Aquele dispositivo jurídico
previa seis meses de poder irrestrito para o titular, visando a recompor
a ordem interna ou aumentar a força castrense contra inimigos da
República. Com César, aquele mando temporário se alargou até se
transformar em perene.
Como os liberais de seu tempo, Bolívar admira as instituições
romanas, sobretudo a ditadura, e segue o impulso de Jean-Jacques
Rousseau. De 1799 a 1807 ele frequenta a elite europeia, em especial o
salão de Fanny Dervieu du Villars, onde dialoga com Germaine de Staël e
Benjamin Constant, liberais de quem é leitor atento. Na sua biblioteca
estavam Maquiavel, Montesquieu, Rousseau (seu exemplar de O Contrato
Social pertencera a Napoleão Bonaparte). Aqueles autores consideram
admirável a magistratura ditatorial, pois ela permitira à República
vencer graves crises.
Bolívar se apropria da tese e da prática, segundo os moldes
romanos. Em sua peregrinação até o Fórum, onde pronuncia o Juramento do
Monte Sacro, “ele enxerga nas ditaduras do tipo antigo um modo de
instauração da ordem tendo em vista promover a liberdade” (cf. o
excelente artigo de Marie-Laurie Basilien-Gainche Les pronunciamientos
bolivariens: de la dictature à la république”, in Boutin, Christophe
(Ed.), Le coup d’État, recours à la force ou dernier mot du
politique?).
Bolívar foi nomeado ditador por cinco vezes, nos 17 anos entre a
guerra da independência e sua morte (1830). As causas dessa escolha,
tanto pelo líder quanto pelos comandados, estavam na luta contra os
espanhóis, na divisão constante entre os povos sul-americanos, nas
fraquezas dos Estados nascentes. Bolívar aceita suas ditaduras como
imperativo ético. “Apenas uma necessidade incontornável, unida à vontade
imperiosa do povo, devia me submeter à terrível e perigosa tarefa de
Ditador Supremo”. (Discurso ao Congresso de Angustura, 1819). Ele recebe
aquele poder dos Congressos constitucionais da Venezuela e do Peru em
1813, 1816, 1824. O mito romano empresta ao ditador a legitimidade para
manter ou mesmo instaurar Estados na América. Ele teve a adesão livre da
maioria cidadã, à qual recorreu como garantia de poder soberano.
Apesar de todas as teses hoje equivocadas, o “povo” designado por
Bolívar “é um povo compreendido como Terceiro Estado em confronto com a
nobreza espanhola, um povo que poderia ser olhado como origem das
atuais oligarquias latino-americanas”(Basilien-Gainche). Entre o “povo”
de Bolívar e o de Chávez-Maduro não existe continuidade social ou
histórica. O Libertador usa e nomeia o regime que julga certo para
manter a ordem nova da política: a ditadura. Chávez-Maduro,
“bolivarianos”, silenciam o nome do poder que exercem. Abusam da
retórica, escondem intentos e motivos próprios. Assim, dar-lhes o título
de bolivarianos é falsificação. Bolívar aceitou a ditadura, eles a
empolgam por querer próprio. Bolívar aboliu a escravatura, eles a
restauram sob a capa do partido único. Bolívar define instituições, eles
as usam em proveito próprio. Nos sonhos de Bolívar, a Venezuela, a
Colômbia, o Peru, o Equador seriam terras livres com povos cultivados e
bem nutridos de alma e de corpo. Os seus pretensos seguidores dominam
uma gente sem liberdade, dignidade, comida. Bolívar ouve Maquiavel,
Rousseau, Montesquieu. Maduro escuta passarinhos. Bolivariano? Não
insistam na piada de péssimo alvitre, por favor!
* PROFESSOR DA UNICAMP, É AUTOR DE 'RAZÃO DE ESTADO E OUTROS ESTADOS DA RAZÃO'
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