Romano lutou contra a ditadura militar na década de 1960 ao lado de integrantes da Igreja Católica na mesma época em que Dirceu militava no movimento estudantil, à frente da UEE-SP (União Estadual dos Estudantes de São Paulo). "Não tive trato direto com ele [Dirceu]. Eu fui a uma série de passeatas que ele também participou, ajudei na segurança, mas não militei diretamente com ele", conta.
Para o professor da Unicamp, "do ponto de vista da obediência jurídica, não há o que questionar" sobre a soltura de Dirceu, já que um dos direitos conquistados com fim da ditadura foi a capacidade de o Supremo fornecer a garantia do habeas corpus.
Ele afirmou, no entanto, que o logro da defesa de Dirceu é uma prova da "desigualdade elitista" do Estado que faz com que uma minoria seja atendida "em um prazo razoável" em comparação a milhares de presos provisórios que permanecem encarcerados, sem uma decisão do supremo.
"Essa questão levanta um problema sério na estrutura da política e do Estado brasileiro, que não é democrático na sua essência", afirmou.
Romano afirmou que o juiz Sérgio Moro é "honesto, competente", mas que "pisou na bola" em algumas decisões tomadas no âmbito da operação Lava Jato. Veja os principais trechos da entrevista.
UOL: O senhor concorda com o argumento do STF para soltar Dirceu, de que ele pode responder em liberdade enquanto aguarda um julgamento de segunda instância?
Roberto Romano: Sim. Algo que nós conquistamos a duras penas, depois de duas ditaduras do século 20 --a de Vargas e a que teve início em 1964-- foi garantia do habeas corpus. Uma das garantias que o regime civil trouxe foi a capacidade de o Supremo fornecer essa liberdade, quanto o processo não está acabado. Do ponto de vista da obediência jurídica, não há o que questionar.
O problema não estar aí, ao meu ver. Mesmo que não haja o que criticar do ponto de vista legal, a atividade pública do [Dias] Toffoli e de Gilmar [Mendes] causam estranheza à população.
No caso do Toffoli, que trabalhou na AGU [Advocacia-Geral da União], foi indicado pelo governo petista, no mínimo tem um problema não tão premente, mas importante, de conflitos de interesses.
O senhor Gilmar Mendes tem se notabilizado por frequentar mais a mídia que os artistas da Globo. Tem estado com políticos de todos os partidos, criticando a operação Lava Jato.
Dar liberdade a Dirceu gerou indignação e sensação de impunidade em grupos da sociedade. O senhor concorda que soltar Dirceu passa uma imagem de descrédito em relação ao Judiciário?
Vários analistas têm notado que há bom tempo o Supremo não fala mais como colegiado, mas como indivíduos ou grupos de indivíduos dentro da instituição. Isso que cria incerteza. Para uma decisão grave dessas, não pode esperar unanimidade, mas tem que ter uma doutrina que justifique a medida.
A população brasileira desconfia enormemente do Executivo, do Parlamento. Quando tem a esperança de que a uma instância tenha posição firme de Estado e não dos indivíduos quer o integram, a insegurança jurídica explode.
O Supremo está atomizado e isso cria uma incerteza jurídica que pode prejudicar futuramente a credibilidade do STF, o que seria um desastre total.
A decisão do STF mostra que a Justiça tem "dois pesos e duas medidas" em relação aos demais presos provisórios do país, que correspondem a 34% do total da população carcerária?
Depois do escândalo do mensalão e das suas consequências, depois do Petrolão, lembro o então ministro José Eduardo Cardozo dizer que as prisões brasileiras eram medievais. Mas não é preciso começar a prender políticos para descobrir isso.
Tem umas coisas tremendas dentro do sistema carcerário, como a prisão especial para quem tem diploma. É uma desigualdade elitista, de quem tem não só mais recursos, mas mais poder, de quem tem uma capacidade maior de mobilização política, que consegue ser atendido em um prazo razoável. Essa questão levanta um problema sério na estrutura da política e do Estado brasileiro, que não é democrático na sua essência.
Outra questão é a prerrogativa de foro, nem na Constituição do Império isso existia, de repente, a Constituição tida como cidadã cria duas classes de seres humanos: quem administra o Estado e os cidadãos comuns.
O senhor acredita que essa decisão pode ameaçar os rumos da Lava Jato, que a impunidade pode prevalecer?
Depende do STF e depende da Lava Jato. Diante dessa situação é preciso ter a máxima prudência. Digo prudência na condição de professor de Ética, por ser um elemento essencial da vida ética, que não significa ter medo de fazer algo, mas de saber pesar o que está em jogo.
Minha convicção a partir da apresentação da denúncia [contra Dirceu apresentada ontem] foi que o MPF está fazendo propaganda e forçando decisão do STF, e isso é imprudente.
Está mais do que em tempo daqueles que estão encaminhando a crise do Estado entrarem na boa trilha ética da prudência, pesar atos e palavras de maneira rigorosa antes de fazer qualquer coisa. Se essa decisão [de soltar Dirceu] causa desconforto para os que esperam Justiça, esses procuradores estão se considerando tutores da vida pública e do Estado. Na República não há tutores.
É o mesmo problema que se dá na ordem da Justiça, de serem colocados como salvadores da pátria, como já foram considerados Collor, Jânio Quadros, o próprio Lula no primeiro mandato do seu governo, até os militares que deram o golpe para salvar o Brasil.
Não se vive um regime político democrático com salvadores.
Acha que com a decisão o STF deu um "puxão de orelha" no juiz Sergio Moro pelo fato de ter deixado preso por tanto tempo presos provisórios?
De certo modo, sim. O juiz Sérgio Moro é honesto, competente, sabe o que faz, teve boa parte das suas decisões corroboradas pelas instâncias superiores da Justiça, mas em várias ocasiões ele, digamos assim, pisou na bola, como no episódio das gravações do Lula e da Dilma.
Mas ele é um ser humano, que está trabalhando sob uma pressão monstruosa. Ele pode errar. Errar é elemento fundamental da vida humana.
Mas saber até que ponto essas prisões são sustentáveis é algo que vai ser definido pelo pleno do STF.
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