13/06/2017
Revista NORDESTE: A vida na era da pós-verdade
Em 2016, o Oxford Dictionaries, do departamento da Universidade de Oxford, responsável pela elaboração de dicionários, elegeu a “pós-verdade” (“post-truth”) como a palavra do ano. A instituição a definiu como um substantivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.
No Brasil, a pós-verdade pode ser reconhecida quando a grande mídia assume um lado da disputa pelo poder e interpreta os fatos com essa intenção. Um dos exemplos é a Revista Veja, a Globo, o Estadão, a Folha de S. Paulo, todos assumiram a defesa da Lava Jato, do impeachment de Dilma Rousseff (PT), da ascensão de Michel Temer. Todos, com maior ou menor pressão, têm pedido a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Na capa da Veja o ex-presidente já apareceu até vestido de presidiário sem que haja uma prova consistente de seu envolvimento em corrupção. Ainda que se tenha ressalvas a conduta do petista e do seu partido na história recente do país, há que se considerar que há também benefícios. Mas o que está acontecendo na mídia vai além de discordância ideológica ou uma cruzada contra a corrupção. Pelo menos esse não parece ser o interesse real da grande mídia. Nos últimos dias, quando um dos jornalistas da Veja, Reinaldo Azevedo, teve a conversa com Andrea Neves, irmã de Aécio Neves (PSDB), divulgada, a revista resolveu se posicionar sobre os excessos em torno de decisões do Judiciário, Ministério Público e da Polícia Federal. No áudio, nada que interessasse ao Ministério Público ou à Polícia Federal, apenas críticas a própria gestão da Veja e amenidades. Era um recado ao jornalista que vinha criticando Rodrigo Janot, o ministro Edson Fachin e a Lava Jato.
A fogueira das vaidades do Poder
Em seu editorial “Um estado policial”, transcrito a seguir em parte, a revista Veja acusa. “Diz a lei que uma intrceptação telefônica só pode ser feita com autorização judicial, no tempo em que perdurar a autorização judicial, e seu conteúdo só poderá ser preservado se for relevante para a investigação em curso. Tais limites são estabelecidos para que as conversas telefônicas, de qualquer pessoa, inclusive de suspeitos, não fiquem boiando no éter das tramoias de um Estado bandoleiro. No curso da mais ampla investigação sobre corrupção na história do país, a lei tem sido lamentavelmente desrespeitada. Na noite de 23 de fevereiro do ano passado, a ex-primeira-dama Marisa Letícia falava por telefone com seu filho Fábio Luís, o Lulinha. Na conversa, Marisa, que morreu há quatro meses, ironizava, com o uso de um palavrão, as pessoas que haviam participado de um panelaço contra o PT que acabara de acontecer. Na gravação, ela não dizia nada que interessasse à investigação da Polícia Federal. No entanto, a conversa, que deveria ter sido destruída nos termos da lei, foi preservada e divulgada. Em 16 de março de 2016, o país inteiro ouviu um diálogo telefônico entre a então presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Eram 13h32 de uma quarta-feira, e os dois discutiam sobre o envio de um documento para a posse de Lula como ministro da Casa Civil. O conteúdo da conversa era do interesse da investigação, mas a autorização judicial para monitorar o telefonema acabara às 11h12, duas horas antes. Portanto, depois desse horário a gravação era ilegal. Ela foi feita mesmo assim, seu conteúdo foi divulgado e a crise política daqueles dias se aprofundou dramaticamente”.
Deve-se saudar o editorial de Veja, contudo não se pode deixar de frisar que, infelizmente, a publicação chega com umano de atraso, como informou o advogado de Lula, Cristiano Zanin. Fica-se com a impressão que foi preciso estar do lado da pedrada e não mais junto de quem atira, para que a revista se posicionasse de uma maneira mais coerente com a Justiça e a Verdade. Antes de ser ela mesma atacada, a Veja nada fez, defendeu e considerou mais o benefício dos artifícios utilizados pelo estado que agora considera “bandoleiro”, do que o malefício. Entretanto, como disse Zanin no Twitter: "Antes tarde do que nunca. As violações precisaram atingir Reinaldo Azevedo para serem reconhecidas como incompatíveis com o Estado de Direito”.
As mentiras sempre foram utilizadas dentro da Imprensa e entre grupos políticos rivais. Os fatos, como explica Jorge Luis Borges no início deste texto, “são meros pontos de partida para a invenção e o raciocínio”. Assim, dados divulgados pelo IBGE sempre podem ter a divulgação de um lado negativo ou de um positivo, dependerá do viés que o veículo de Imprensa assume. E esse viés dependerá do interesse do grupo econômico que comanda o veículo de Imprensa. Isso é assim para a Imprensa com um pendor á direita, como os citados anteriormente, como para os que pendem para a esquerda, tipo Carta Capital, Diário do Centro do Mundo ou Socialista Morena. A questão é que uns têm mais poder econômico do que outros.
No site “Manchetômetro”, que faz análise das manchetes feitas no Brasil, há uma pesquisa reveladora sobre o recente embate entre o juiz Sérgio Moro e Lula. Os jornais O Globo, Estadão e Folha de S. Paulo deram 13% de manchetes favoráveis a Moro e 79% neutra. Já Lula recebeu 3% de manchetes favoráveis, 15% de neutras e 79% negativas. Em relação as manchetes da crise envolvendo Temer, o site aponta que a grande mídia nacional “é apoiadora ferrenha das reformas neoliberais de Michel Temer, mais do que propriamente de sua figura política”. As matérias das páginas de opinião analisadas pelo site mostram uma espécie de obsessão de editores e colunistas na defesa de uma agenda de reformas consideradas neoliberais. Segundo o site, essa agenda dá o tom em todos os jornais impressos e no Jornal Nacional, este último editado pela Rede Globo de Televisão e ainda o mais assistido da TV aberta. A questão é: qual a melhor direção de realmente? Quem tem mais razão? Direita, esquerda? A visão mais neoliberal, uma mais socialista? O sistema está completamente equivocado, seja o capitalismo, comunismo, nacionalismo? É preciso surgir algo novo? Talvez as respostas não sejam tão simples como se gostaria. Esta matéria não se propõe a encontrar respostas, apenas a propor mentes abertas e olhos atentos na busca da verdade. Afinal, essa questão é antiga... como disse o filósofo e escritor francês Denis Diderot, morto 1784: “Engolimos de um sorvo a mentira que nos adula e bebemos gota a gota a verdade que nos amarga”.
Trump, Brexit, Le Pen, a pós-verdade no mundo
A pós-verdade não está só no Brasil, é uma tendência mundial. Como exemplos da pós-verdade no mundo pode-se olhar para a eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos, para o referendo que decidiu pela saída da Grã-Bretanha da União Europeia, apelidada de “Brexit” e a eleição de Emmanuel Macron contra Marine Le Pen, na França. Essas campanhas fizeram uso indiscriminado de mentiras. Na campanha do Brexit, foi divulgado que a saída do bloco iria liberar até 350 milhões de libras (mais de R$ 1,7 bilhão) por semana para aplicar na saúde pública. O número foi questionado por autoridades do governo e descrito como potencialmente enganador pela Autoridade de Estatísticas britânica , contudo isso não reduziu sua força. Num debate televisivo Trump chegou a dizer que Barack Obama era o real fundador do Estado Islâmico. Explica-se. Numa construção enviesada de raciocínio, ele atribuiu a falta de uma conduta mais afirmativa e incisiva dos EUA no Afeganistão e no Iraque como molas propulsoras do terror. A campanha de Trump ainda divulgou que Hillary Clinton comandava uma rede de pedofilia na pizzaria Comet. Internautas insistiram que o local era sede de uma rede de prostituição infantil, comandada pela ex-candidata à presidência, além de outras figuras do Partido Democrata. O mundo ainda viu, associadas a esse tema, as mentiras nas eleições da França realizada em abril e maior de 2017. A candidata Marine Le Pen teria divulgado notícias falsas contra Emmanuel Macron, que efetivamente ganhou as eleições. Macron abriu processo contra Le Pen acusando a candidata de ter, no mínimo, incentivado “falsos anúncios e mentiras” com suas “tropas na internet”. Entre as informações divulgadas estavam que o candidato teria evadido divisas para as Bahamas, um paraíso fiscal.
Donald Trump afirmou que Hillary Cliton e outros integrantes do partido democrata, comandavam uma rede de prostituição infantil a partir de uma pizzaria
A Rússia tem sido acusada como um dos países a frente na criação e disseminação da pós-verdade. Evidentemente, para manter seus próprios interesses no globo. Democratas denunciaram a intromissão do país nas eleições do ano passado com divulgação de informações falsas. O país também foi acusado de interferência nas eleições da França. O governo russo nega: “Nós não tivemos e não temos nenhuma intenção de interferir nos assuntos internos de outros países ou em seus processos eleitorais”, disse Dmitry Peskov, porta-voz do presidente russo. “Que existe uma histérica campanha anti-Putin em alguns países é um fato óbvio”, completou. Por outro lado, em se tratando da guerra na Síria, o jogo de mentiras parece pender para os EUA. Professores universitários alemães, membros da organização ATTAC Deutschland (Associação pela Tributação das Transações Financeiras para ajuda aos Cidadãos — Alemanha), publicaram uma declaração conjunta, na qual criticaram a interpretação que a maioria das mídias apresenta no que se trata do papel russo e iraniano na resolução do conflito sírio. No texto intitulado "Declaração sobre a guerra na Síria", os professores afirmam que a Rússia e o Irã "primeiro esgotaram todas as possibilidades de uma solução diplomática e pacífica do conflito" e ao ver que não funcionaram, iniciaram ações militares. "Os ataques contra a Rússia por parte dos principais meios de comunicação são absurdos", asseguram.
Uma realidade nada utópica
Para entender a pós-verdade basta se colocar no universo dos livros distópicos – algo como o inverso do que seria utópico, um universo na maioria das vezes totalitário e autoritário. Livros como “1984”, de George Orwell, falam de controle dos direitos individuais e manipulação da informação. “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, sobre um tempo em que a vida é basicamente orientada para o trabalho e a produção. “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, descreve dias onde a pensamento crítico é suprimido e opiniões próprias são consideradas antissociais.
Cena do filme 1984, adaptação do livro de George Orwell, que se passa em um universo distópico onde todas as informações são controladas pelo governo
A pós-verdade fala de um tempo em que a mídia resolveu divulgar fatos a partir de interpretações. Algumas dessas interpretações de moral duvidosa, com a finalidade de beneficiar uma parcela específica da sociedade. Assim é possível ver meias verdades incendiando preconceitos e radicalizando posicionamentos de leitores, telespectadores e ouvintes. Plataformas sociais favorecendo a replicação de boatos e mentiras e grande parte desses boatos sendo compartilhados por conhecidos. O que lhes dá mais credibilidade e confiança, aumentndo a aparência de legitimidade das histórias. Basta lembrar do boato que o filho de Lula seria dono da Friboi, história divulgada a exaustão pelo Facebook, Twitter e Whatsapp. ‘Tanto é assim que mesmo boatos, que apesar de serem infundados e denunciados como falsos, ainda conseguem manter na cabeça da maioria a impressão de há algo de verdadeiro. A desconfiança nas instituições como o Judiciário, Legislativo, Executivo, as Polícias e até em médicos e advogados, ampliam a sensação de teoria da conspiração que a pós-verdade tenta imprimir nos mais apressados, e mesmo nos mais atentos. Como se o mundo estivesse de novo metido numa espécie de fogueira de vaidade como a que aconteceu em 1497 quando foram queimados livros, cosméticos e obras de arte consideradas pecaminosas. A questão é que o erro (ou o pecado) fica cada vez mais difuso e vai se ficando mais inapto para distinguir mentiras de verdades.
Aliado a este universo de neurose conspiratória, está a inteligência artificial utilizada nas redes sociais, construída a partir de algoritmos e cruzamento de dados, e utilizada como mecanismos de buscas na web, ela ajuda a fazer com que seus usuários tendam a receber informações que corroboram seu ponto de vista, formando bolhas que impossibilitam o acesso ao contraditório.
Ataque à confiança e à realidade
A filosofia, a poesia, a psicologia, as ‘ciências’ que cuidam da alma, frisam que é da natureza humana recusar fatos que contrariem a visão que se tem do mundo ou de si mesmo. Já escrevia Fernando Pessoa, travestido de Alberto Caeiro, no poema “O Guardador de Rebanhos”. “O que nós vemos das cousas são as cousas. Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra? Por que é que ver e ouvir seria iludirmo‑nos. Se ver e ouvir são ver e ouvir? O essencial é saber ver. Saber ver sem estar a pensar. Saber ver quando se vê. E nem pensar quando se vê. Nem ver quando se pensa. Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!), Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender”.
Para corroborar com essa visão, a NORDESTE pinçou um trecho do artigo do professor Carlos Castilho, membro do site Observatório da Imprensa. Castilho escreveu discorrendo sobre o tema no Observatório – como o nome já diz, um site vigilante da Imprensa. Castilho diz que na modernidade, os meios de comunicação, principalmente a imprensa, ganharam um papel de protagonista no fenômeno da pós-verdade.
“Afinal, a circulação de mensagens passou a ser o principal mecanismo de produção de novos conhecimentos numa economia digital movida a inovação permanente. A relevância conquistada pelos meios de comunicação os transformou em agentes fundamentais no processo que prioriza uma forma de descrever a realidade. Quando a imprensa norte-americana endossou a tese da existênciade armas de destruição maciça no Iraque de Saddam Hussein, ela deixou de lado a verificação dos fatos e foi decisiva na transformação de uma possibilidade em certeza acima de suspeitas. Teoricamente, a pós-verdade pode ser usada tanto pela esquerda como pela direita no terreno politico, mas como a imprensa joga um papel fundamental no processo, os rumos obviamente serão determinados pela ação de jornais, revistas, meios audiovisuais e pelas redes sociais. A Imprensa, portanto, não é uma observadora, mas uma protagonista do processo de transformação de mentiras ou meias verdades em fatos socialmente aceitos”.
Compartilhamento em entre amigos dá credibilidade à informação
Outra boa conceituação sobre o tema está num artigo do professor Roberto Romano, “Sobre o Segredo e o Silêncio”, publicado pela Revista USP. Professor do departamento de filosofia da Unicamp, Romano escreve que alguns pensadores, como Paul Virillo (filósofo francês autor de vários livros sobre as tecnologias da comunicação), definem a vida contemporânea com o signo da velocidade. Outros a determinam pelo vínculo entre a ordem particular e pública com o espetáculo – tema abordado por outro escritor francês, Guy Debord, no livro “Sociedade do Espetáculo”.
“O fato é que as duas vias se encontram quando refletimos sobre o barulho que nos enlouquece a cada instante. Estradas e ruas insuportáveis ao ouvido, divertimentos que fariam o alarido das bacantes parecer murmúrio, cultos religiosos efetuados aos berros, tanto em igrejas ortodoxas quanto nas reformadas, tom de voz humana mais próximo aos urros das selvas. Não apenas a nossa cultura se pauta pela espacialização: o sentido do tempo, a escuta, se perde a cada átimo numa ciranda infinda. Em tal cacofonia, o sentido lógico das palavras se dissolve com rapidez inédita e percebemos o quanto o discurso, em todos os âmbitos, se banaliza e decai nas formas da propaganda e da histeria. Não existem mais comícios políticos, são poucas as procissões religiosas, mas o ritual satânico da incomunicação anuncia o reinado de máquinas inteligentes e usuários “humanos” a cada hora menos atilados. As mônadas, dizia Leibniz (Gottfried Wilhelm Leibniz, filósofo alemão), não têm portas nem janelas. No mesmo ímpeto em que nos fechamos numa jaula definida como tecnosfera, perdemos a capacidade de falar e de ouvir”.
Agora, para fugir desse espectro da mentira e dos boatos a Imprensa criou o fact-checking, um nome americanizado para checagem de fatos. A tentativa é apostar que o meio pode voltar a se ancorar na veracidade e voltar à construir a credibilidade. Contudo, a questão permanece, como bem frisou Platão. Essa técnica de checagem pode vigiar os boatos, mas quem vigiará os guardas dos boatos? O problema foi proposto por Platão em “A República”. A obra, escrita por Platão, é um diálogo onde Sócrates discorre sobre Justiça, Moralidade e Governo. Na sociedade perfeita descrita por Sócrates, o personagem principal da obra depende de trabalhadores, escravos e comerciantes. Há uma classe guardiã para proteger a cidade. Mas uma pergunta é feita a Sócrates, "Quem guardará os guardiões?" ou, "Quem irá nos proteger dos protetores?" a resposta de Platão para esta pergunta é que os guardiões irão se proteger deles mesmos. A questão é que para isso seria preciso que esses guardiões tivessem um alto grau de ética e moral. Talvez “1984”, “Fahrenheit 451” e “Admirável Mundo Novo” esteja mais presente do que gostaríamos de pensar. Vale ressaltar que na antiguidade tudo isso que hoje chamamos de pós-verdade tinha outro nome: sofismas.
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