Sobre golpes e Lava Jato
Você aceitaria a sua sentença, sem julgamento na devida forma?
*Roberto Romano,
O Estado de S.Paulo
18 Junho 2017 | 05h00
18 Junho 2017 | 05h00
No século 17
europeu o golpe de Estado implicava de imediato um conjunto de atos
políticos que transgrediam a lei para salvar o poder. Nas frases de
Gabriel Naudé, autor pouco lido entre nós, tratava-se de “ações ousadas e
extraordinárias que os governantes” eram “obrigados a executar em
assuntos difíceis ou desesperados, contra o direito comum, sem manter
nenhuma ordem ou forma de justiça, pondo em risco o interesse dos
particulares em prol do bem público” (Considerações Políticas sobre o
Golpe de Estado, 1639). Após as banalizações sucessivas do conceito, a
partir do século 18, é bem estranho unir bem público e golpe de Estado.
Conforme favorece um ou outro setor e interesses em guerra, o golpe logo
recebe outros nomes que o dissimulam: revolução, urgências
administrativas e similares. Mas permanece a essência: todo golpe de
Estado subverte o direito comum e arrisca anular o privado.
Resta que os golpes serão demasiadamente destrutivos para a
sociedade política se os seus aplicadores não tiverem um mínimo de
prudência. Tal virtude, segundo Charron, coetâneo de Naudé, é a força
que assume “uma escolha das coisas das quais se deve fugir ou desejar”.
Na busca destrutiva de certa ordem, ou nas tentativas de mantê-la em
lados essenciais, abandonando os acessórios, o golpe não pode cair em
erros crassos, como o de causar a indignação da cidadania por gestos
truculentos e de todos conhecidos. Quem, premido pelas circunstâncias,
comete e dá publicidade aos piores feitos (tortura, exílios, censura
contra a imprensa) efetivou um golpe malsucedido. E terá de responder
por ele, cedo ou tarde. Como diz Hanna Arendt, mesmo o segredo dos
regimes totalitários logo os transforma em “sociedades secretas
estabelecidas publicamente” (O Sistema Totalitário). Para evitar
indiscrições que chegam ao público governos ou candidatos ao mando
devem, nos golpes, introduzir a fraude em doses suportáveis para os
dirigidos. Toda prudência, diz Justo Lipsio, é misturada à fraude.
“Embora o vinho não deixe de ser vinho se unido à água, a prudência não
deixa de ser prudência se nela gotículas de engodo são acrescidas”. A
força bruta não garante golpes de Estado por muito tempo. A mentira, a
propaganda têm seu papel na justificativa das “ações ousadas”.
Na receita para o bem-sucedido golpe de Estado, Naudé enuncia a
conditio sine qua non: “usar a conciliação e a decepção, isto é, o meio
de conseguir amizade e serviço, enganar, decepcionar, ludibriar por
falsas promessas, mentiras, presentes e outras farsas e meios”. Sobre o
ponto, vale a pena consultar o excelente texto de J. P. Cavaillé Naudé,
la prudence extraordinaire du coup d’État, 2006). A prudência habitual
dos políticos, promotores, policiais, ministros deve inverter de modo
dissimulado toda a ordem legal e mesmo cronológica dos ritos na Justiça.
Nas ações comuns dos tribunais, diz Naudé, as formas das leis precedem
os efeitos e as operações punitivas. Nos golpes de Estado, ao contrário,
“vemos cair o raio sem tê-lo ouvido berrar nas nuvens, ante ferit quam
flamma micet (ele fere antes de brilhar), as matinas são rezadas antes
que o sino toque para elas, a execução precede a sentença”.
A última frase acima é reveladora: sabemos que um golpe de
Estado foi desferido quando alguém recebe uma pena antes de o tribunal
comum proferir a sentença, no devido processo legal. Tal fato, já
exposto no primeiro livro publicado no mundo sobre os golpes de Estado,
permanece como símbolo para o reconhecimento efetivo de todo golpe,
qualquer que seja a ideologia, religião, doutrina que o sustente. É por
tal signo que se reconhece o caráter tirânico de Richelieu, arquiteto do
Estado moderno. Sob seu guante os juízes não tinham licença de exercer o
juízo da lei ou da jurisprudência. Bastava que a polícia cardinalícia
colocasse o selo de “inimigo do Estado”em pessoas de qualquer condição
social ou econômica. (Cf. H. Fernandes-Lacôte, Les Procès du Cardinal de
Richelieu, 2010).
Passados os séculos surgiram “processos” trazidos no bojo dos
golpes de Estado com Napoleão Bonaparte e sua polícia (retratados por E.
Auerbach em Na mansão de La Mole, capítulo estratégico de seu livro
Mimesis), com Bismarck, em casos iguais aos de Dreyfus, nos tribunais
nazistas e fascistas, nos processos moscovitas de 1936, nas ditaduras de
Franco e Salazar, na Grécia do coronéis, no Brasil, no Chile, no Peru,
na Argentina, no Paraguai. Não esqueçamos os procedimentos macarthistas,
nos quais os réus eram punidos antes de os processos chegarem aos
magistrados. A lista é infindável. Importa, no entanto, definir, na
sequência de Gabriel Naudé, o sinal da tirania imposta sem prudência nos
golpes: o direito do réu é negado, a sentença vem antes do julgamento.
A Operação Lava Jato, apesar de bons êxitos por ela atingidos,
traz marcas de golpismo em vários procedimentos de procuradores. Eles,
não raro, operam como se o julgamento fosse irrelevante, já que possuem a
certeza, trazida pela boa-fé subjetiva, de que a culpa do suspeito é
certa. Falta, em seus pronunciamentos públicos, a prudência exigida em
toda ação legal. Qualquer desculpa de salus populi, contra a corrupção
ou qualquer outro crime, não dispensa o escrutínio desapaixonado de
provas robustas e insofismáveis pela sua objetividade.
Quando muitos incautos flertam com populismos de todos os
quadrantes, é preciso perguntar ao entusiasta do arbítrio: você
aceitaria sua sentença, sem julgamento na devida forma? Se a resposta
for positiva, ele merece o inferno de uma ditadura, bem ou
mal-intencionada. Mas seus parentes e amigos talvez não queiram
semelhante tormento. A prudência manda seguir a lei tal como ela é
escrita, não como a entendem os que dela estão dispostos a usar como
tática, técnica ou álibi. Em tais casos se manifesta, com toda força
nefasta, o revelado pela frase latina “summum ius, summa iniuria”.
* Professor da Unicamp, é autor de 'Razão de Estado e Outros Estados da Razão'
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