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sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

DOUTORADO HONORIS CAUSA DA UNICAMP A DOM PAULO, OUTUBRO DE 2000 SAUDAÇÃO AO NOVO DOUTOR PELO PROFESSOR DR. ROBERTO ROMANO. Documento recuperado graças à preciosa ajuda da Sra. Maria Ângela Borsoi, do Acervo Dom Paulo, por mediação de Eliezer Rizzo de Oliveira. Agradeço a gentileza de ambos, para a lembrança de um dia memorável para a UNICAMP e, muito especialmente, para minha alma. Fica a recordação do grande Dom Paulo, numa cerimônia acadêmica esplêndida.


DOUTORADO HONORIS CAUSA DA UNICAMP A DOM PAULO, OUTUBRO DE 2000
SAUDAÇÃO AO NOVO DOUTOR PELO PROFESSOR DR. ROBERTO ROMANO


Ecce exiit, qui seminat, semirare. Não seria preciso a lembrança de Vieira para dizer o quanto é vital a missão de quem semeia o verbo. Pedras, espinhos, pássaros, toda a natureza e todos os espíritos podem destruir o véu diáfano da palavra prenhe de sabedoria. A infertilidade, não raro, encontra-se fora do semeador, quase sempre localiza-se no ambiente, nos ouvidos que deveriam acolher a mensagem. Mas a palavra, sal da terra, também perde o sabor. Então, a culpa é de quem semeia. A sentença vem na frase cristã sobre os homens que nem a peixe nem a carne se parecem, mas ficam alheios às dores e alegrias dos homens. Quem não salga, é pisado, cedo ou tarde, pelos tempos ou espaços, físicos ou sociais. Conculcatum est! Para que serve um sal insípido? Para nada.
Na Universidade e na Igreja, Paulo, existem semeadores. Eles podem perder os homens, e se perder. Felizes os que não colocam sobre as costas dos mortais cargas que não poderiam nem sonhar em conduzir! Tanto na cultura cristã, quanto no pensamento grego, temos a clara idéia do mundo espiritual como semeadura, com fertilidade ou pobreza de frutos. Plutarco afirma, em algum lugar, que o ensino platônico é como água prenhe de vida caindo sobre as mentes dos ouvintes. As palavras filosóficas, se caem em terreno favorável, florescem e dão frutos. Caso oposto, os signos de sabedoria, em contato com a mente álgida do receptor, se transformam em chuva de gelo, dando morte momentânea ao verbo sapiente. Quando o terreno muda, adubado pela vida ou pela educação, as palavras congeladas podem se dissolver, e liberam o conhecimento nelas escondido. Platão compara os indivíduos a frutos agrícolas. Uns podem alimentar a vida coletiva, e sua existência melhora o padrão humano em geral. Outros, grãos duros, encruam, não mergulham no alimento comum servido à polis. Eles não entram no circuito pleno das duas palavras essenciais ao ideário platônico e à Grécia no seu todo: paideia kai trophes. Quantos grãos encruados existem, Paulo, na Igreja e na Universidade! Quanta semente infértil, quanto gelo!
Sabemos, desde o teu predecessor de mesmo nome, Paulo, o grande significado da metáfora corporal. Esta também nos envia aos vários saberes, gregos, judaicos, latinos. A realidade plena do Corpus mysticum nos ultrapassa. Mas sabemos que, no interior da comunidade, todos pertencemos ao mesmo sangue, à mesma carne, ao mesmo hálito divino. Sabemos, mas poucos têm a virtude suficiente para viver esta comunhão, num banquete partilhado pelos nossos irmãos, sobretudo aos que se recusa até as migalhas.
Paulo: és pastor e doutor. Sabes, por teoria e vida, o quanto o mestre da República, ele novamente, prezava o cão enquanto imagem da sabedoria. Rabelais conta, na boca de um personagem, que segundo Platão o cachorro, e não tanto o homem, é o animal filosófico por excelência, porque não se contenta com a superfície das coisas e busca a substância alimentícia escondida no interior do osso. E o cão, ainda no ensino platônico, deveria ser o ícone do governante justo: bom e manso para os de casa, feroz para com os inimigos. Em todo o teu período pastoral, à frente de uma das mais violentas dioceses do Brasil, tu defendestes os de casa, os pobres, os perseguidos. E fostes um anteparo contra os lobos. Em tempos de FMI, é bom recordar teu exemplo, porque raramente encontramos estas marcas caninas em nossos magistrados civis. Basta recordar a atitude dos nossos ministros, por ocasião do recente plebiscito sobre a dívida externa brasileira, liderado pela CNBB e pela sociedade política nacional. O dirigente, pastor de homens, deve incentivar nos dirigidos o amor dos seus iguais, através da philia. Uma cidade inimiga de si mesma, diz o grego, de modo próximo aos Evangelhos, não subsiste. Nas Leis, encontramos a frase bela e terrível sobre a boa cidade, aquela onde é proibido a caça aos homens, e onde as dores e alegrias dos indivíduos são as dores e alegrias do todo, e vice versa. No grande corpo da polis é preciso que os membros se rejubilem e chorem, em ritmo igual. Se a maioria chora, e a minoria ri, algo errado, doente, encontra-se no corpo.
Mas para que todos percebam o alcance deste viver em comum, é preciso que lhes seja ensinada a sapiência. E aí, recomeça o cântico da educação dos homens através dos tempos. Para que o saber frutifique, alguém precisa sair, e semear... com todos os riscos que isto implique, como as tempestades, os envaidecimentos humanos, as calúnias, os choques, o medo, as esperanças contrariadas. Ninguém semeia tendo certeza da colheita. Cabe a Deus e à sua Providência, definir este ponto. Ou cabe à natureza. Jean Pierre Vernant, um sábio estudioso do conhecimento grego, diz que é bom notar as diferenças da imaginação do mando, no Ocidente e no Oriente.
Enquanto nos apegamos à figura do pastor, dinâmica por excelência, a China idealiza o dirigente como jardineiro que assiste o crescimento das plantas, sem intervir indiscretamente, e sem retirar o movimento dos liderados. Raros homens que exercem o mando unem as virtudes do pastor e as do jardineiro. Teu governo, na diocese de São Paulo, jungiu estes dois valores. Corajoso, como só podem ser os homens de fé e cheios de retidão, teu comando empurrou os tíbios para a defesa da vida humana, sobretudo na época mais negra de nossa história, tempo do poder castrense, apoiado no terror e na tortura, na morte e no desaparecimento dos que não aceitavam o fim da sociedade civil. Mas além da tua liderança, como pastor intrépido, ressaltou diante do mundo e do Brasil a tua paciência de jardineiro das almas.
Ensinastes, semeando nos sermões, nas praças públicas, nos atos contra as atrocidades, nos cárceres, nas favelas, nas mansões dos ricos, nos palácios dos poderosos. Sempre igual e sempre diverso, conforme é imperativo do lavrador evangélico, grego com os gregos, romano com os romanos. Não foram esquecidos em tua vigília pastoral os irmãos reformados, os judeus, os seguidores do Alcorão e os sem crença. Todos são unânimes ao agradecer a presença do teu báculo amigo. Nenhum brasileiro esquecerá tuas palavras impregnadas de cólera divina, na cerimônia fúnebre onde choramos Vladimir Herzog, as frases que recuperaram a dignidade plena da Igreja e do povo brasileiro, no crepúsculo de sinistra ditadura. Este lado é uma das faces mais sublimes de nosso hóspede. Ele merece nosso aplauso também por razões especulativas, acadêmicas.
Quando Paulo Evaristo Arns começou a semear, preparou boas sementes. O humilde franciscano rumou para a Sorbonne, onde aprendeu os mistérios dos livros e do Livro, alimentando-se dos frutos produzidos por Jerônimo e todos os que ajudaram a edificar um jardim espiritual de vastidões infinitas. Paulo mereceu o título de doutor, com um trabalho acadêmico que ilumina aspectos importantes da nossa civilização. Após mergulhar nas fontes do Verbo, ele retornou ao Brasil, onde exerceu a cura d´almas, sempre proclamando a palavra, humana e divina, com prudência e coragem. Praticou os mandamentos do Cristo ao visitar os doentes, atender os presos, lutar pela família e pela dignidade da pessoa humana.
Neste ato, Paulo, não cabem muitas palavras. O silêncio respeitoso diante de tua figura ímpar, vale mais do que longos discursos. Bem vindo entre nós, que tentamos cultivar o Logos, tu que és um dos mais belos exemplos da semeadura do Verbo encarnado. A UNICAMP te homenageia com a sua jóia mais rara, o seu título mais essencial, mais precioso. Ela tem certeza de que tu o mereces e que ela merece a tua presença. Esta alegria é a nossa festa de hoje. Nas antigas cerimônias de entronização papal, após o ofício divino, o carmelengo entregava ao novo pontífice uma bolsa com moedas de ouro, pro missa bene cantata. Não temos espécies materiais, mas este título é áureo no espírito, e nós te entregamos a honra de Doutor Honoris causa  pela UNICAMP, pro vita bene cantata. Deus te proteja e nos salve.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Vergonha: procura-se. Roberto Romano Veja último número de dezembro de 2018.


Vergonha: procura-se.

Roberto Romano
Veja último número de dezembro de 2018. 

Uma frase sempre vem aos lábios dos brasileiros deseducados, truculentos, egoístas e malandros, quando postos em situação difícil de ser resolvida corretamente. O fulano ou fulana fura a fila do banco ostentando ares de superioridade, vê-se repelido pelos que exigem seus direitos e, pode até não falar, mas pensa: “O Brasil é assim mesmo”. Várias sandices estão reunidas aí, nesta lógica distorcida. Com ela, o inefável tolo quer dizer que ele, isso mesmo, o ser muito importante que está acima dos outros, não tem laços com a cultura de seu povo. A plebe não viaja para Nova York, Paris, Londres ou Roma. Logo, ela não percebe o quão sublime é o personagem que reivindica o privilégio de romper normas comezinhas de civilidade, como respeitar o próximo, os lugares na fila e a vaga no estacionamento, entre muitas outras. Se topa com alguém que aponta sua falta de educação, o ser superior apela: “Que gente chata!”. E acabou, tudo se resolveu. Trata-se daquela finura de trato que espelha o gosto estabelecido. Tais indivíduos são finos em demasia, tomam champanhe com linguiça. “O Brasil é assim mesmo”.

Estacionou na vaga dos deficientes físicos? No worry! “Ficarei apenas uns minutinhos e já volto”. Berra nos restaurantes, gargalha a ponto de impedir a refeição alheia? Sem problemas: os demais clientes que se danem, “quero ser feliz com os meus amigos e colegas”. Para na fila dupla quando leva os pimpolhos ao colégio? “O trânsito brasileiro é primitivo, insuportável”. Empurra um desprevenido no corredor do shopping center? “Desculpa, eu não vi”. Sequer desconfia o truculento que a segunda pessoa do singular é uma forma lastimável de desrespeito. E ademais o “não vi” prova uma inconsciência total no campo ético. Quando alguém se move no espaço público, o ético, o moral, o polido é ver o corpo alheio, tomar cuidado para não ferir.

Na sociedade brasileira, condutas perniciosas de indivíduos e grupos são herança do que havia de pior no regime absolutista que regeu nossa história colonial. Os portugueses entram no cômputo dos povos europeus que sofreram, durante séculos, a centralização do poder nas mãos do rei. Aquela política repousava em alguns elementos estratégicos. Para dobrar a espinha de sacerdotes e nobres, o rei lhes distribuía favores, dava-lhes isenção de impostos, títulos, subvenções, cargos. Sem tal partilha, ou ele era assassinado, ou não conseguia governar. Para obter os favores do rei, as “elites”, por sua vez, precisavam apelar para intermediários entre elas e o trono. Na indicação de um cargo, o rei pagava favores para, em troca, ganhar o favor da governabilidade. Nobres e clero, por seu lado, pagavam favores aos intermediários e ao rei. Trata-se de um circuito poderoso cuja moeda é a bajulação universal, a compra e venda corrupta de favorecimentos. 

Historiadores apontam na sociedade absolutista um dos regimes mais corrompidos da saga humana. No Antigo Regime tudo se comprava, tudo se vendia, tudo se obtinha com a prestação de favores tanto aos indivíduos no mesmo nível social e político quanto aos “superiores”, que facilitavam a outorga de empregos e recursos. A sociedade absolutista era um tecido muito denso no qual dominava o favor. O indivíduo se rebaixava diante de alguém mais importante e pisava na garganta de quem estava abaixo de sua posição. 

Ocorre que a covardia subserviente se transforma, conforme a situação, em covardia arrogante. Assim foi gerada boa parte das elites do Antigo Regime, a cuja reiteração imaginária assistimos hoje quando o fulano pergunta, cheio da pior empáfia: “Sabe com quem está falando?”. Em terras polidas e cultas, a pergunta, em situações tensas e similares, é o contrário: “Quem você pensa que é?”. Ou seja, a igualdade no trato não pode ser quebrada, salvo em caso de vácua pretensão, por ninguém. Mas no Brasil o favor garante que o bajulador se apresente como tirano, se imagine estar frente a alguém inferior, “diferenciado”. 

Não causa nenhuma surpresa que, já na carta em que Pero Vaz de Caminha anunciou ao rei de Portugal a descoberta do Brasil, cargos sejam pedidos humildemente como favor, em prol de parentes. E temos aí a forma pela qual foi moldada a sociedade brasileira. A prática do favor, a reivindicação de “superioridade” sobre quem não é nobre, rico ou padre, favoreceu a formação de um coletivo sem a noção mínima da igualdade republicana. Como dizia o padre Antônio Vieira, os brasileiros não são “repúblicos”. Ao contrário do povo inglês, do francês e do americano, não praticamos as virtudes da responsabilidade diante do povo (accountability) e a igualdade política. Na Revolução Puritana do século XVII, que instaurou a monarquia constitucional na Inglaterra, o partido mais importante tinha como nome e slogan o termo levellers, ou seja, niveladores, anuladores das diferenças. No Brasil, os igualitários sempre foram vencidos pelo Estado e a vitória coube aos que beijam os pés dos governantes e insultam os vencidos. Gerou-se em 500 anos uma noção de elite sem paralelo nos centros civilizados do planeta.

Aqui, mesmo nos dias de hoje, vivemos como se estivéssemos no Antigo Regime. Os cargos nas empresas públicas e privadas são distribuídos segundo padrões do favor político, ideológico ou religioso. É a regra do “quem indica”. Sob o império do favor, indivíduos e grupos agem como se fossem melhores do que os “simples pagantes de imposto”. Ou, na linguagem de Dom João VI, “a gente ordinária de vestes”. Daí o sentimento de impunidade presente nos setores que, por estarem em posições de poder ou prestígio, usam a famosa carteirada (em duplo sentido: cargos e bolsos repletos) para negar direitos aos outros cidadãos. Quanto mais grosseiros e injustos, mais autorizados se sentem a romper o contrato social.

Na cidade de Atenas, onde se definiu a composição mais relevante da ordem democrática, algumas leis foram estratégicas nesta empreitada. A primeira tratava da responsabilidade nos serviços públicos. Só podiam ser eleitos aqueles que provavam por exame (Dokimasia) a posse de saber técnico e prudência ética para os cargos. Se no Brasil de hoje tal princípio vigorasse, muitos que se imaginam de elite estariam sem emprego. Outra lei essencial era a da Hybris (orgulho desmedido, arrogância). Um indivíduo mais bem aquinhoado pela sorte que humilhasse outro com menores recursos recebia penalidades físicas ou pecuniárias. Se aqui tivéssemos algo similar, os cofres públicos estariam abarrotados. A falta de respeito impera em nosso meio. Como o ser humano é mimético, costumes grosseiros se espalharam pelo corpo social. Não apenas a elite, mas também vastas camadas populares reiteram, sem nenhum recato, formas brutais de comportamento.

Por último, em Atenas uma forma de ser era fundamental: o indivíduo ganhava valor se manifestasse um sentimento de vergonha por atitudes incorretas. Faltar com o respeito aos idosos, às mulheres e crianças, aos mais fracos, era visto como uma indignidade sem tamanho. Quem não se ruborizasse por ter insultado algum concidadão deixava de ser um animal político e se transformava simplesmente em um animal. O termo Aidós (“vergonha”, “respeito”, “reverência”) servia para discernir quem era honesto e quem não merecia acatamento social e político. Em suma: entre as qualidades atenienses que fizeram a glória da polis democrática, talvez a que mais faça falta ao Brasil seja a vergonha. Pensadores e políticos realistas, os atenienses democráticos sabiam que é impossível manter um coletivo unido se não houver equilíbrio entre honra e pudor.

Antes de encerrar, ressalte-se ainda outra lei ateniense, a que dizia ser proibido mentir ao povo. No livro Deception and Democracy in Classical Athens (Mentira e Democracia na Atenas Clássica), o historiador inglês Jon Hesk observa que, em Atenas, a honra política estava interligada a um permanente respeito à verdade. Aristófanes e Platão caçoaram em muitas ocasiões dos demagogos que, levados pela sofística, prometiam mundos e fundos nos debates eleitorais. A falta de verdade, o uso da mentira deslavada, o entusiasmo pelos favores, o desprezo pelo populacho, tudo isso faz do Brasil um arremedo trágico e ridículo da vida democrática.

A honra traz a fé pública, condição da efetiva estabilidade econômica e política. A lógica de tal aporia é tirada por Santo Agostinho: sem a justiça e a vergonha, os Estados não passam de grandes quadrilhas. E as quadrilhas formam pequenos Estados. O Brasil que decida: seguirá a honra e a vergonha ou permanecerá na lama, reclamando da corrupção alheia? A imagem que muitos brasileiros fazem de si mesmos é a de espertalhões que podem enganar os incautos. O “jeitinho” presente nos fura-filas, nos usurpadores de vaga no estacionamento e nos que mentem em público e no privado reitera uma sociedade cuja ética é tortuosa e sempre beira o desastre. Não é possível ter bons governos com uma cidadania que ignora seus deveres. E assim caminha este país, de esperteza a esperteza, rumo ao desalento ressentido de todos contra todos. “O Brasil é assim mesmo”...

A crise ética brasileira, o significado do termo "ética" e os equívocos ao seu redor. Uma inspeção em nosso passado, mais presente do que nunca. Somos um povo que vota em quem promete lutar contra a corrupção, mas que esquece ser a corrupção um resultado, não um pressuposto. Resultado de uma estrutura social injusta, criminosa para dizer tudo.




Sempre existiu e sempre existirá crise ética no mundo. A ética resulta do equilíbrio instável entre os comportamentos (reforçados pelos valores estabelecidos) e as novas formas de agir e pensar. Ela, portanto, supõe a crise, cujo significado original vem do grego krisis, “instante de passagem, de escolha, de prova, decisão”.  A cada átimo os nossos hábitos sofrem o teste maior: eles preservam a nossa vida e a existência da sociedade que nos acolhe? Formas tradicionais de comportamento, caso não permitam responder positivamente a tal pergunta, inevitavelmente perdem vigência em médio ou longo prazo.

Importa recordar o significado original do termo “ética”. Na semântica histórica o termo ressalta o sentido de “postura” (hexis). Como a sociedade grega era guerreira, os jovens deviam aprender as posições corretas para a corrida, o uso das lanças etc. Tal aprendizado se fazia nas disputas, sob orientação de instrutores ou no próprio campo de batalha (Platão diz que os meninos deveriam sentir o cheiro do sangue, nas guerras). Era vital correr certo, pois o uso inadequado dos pés, das pernas, de todo o corpo, faria o exército perder tempo, podendo ser vencido. Ora, quem aprende a andar errado, repete o erro automaticamente. Idêntico automatismo ocorre quando se adquire a posição correta. Hexis, assim, é algo vital para a sociedade grega, sendo por semelhante motivo valorizada a sua prática certa. O automatismo traz o problema. Quando alguém anda ou corre erradamente, com muita dificuldade poderá corrigir o erro que, de tanto ser repetido, torna-se inconsciente. É preciso aprender o certo desde a mais tenra infância, daí o fato de a ética ser ligada diretamente à educação. Com o tempo, por metáfora, a postura passou a ser empregada para a atividade da mente. Assim como se aprende um bom gesto físico, também se aprende um bom raciocínio. Ou, em caso oposto, uma péssima postura na forma de pensamento. Também aqui é estratégico que a criança aprenda a boa postura desde a mais tenra idade, caso contrário ela aprenderá formas erradas de imaginar, calcular, agir diante dos valores imateriais.

O problema é que a sociedade grega, apesar de sua elevação filosófica, artística, científica, assumiu o automatismo de sua cultura, a que dizia aos cidadãos da polis que eles eram os únicos dignos de ostentar o título de homens, seres plenamente racionais e valorosos. Assim nasceu o mito da autoctonia e da supremacia grega sobre os orientais e os ocidentais do Norte europeu. Aristóteles, na “Política”, diz que os homens do Oriente têm inteligência aguda, mas são covardes. Os europeus do Norte são bravos, mas pouco brilhantes no pensamento. Os gregos, bem, eles reuniriam a coragem à mente lúcida. E seriam, propriamente, homens. Os demais povos, os bárbaros (palavra produzida com uma onomatopéia, que imita sarcasticamente os estrangeiros ignorantes da língua grega, sendo portanto alheios ao Logos, à razão) tinham como destino ser dominados pelos helênicos.

Surge aí um automatismo que persegue a ética ocidental até hoje, impedindo sua plena cooperação com outras éticas. Tal postura pode ser grosseiramente racista, mas pode ser traduzida em pensamentos etnocêntricos, embora refinados intelectualmente. É o caso do brilhante historiador da cultura guerreira grega, Victor Davis Hanson em livros como “Porque o Ocidente venceu?”. Mas a superioridade auto-atribuída pelos ocidentais não vai além da imagem idealizada. Na realidade, mesmo a Grécia entra no movimento geral das éticas mediterrâneas. Ela muito aprendeu com o Egito e demais impérios do Oriente Médio e do Mediterrâneo.

Mais adiante, a partir do século XIV (era cristã) a ética européia foi se transformando, a cada século mais rapidamente, no trato com as do Oriente Médio, da África, das Américas, do Extremo Oriente. O mesmo ocorre com as últimas diante da européia. No século XX as trocas entre as éticas regionais do planeta se tornaram a cada passo mais aceleradas, devido, sobretudo, às tecnologias da comunicação. Do telégrafo à Internet, o comércio espiritual entre as éticas se complexificou, tornando-se sempre mais amplo, emaranhado, contraditório. Os movimentos retrógrados, que insistem em conservar valores e hábitos inadequados à nova configuração do planeta, tendem a se definir como quistos que apenas preparam o isolamento de seus praticantes, ou seja, elas trazem a morte próxima ou lenta de sua cultura, formas políticas, econômicas, religiosas, estéticas e tecnológicas.

Sigo o pensamento do etnólogo André Leroi-Gourhan. Para ele, a cultura técnica – base da ordem ética – para se reproduzir, exige das sociedades duas forças aparentemente contrárias: a primeira é a capacidade de inventar instrumentos, valores, hábitos; a segunda reside na aptidão para emprestar de outras sociedades instrumentos, valores, hábitos. Quem não consegue emprestar é incapaz de inventar e vice-versa.

É o que vemos no planeta, sobretudo após o século XVI. Os europeus emprestaram da China, da Índia, do Japão ciências e técnicas em todos os domínios da vida. E inventaram, a partir daí, novas técnicas, ciências, hábitos. No campo estético tomemos, no século XVIII, no rococó, a quantidade de formas e traços conhecidos como “chinoiserie”, ou seja, empréstimos do Japão e da China, nas artes plásticas. No século XX, temos o movimento amplo chamado Art Nouveau. Ele é uma síntese de elementos orientais e do Ocidente.

O mesmo pode ser dito de toda a cultura e da ética. Gourhan mostra, após muitas pesquisas sobre a origem e a vigência da tecnologia desde os nossos alvores como humanidade, que nosso corpo é produto de nossa técnica, que desde o princípio vivemos em tecnosfera.

Moldamos nosso corpo inteiro, dos pés à caixa craniana, o que possibilitou as técnicas de manipulação e a linguagem. Mas o principal é que o nosso corpo, base da ética, se prolonga no universo dos objetos técnicos que produzimos, mas não criamos. É bom recordar a diferença entre “criação” e “produção”. No pensamento judaico-cristão, existe a idéia de um ser onipotente que gera a natureza do nada. No pensamento grego, a natureza já está ao dispor dos deuses, que a controlam, e dos homens que imitam os deuses, ou desafiam os deuses como Prometeu. Assim, nesta forma de raciocinar, não existe criação, mas produção a partir e, não raro, contra a natureza que deve ser submetida pelos nossos atos técnicos. Se não existe criação absoluta, também não existe autoctonia técnica plena. Cada sociedade inventa sua técnica (e nela, a sua ética) emprestando traços de outras sociedades. Só é capaz de inventar, retomo, quem se tornou competente para emprestar.

Ou seja, a técnica é um movimento perene de Krisis, de decisão, escolha, teste. O mesmo para a ética. Uma cultura presa em si mesma, sem choques com outras, nada acrescenta, nada inventa no seu trato com a natureza e consigo mesma. Daí, o fato de que a crise, longe de ser algo nocivo, é essencial para a sobrevivência correta, a expansão e o desenvolvimento da técnica e da ética. Outra noção de Krisis dá bem a medida da coisa: para os médicos dos tratados hipocráticos (outra fonte rica das elaborações éticas do Ocidente), a crise da doença é o momento em que ainda não foi vencida a moléstia (a morte pode vir) e já surgem sinais de recuperação da saúde. A crise, portanto, pode seguir para a morte ou para a vida. Tudo depende da perícia técnica do médico, da cooperação do adoecido, das forças que se chocam no seu corpo. Ocorre com a crise o mesmo que se passa no plano do remédio.  Os médicos gregos nomeiam como Pharmakon os medicamentos, que podem ser remédios ou venenos, muitas vezes dependendo da dose, do saber técnico no seu emprego, do corpo adoecido. Assim também na ética: ficar muito tempo na indecisão sem usar medidas técnicas para sair da crise, significa aceitar o desaparecimento. Mas não se deve ser precipitado, pois apressar o fim da crise antes do tempo pode ser desastroso. Esta é a lição política ensinada pelos médicos aos teóricos da política, de Aristóteles até Maquiavel. Trata-se da noção do Kayrós, o tempo oportuno. Quem deseja solucionar uma crise ética ou política deve saber qual o instante certo para decidir as coisas. Um minuto antes, um minuto depois, pode ser a ruína de uma sociedade ou Estado. O comércio praticado entre as éticas, desde a era antiga até a moderna, supõe a noção de crise, de tempo oportuno, de empréstimo e invenção.  Falar em “choques” ou “guerra” de culturas e de éticas significa tomar as coisas pela rama, ignorar o principal, a perene crise de todas as formas culturais, aceleradas na modernidade.

O Brasil… bem, o Brasil é o amálgama de uma ética absolutista europeia com elementos dinâmicos da modernidade. Nossa ética se enquistou no absolutismo que ignora e mesmo combate a democracia real (pensemos no privilégio de foro, excrescência do século XVII em pleno século XXI brasileiro), no menosprezo pelas técnicas de ponta, na desconfiança diante das conquista políticas mundiais, bastando ver o ódio votado aqui à liberdade de imprensa, no veto à existência de uma oposição efetiva, no conúbio entre o público e o privado. Emprestamos apenas alguns elementos do processo de mundializacão técnica e ética. Somos ainda incapazes de inventar novas éticas, o que não nos assegura um futuro invejável, apesar de todas as nossas potencialidades e riquezas. Se continuarmos ignorando a geração técnica, se não investirmos em inovação em nossas indústrias e direção de empresas, se persistirmos em viver sob uma forma de governo anacrônica (o absolutismo dos operadores do Estado, que se julgam e agem como se não devessem prestar contas a ninguém, sobretudo ao “cidadão comum”), setores vitais de nossa sociedade e de nossa ética serão ainda mais fossilizados, no mesmo passo em que outras sociedades agilizam e aproveitam com sentido certo de tempo oportuno as suas crises, assumem novos rumos, inventam novos valores e geram novos horizontes.

 São frutos de nossa ética as posturas de governados e governantes que permitem a diferença entre “ser do poder”e “ser gente comum”. Tal resquício do absolutismo torna possível uma classe especial de seres, os poderosos, que tudo fazem em detrimento dos cofres públicos e em favor de seus bolsos. Vivemos até data recente com a admiração popular diante de personagens que, se dizia, “roubam, mas fazem”. Esta complacência, ou cumplicidade das massas, é algo preparado com muita técnica e ardilosidade, e tem como datas principais as mesmas que indicam o nascimento do Estado absoluto. Neste último, as fontes públicas de recurso se concentram nas mãos dos governantes, que as direcionam no interesse do governo, sem ouvir os que pagam impostos. Estes, por sua vez, não têm direitos a reclamar nas políticas públicas.

Mesmo porque a essência do poder absolutista reside na razão de Estado que é conatural ao segredo de Estado. Os impostos, a polícia, as guerras, a administração, tudo é razão e segredo de Estado no absolutismo. Certa feita o rei francês pediu um aumento de imposto à Assembléia dos Estados (nobreza, clero, terceiro estado). Sua desculpa era a guerra. Os representantes do terceiro estado pediram para inspecionar as contas reais. O clero, setor mais influente na época, em seu voto disse que as finanças do rei eram como o Santíssimo Sacramento no cofre sagrado. Apenas os que tinham poder divino poderiam saber o que nelas se escondia… Segredo e razão de Estado são sinônimos, em todos os sentidos. E o governante absolutista distribuía privilégios para se manter no comando do Estado. Dentre os privilégios, contemos os recursos financeiros, as terras etc. O clero e os nobres eram os mais agraciados com tais privilégios, pagos à custa dos contribuintes. Rei, clero, nobres, nenhum deles julgava ter de prestar contas de seus atos e dos dinheiros. Ora, quando as revoluções modernas, republicanas e democráticas, já tinham sido efetivadas (a inglesa ainda no século XVII, a norte-americana e a francesa no XVIII), no Brasil do século XIX se reitera o absolutismo sob comando do príncipe Dom João, mantendo-se os fundamentos do privilégio, do segredo, da irresponsabilidade no manejo dos recursos públicos.

Aliás, fugido de Napoleão, que bem ou mal representava um avanço democrático quando comparado ao Antigo Regime absolutista, Dom João fez do Brasil um país refratário às “doutrinas infernais” da república, da democracia etc. Foi assim que o Príncipe fez o Banco do Brasil, que imprimiu papéis sem lastro e foi obrigado a fechar. O governante viu apenas as suas necessidades, sem cuidar nem um pouco da accountability.

A justificativa do Poder Moderador, na Carta de 1824, encontra-se nesta ressurreição, nos trópicos, do absolutismo. Com o Império, concentraram-se na Corte os impostos, que os distribuía pelas províncias e municípios conforme a sua obediência aos ditames do poder imperial. Assim, cidades ficaram séculos sem serviços públicos elementares. É quando os poderosos regionais se unem em oligarquias para arrancar meios do poder central, oferecendo como troca o controle das populações e apoio aos projetos do governo. Algo mais grave ocorre ainda no plano ético. Como as cidades são desprovidas de recursos, os fazendeiros (candidatos a oligarcas) que têm lugar nas Câmaras de Vereadores e na Prefeituras, emprestam o seu próprio dinheiro (além da mão de obra escrava que lhes pertencia e dos materiais, comprados no Rio ou São Paulo) aos cofres municipais para obras públicas. O fato surge aos olhos dos cidadãos como um favor prestado à coletividade. Mas breve surge a contrapartida.

A professora Maria Sylvia Carvalho Franco mostra que, tempos após a instauração de tal prática, os vereadores e prefeitos imaginaram o processo como rua de mão dupla: “se quando o município precisa, eu empresto, quando eu preciso…”. Temos aí o uso de confundir o dinheiro público com o privado, usando o primeiro para ascender socialmente, comprar postos de mando, alianças políticas, etc. Em “Homens Livres na Ordem Escravocrata”, todo o sistema é exposto com detalhes e provas. Importa sublinhar que a passagem do “favor” ao uso do dinheiro público, ocorre com aprovação ou mesmo cumplicidade dos governados. Tal é a origem do “‘é dando que se recebe” e do “rouba, mas faz”.

Mantida a concentração do poder no palácio presidencial, em detrimento dos Estados e municípios, mantido o sistema concentrador de impostos no poder “federal”, as populações não têm outra escolha senão votar nos poderosos regionais, os oligarcas, que trazem obras para as cidades. Ou seja, elas aprendem uma ética contrária à república e à democracia. Nem os proprietários do poder central, nem os oligarcas, imaginam ter obrigação de prestar contas de recursos aos contribuintes. Mas exigem cada vez mais impostos para prestar “serviços” ineficientes na saúde, educação, segurança, cultura, ciência e técnica. Eles julgam ter direito a colocar no bolso próprio, ou de seu partido, parte do butim, para manter os “favores”, ou seja, a realização de obras públicas nas urbes.

E agora vem a pior parte: desafio qualquer pessoa a lançar um candidato ético, respeitador dos dinheiros públicos, em qualquer eleição brasileira. Se ele provar que trará, ou trouxe, obras públicas para os eleitores, será eleito tantas vezes quanto possível o que trouxer obras públicas. Caso contrário, receberá parcos votos.

O eleitor que, diante dos jornais, rádio ou TV diz ter nojo da corrupção política, não sabe ou não quer saber o que os políticos “eficientes”devem fazer, no Congresso, para conseguir os recursos. O mínimo é praticar o “é dando, que se recebe, o toma lá dá cá”. Ou seja, a corrupção é tridimensional: existe o corruptor de obras públicas, o corrompido dos poderes, o eleitor… Sem uma efetiva democratização que obrigue os gestores a prestar contas, sem uma abolição dos privilégios (em especial o de foro), sem uma federalização que permita maior autonomia (sobretudo financeira) aos Estados e Municípios, a fábrica da corrupção ética e financeira estará funcionando em pleno vapor. Tenho alguns escritos sobre o problema. Em especial, gostaria de indicar um texto meu saído na Revista de Economia Mackenzie, cujo título é “Impostos e Razão de Estado”.

O nosso Judiciário está inserido na estrutura do Estado brasileiro, ou seja, mesmo que boa parte de seus integrantes queira exercer a missão de julgar de acordo com os padrões republicanos e democráticos, a instituição é homóloga à dos outros setores, com agravantes. O Executivo e o Legislativo seguem regras de transparência e são submetidos à opinião pública, à   imprensa, ao voto. Quando perdem seus cargos, perdem a remuneração e, quando seus processos judiciais não recebem o sinal do segredo de justiça, sua vida inteira se transforma em objeto de análise pública. Não é assim com os magistrados. Quando perdem seu cargo, guardam o pagamento, são julgados pelos pares em plano sigiloso e, quando fica evidente a sua ausência de ortodoxia ética no cargo, não recebem punição a tempo e a hora. O debate nacional ao redor do CNJ, as tentativas de enfraquecer o trabalho da Corregedoria daquela instituição que deveria controlar a prática dos juízes, tudo mostra que dos três poderes o judiciário é o mais arredio aos elementos democráticos da transparência e da accountability. Existem exceções, com certeza, mas a regra não é passível de aplausos unânimes.

Modo geral, os que operam no campo do direito manifestam um alto teor de corporativismo e, em muitos casos, de desprezo pelos “estranhos”, os “leigos”, os “cidadãos”comuns. Eles esquecem que, num mundo altamente dividido em especializações, o jurista também é leigo para o médico, o engenheiro, o arquiteto, o economista, o físico, o químico, o administrador de empresas, etc. Existem questões que vão além das especialidades. Tais questões não admitem donos da verdade nem ditadores da ciência, seja ela jurídica. Muitos operadores do direito, aqui incluindo advogados e promotores além de juízes, não admitem o ponto. Além disso, o judiciário não tem exercido o papel que lhe cabe de morigerar os outros poderes. Haja vista a facilidade com a qual é aplicado o privilégio de foro, sem um questionamento protocolar: ele fere o princípio da igualdade de todos perante a lei. Quando os que praticam improbidade com os recursos públicos fogem do juiz natural, o da primeira instância, e são supostamente colocados sob o julgamento dos tribunais superiores (quantas penalidades foram mesmo aplicadas até hoje?) temos a ruptura com o regime ordenado na Constituição e referendado pela cidadania. Esta última recusou a forma da monarquia (com tudo o que ela implica no Brasil de privilégios, lembremos que mesmos em países monárquicos do mundo atual, os políticos não gozam dos privilégios que lhes são outorgados aqui), mas a justiça passa ao largo, aceitando um ordenamento evidentemente injusto, escandaloso, inconstitucional. O privilégio de foro não cria a corrupção, mas a reforça e torna os improbos mais arrogantes, sem tomarem sequer nos dias de hoje a cautela de esconder suas manobras fraudulentas. O que se praticava dissimuladamente tempos atrás, se comete hoje em plena praça pública.

Acho mais adequado perguntar sobre o impacto da corrupção sobre o Estado e a sociedade como um todo. O primeiro e mais deletério é o sumiço da fé pública. E sem tal elemento não existe Estado de direito. Se não é possível confiar nos gestores do Estado (nos três poderes), não há motivo para obedecer a lei, pagar impostos, servir militarmente, viver segundo as regras civilizadas. Investir recursos privados em setores que dependem da administração pública, quando é sabido que tais recursos irão parar nos cofres dos partidos e dos indivíduos que operam na política, é tarefa que beira a falta de sentido.

As pesquisas que indicam a perda progressiva de fé da cidadania no sistema democrático deveria ser um alerta aos que ainda buscam um modo de vida pautado pelos valores da democracia. Mas quantos, na camada política, valorizam a república, a democracia, a responsabilidade, o respeito às leis vigentes? Quando legisladores quebram a lei, como ocorre com frequência terrível no Brasil, perde sentido se falar em Estado, ou mesmo Estado de Direito.

A violência que grassa em nossa sociedade (basta ver o trânsito, 40 mil morte por ano, mais do que em muitas guerras tremendas ocorridas nos últimos anos no planeta) mostra os efeitos da corrupção de maneira clara. Basta dizer que os assassinos do trânsito, como os improbos, escapam das malhas da justiça de modo fácil. É bom recordar o dito de Diógenes: “A lei é uma teia de aranha que prende os insetos pequenos, e não resiste à força dos grandes”, pois nela fazem buracos confortáveis. Pelo que ocorre no Brasil, haja conforto! Nosso sistema leva a população a aceitar “favores” dos que operam o Estado. Se ela não identifica favores nos oligarcas, os encontra em ações governamentais. Antes, valia como arma política de controle o bico de pena. Hoje, o cartão magnético do Bolsa Família e outros mais. E os setores da classe média e dos mais bem aquinhoados temem perder algo conquistado após muito desespero, ou seja, a inflação razoavelmente baixa e a estabilidade econômica. Não podemos dizer que apenas a conjuntura poderia explicar semelhante apatia popular diante da corrupção. Devemos, antes de tudo, dizer que o alheamento não é absoluto, pois cerca de dois milhões de pessoas se movimentaram para conseguir a lei da Ficha Limpa. Esta, apesar de tudo, marca o desejo dos cidadãos de combater o processo corrosivo que anula o Estado de direito entre nós.

Para compreender o motivo da suposta passividade do povo brasileiro diante da corrupção, precisamos refletir sobre o peso da inflação na vida nacional, de 1954 até o Plano Real. Um processo inflacionário como o vivido em nossa terra corrompe valores, quebra resistências éticas, abre caminho para o desespero de indivíduos, grupos, classes. Permitam que eu cite um dos autores mais relevantes na análise política e antropológica do século XX, Elias Canetti. Em sua obra lúcida e profunda chamada “Massa e poder”, existe um capítulo fundamental intitulado “A inflação como fenômeno de massa”. Em outros livros e textos ele comenta o impacto da inflação na ordem social e política. Tanto sua autobiografia (“Die Fackel im Ohr” ou “A torcha no ouvido”), quanto “Auto-da-fé” (“Die Blendung”) trazem situações vividas durante o tremendo processo inflacionário de Weimar. Como seu contemporâneo Georg Simmel, que publicou um monumento teórico chamado “Filosofia do Dinheiro” (“Philosophie des Geldes”, 1900, existe tradução inglesa da obra, “The Philosophy of Money”), Canetti presta atenção ao papel do dinheiro na ordem cultural moderna e na geração da identidade psicológica das pessoas.

Ele parte de um fato incontestável: “Pode-se afirmar que nas nossas civilizações modernas, excetuando-se as guerras e as revoluções, não existe nada que em sua envergadura seja comparável às inflações”. Canetti mostra como há um nexo entre o corpo do homem, a sua mão sobretudo, e a moeda. Com o enfraquecimento deste vínculo, após o papel moeda (embora o padrão ouro ainda garanta a confiabilidade de uma economia), ainda permaneceu um ponto de estabilidade e confiança nos governos democráticos. Trata-se da cifra que indica o “milhão”. Como designação de um número, o “milhão” tanto pode referir-se ao dinheiro como aos homens. E Canetti nos reconduz à íntima passagem entre a inflação verbal e a econômico-política. Milhão: “O caráter duplo da palavra pode ser analisado muito bem nos discursos políticos. O prazer voluptuoso do número que cresce repentinamente, por exemplo, é característico dos discursos de Hitler. Em geral, ele se refere aos milhões de alemães que ainda vivem no exterior do Reich que ainda precisam ser redimidos”.

Importa sublinhar: no mundo atual, massa e milhão relacionam-se imperativamente. No processo inflacionário, entretanto, “a unidade monetária perde repentinamente sua personalidade. Ela se transforma na massa crescente de unidades; estas possuem cada vez menos valor à medida que aumenta a massa. Os milhões, que tanto se quis possuir, estão repentinamente em nossas mãos, mas já não são mais milhões, apenas se chamam assim.

Na inflação, ocorre um elemento perverso e perversor: “O que cresce toma-se cada vez mais fraco. O que antes era um marco é agora dez mil, depois cem mil, depois um milhão. A identificação do homem individual com seu dinheiro é abolida desta forma”. O homem, que antes confiava na sua moeda ou bilhete, não “pode evitar sentir seu rebaixamento como um rebaixamento dele próprio. (…) A inflação não abala apenas tudo externamente; nada mais é seguro, nada permanece no mesmo local durante uma hora; em virtude da inflação, ele mesmo, o homem, diminui. Ele mesmo, ou o que ele foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter, também é nada. Todos o possuem. Mas cada um é nada”.

A inflação, desse modo, pensa Canetti, é uma “desvalorização dupla (…), o indivíduo sente-se desvalorizado, porque a unidade na qual confiou, que ele respeitava tanto como a si mesmo, começou a deslizar para baixo. A massa sente-se desvalorizada. (…) Como pouco se vale sozinho, igualmente pouco se vale unido aos demais. Quando os milhões aumentam, todo um povo de milhões se converte em nada”.

A massa, entretanto, não se esquece de sua desvalorização. “A tendência natural, a partir daí, é a de encontrar algo que valha ainda menos do que a própria pessoa, algo que possa ser desprezado da mesma forma como se foi desprezado antes.” A massa, digamos, busca um bode expiatório onde descarregar o sentimento de ser nada. Canetti aponta para o vínculo entre a inflação alemã e os milhões de judeus, supostamente inferiores aos arianos empobrecidos pela inflação, mortos nos campos de extermínio.

A lição trazida pelo processo inflacionário de Weimar não foi aprendida o bastante pelas sociedades ocidentais. O descontrole da economia traz inflação e, com ela, massas dispostas a seguir os mais diversos Messias, cobrando de supostos culpados toda a insegurança e humilhação vividas.  Basta ver o que se passa na suposta União Européia nos últimos tempos. Recomendaria modestamente a leitura de um livro relevante para os nossos políticos, magistrados, universitários, jornalistas. Penso no volume publicado por Bernd Widdig (“Culture and inflation in Weimar Republic”), onde inclusive existe um capítulo inteiro dedicado às análises de Elias Canetti.

No caso brasileiro a população, desacostumada aos procedimentos democráticos (no século XIX, os nossos governantes dificilmente poderiam ser postos entre os campeões da democracia), algo piorado por dois regimes de exceção no século XX, e também afeita aos favores que espera dos que operam o Estado, não teve oportunidade de exercitar ativamente a crítica e a cidadania. Se na Alemanha, onde o nível da participação política das multidões foi elevado, sobretudo após 1848 (a era das revoluções) aconteceu um descontrole econômico e político desastroso como a inflação, conduzindo à fé cega num redentor, no caso Adolf Hitler, não é de espantar que no Brasil tenham medrado arremedos messiânicos como o de Jânio Quadros, José Sarney (recordemos a histeria dos “fiscais do presidente” que invadiam supermercados, prendiam gerentes, penetravam em fazendas na caça aos bois gordos, com base na lei delegada etc), Fernando Collor… A cada nova onda de fé no salvador presidencial, seguia uma onda de humilhação, perda da autoestima, desespero diante do presente e do futuro.  A apatia que hoje se observa nas massas urbanas brasileiras tem várias faces, sendo que a primeira é justamente a segurança econômica, da qual fala a propaganda oficial necessariamente.

Protestar contra a corrupção parece ser algo menor, se comparado ao pesadelo vivido antes do Plano Real. Acrescente-se que a mesma propaganda “sequestrou” o peso dos governos Itamar Franco e Fernando Henrique na construção daquela segurança: “nunca, antes neste país…”. A segunda face, mais triste, é o conúbio dos eleitores com os corruptos que lhes fazem “favores” pessoais ou coletivos (trazem obras para as cidades etc). A terceira é o controle quase absoluto do governo federal sobre as obras públicas no país inteiro, facilmente transformando-as em instrumento político eleitoral. E temos várias outras faces.

Mas digamos, para encerrar esta longa resposta, que um povo que viveu sob a inflação e foi humilhado ao máximo por ela, se dispõe à entrega total a um líder populista. E tal fato traz muitas preocupações com o futuro da democracia.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Roberto Romano : θεατροκρατία : Ruídos e harmonia, as massas desafiam os donos do Estado.Revista Comciência, Labjor/Unicamp-SBPC, 10/09/2013.


θεατροκρατία : Ruídos e harmonia, as massas desafiam os donos do Estado.

Roberto Romano

Para as crianças mortas na Síria, pela venenosa razão estatal.

As massas, nas ruas do mundo (Nova York, Paris, Cairo, Damasco, Tunis, Rio de Janeiro, São Paulo) inauguram uma nova era política. Seus cantos podem anunciar guerras civis ou abrir sendas para novos experimentos no elo entre poderes e povos. A violência na política, economia ou religião, em todas as sociedades, gera revolta e organiza indivíduos até agora silentes. Governos e imprensa exorcizam o “vandalismo” que ameaçaria a “ordem estabelecida”. Avenidas se transformam em campos de batalha como na Síria, ou em vias de pacificação provisória, em Tunis. Gritos brotam das gargantas, condenam um desarrazoado que reduz o mundo à triste “waste land” sem presente ou amanhã. Na cultura, desde os primórdios, temos o embate entre os ruídos assustadores e assustados e a ordem racional. Jamais nenhum deles reuniu hegemonia absoluta. Todo discurso exorciza a morte, falta absoluta de sentido. E nada apresenta a morte de maneira mais dura do que a guerra civil ou entre Estados. (1 )

“A guerra de agora é ruído. Em especial o ruído gerado pelos Stukas quando mergulham sobre a sua cabeça e o vento que faz as sirenes berrarem muitas vezes, como loucas. Guerra é o ruído da bomba ao cair. Grosso, pesado ruído. Depois o ruído dos vidros quebrados e das paredes tombadas. Depois o ruído do silêncio. O silêncio que a eternidade agarra por um segundo e depois deixa rápido escapar. Mais do que tudo o mais, hoje, é o ruído das pessoas desesperançadas, feridas, de alma queimada. Quando o instante de silêncio se vai, elas berram ou murmuram, ou apenas lamuriam. (…) Você pode esquecer o que enxerga. E o que cheira, mas jamais esquece os ruídos. Eles batem na sua cabeça e fazem ver Belgrado, quando estamos no Cairo. Eles nos fazem cheirar carne humana queimada em Corinto, quando estamos em Nova York. Ruídos não permitem o sono. Você imagina saber algo sobre ruídos? Espere até ouvir os ruídos da guerra, então pode acreditar no que digo. Os ruídos da guerra logo conduzirão o mundo à loucura”. (St. Robert John : From the Land of silent people). (2 ).

Antes de Robert John, outros exprimiram a loucura da guerra no embate da lógica contra o absurdo. “Imagine as coortes bárbaras que inspiram terror só com as suas faces e o som de suas vozes. Nos dois lados da batalha, o temível barulho das armas, odioso rosnar da grande multidão… o espantoso alarido das trombetas, o trovão dos canhões…. a espantosa carnificina”. Trata-se da investida feita por Erasmo de Rotterdam contra a guerra. ( 3) Não por acaso um contemporâneo de Erasmo escreveu a cena bela e terrível na qual os berros e as imprecações dos soldados são congelados e soltos quando o mundo esquenta e libera o horror pretérito. (4 ) Ainda Erasmo, inimigo dos instrumentos berrantes da música, condena a polifonia seguida de sons estridentes “que evocam a imagem da guerra ou da violência geral”. Em carta a Nicolas Varius (26/09/1526) ele proclama: “Platão considera que o gênero musical no Estado é de grande importância, o que teria ele dito se escutasse tal música entre cristãos?” (5 )

A crítica da guerra, no instante em que os Estados nacionais europeus se firmam e os governos adquirem a ética da raison d’État em detrimento dos povos, une-se, na consciência dos humanistas, à lembrança ilusória de Platão, o arquiteto da política ocidental. Embora sua faina tenha sido pacificar as massas, tanto físicas quanto espirituais, Platão projeta o plano do Estado, tal como subsiste em nossos dias. ( ) Nele, apenas os competentes navegadores do navio público têm o direito de impor caminhos à massa inepta. A separação entre dirigidos e dirigentes encontra nos textos platônicos a sua primeira forma técnica e, ousemos dizer, científica. Tal abismo entre as multidões e os líderes é formulada nas Leis contra os ruídos que destruíram, segundo o filósofo, a democracia ateniense. As considerações que farei nas linhas seguintes giram ao redor daquele texto fundador, no ponto mais delicado da ordem política: o econômico que implica a propriedade. Platão faz um personagem do diálogo, o ateniense, anunciar que para definir a igualdade entre cidadãos seria preciso impor normas à propriedade fundiária e às dívidas. Quando um legislador deseja mudar algo naquele plano, todos se levantam contra ele e alegam que não se deve mexer no caso.

Mas os homens, adianta Platão, possuem um comum objeto de desejo, tudo ocorre conforme as exigências de nossa alma. O legislador deve estabelecer normas tendo em vista a virtude, o pensamento refletido, a opinião, o amor (eros), o desejo que concorda com as primeiras atividades de nossa alma. A ruína dos governos ocorre porque eles não sabem dizer quem deve mandar e quem deve ser mandado, na sua ignorância sobre o que mais importa nos assuntos humanos. Qual ignorância é visada? A produzida quando tendo julgado bela uma coisa, ou boa, não a amamos mas a odiamos. Então amamos e procuramos o que é perverso e injusto. Tal discordância entre pena e prazer e a opinião razoável é a suprema ignorância porque ela é própria da massa popular (πλῆθος) pois a parte da alma sujeita à pena e ao prazer corresponde exatamente, no Estado, ao povo e à massa. A massa ignara não deseja obedecer os magistrados e as leis.(6 ) O mesmo ocorre nos indivíduos, se os bons princípios são ineficazes, pois vence o que é dissonante. Nenhuma magistratura pode ser atribuída a alguém que padeça de semelhante ignorância. Deve-se, ao contrário, chamar de sábio o caráter oposto, e lhe atribuir os cargos. A sinfonia (συμφωνία), mais bela e elevada consiste no mais alto saber (σοφία), partilhado pelo homem razoável. Quem carece de tal ciência não pode ser um salvador (σωτήρ) do Estado. Quem manda deve possuir títulos para tal nos grandes Estados, nos pequenos e nas famílias. Nestas, o pai ou a mãe comandam os filhos. No Estado, as pessoas de alto nascimento comandam os de baixa extração. Depois, os anciãos dirigem os jovens, o escravo deve ser ordenado pelo senhor, o fraco deve ser conduzido pelo forte.

No comando natural da lei as pessoas obedecem voluntariamente, sem recurso à violência. Mas na democracia existe o sorteio e comanda o vencedor com ajuda do acaso. Temos aqui uma fonte de sedição (στάσις) . As causas da ruína e perda de potência (δύναμις) do povo grego foi ignorar as palavras de Hesíodo segundo a qual, em muitos casos, “a metade vale mais do que o todo”. Sempre é prejudicial por a mão sobre o todo, quando basta fazer isto com a metade, a justa medida vale mais do que o que o desmedido pois é melhor do que o pior. Os governantes arruinados foram atingidos pelo mal que consiste em ambicionar ter mais do que permite a lei. Eles louvam a lei em palavras. Mas não a respeitam de fato. Este choque entre a fala e o ato é a mais grave ignorância, tida no entanto, sobretudo pela massa, como sabedoria. Em razão de tal dissonância se corrompem as belas normas da constituição. A justa medida é essencial na política, como no corpo (alimentação) ou técnicas (nos navios, mais velas do que o preciso), na alma direitos excessivos. Sem ela, tudo se inverte, a abundância de carnes leva à doença, a ilimitação conduz à injustiça. A alma dos jovens não suporta o peso do poder, logo ela é infectada da mais grave doença, a desrazão. Contra tais excessos cabe ao legislador, graças à justa medida, tomar precauções.

Essa teoria do poder supõe o universo e a sociedade como harmonia. E na política deve ser mantido o domínio das antigas leis nas quais o povo não tinha soberania, era escravo voluntário das leis. Quais leis ? As relativas à música. Na época antiga a música era dividida segundo espécies e formas próprias. Não era permitido abusar de uma delas, transpondo-as para outras. O poder de julgar com conhecimento de causa e punir os transgressores não pertencia às vaias ou aplausos, mas era decidido por sábios que tudo ouviriam em silêncio e, varinha nas mãos, estabeleceriam a ordem e advertiriam crianças e professores. A ordem era aceita pelos cidadãos que não ousavam recorrer à gritaria para dar sua opinião.

Os poetas inculcaram na massa o hábito de infringir as leis e a audácia de se acreditar capaz de decidir. Resultado: antes, o público não falava no teatro (era ἄφωνος), depois, começou a falar como se entendesse o que é belo na música. Surge a “teatrocracia” (θεατροκρατία) depravada que substitui o poder dos melhores juízes. Se apenas em música, e em música apenas, surgisse uma democracia, não ocorreria algo tão desastroso. Mas pela música se iniciou a crença no saber de todo mundo para julgar, a atitude subversiva. Segue-se a audácia de não temer a opinião de quem vale mais. Após tal liberdade, vem outra que consiste em não aceitar voluntariamente ser um “escravo” da autoridade. Depois vem a fuga da “escravidão” diante do pai e da mãe, diante dos antigos e a busca de um meio para burlar as leis. E ocorre o desprezo dos juramentos, da fé publica, o desprezo dos deuses. O livro III das Leis indica as tarefas do legislador: promover no Estado a amizade entre os cidadãos, com base no pensamento racional. A correta constituição deve ser temperada. Todo poder deve possuir limites, tanto no lado do povo quanto no lado do príncipe. Atenas se inclinou em demasia para o lado democrático, a Pérsia do outro. A Pérsia se enfraquece porque a obediência dos povos, nela, é servidão, mas Atenas adoece porque a liberdade se transforma em licença, perde o sentido da autoridade. O poder político deve ser distribuído na proporção da virtude, cujos graus são os seguintes : bens da alma unidos à temperança, bens do corpo, a riqueza. (7 )

Da terra aos meios urbanos de controle político, Platão inaugura a máquina estatal para gerir a massa dos ignaros, algo repetido ad nauseam por seus êmulos da moderna Raison d’État. ( 8) Desde então, os que governam possuem, supostamente, a receita para a harmonia social, econômica, política. Eles usam a polícia, o exército e a censura (9 ) para controlar as multidões, além da propaganda sem peias. (10 ) A divisão entre os que sabem e os ignorantes determina o imaginário que separa as multidões ruidosas e bárbaras dos que, nos palácios, supostamente defendem a cultura, a civilização, a paz. Platão sempre teve seguidores entre os amigos do poder. Hegel, por exemplo, define o Estado como “organismo, desenvolvimento da Ideia segundo o processo de diferenciação de seus diversos momentos”. Com a Revolução Francesa, fruto das Luzes, pensa ele, o social se fragmentou por causa da igualdade política. O filósofo recorda a surrada fábula do estômago e dos membros: “O organismo é composto de tal natureza que se todas as partes não concordarem na identidade, se uma só delas torna-se independente das outras, vem a ruína do Todo”. Quem fala em igualdade ou liberdade nesse plano, diz Hegel, “assume o ponto de vista da populaça”. O conceito de organismo, lembra Norberto Bobbio, (11 ) encontra-se na concepção hegeliana do político, do jurídico e do social. A “populaça” é exorcizada : “É opondo à soberania do monarca se começou, numa época recente, a falar em soberania do povo. Considerada nessa oposição, a soberania popular é integrante desses pensamentos confusos que se baseiam nas representações grosseiramente populares. Sem o seu monarca e sem a organização que a ele se liga necessariamente, e de modo imediato, o povo é massa informe que já não é mais um Estado” (Filosofia do Direito § 279 nota) (12 ). 

No século vinte os Estados invocaram a “soberania popular” e mantiveram um aparato burocrático que assumiu, sine ira et studio, poderes hierárquicos, transcendentes e decisivos. Ordens das “autoridades”, como as do Rei, não se discutem, pois tel est son bon plaisir. Bancos Centrais possuem força maior do que a de Luis XIV e Napoleão. Os donos do mando atual, a pretexto de “globalização” e outros sinais sonoros vazios, recusam a democracia em prol da especulação financeira global. Resulta que as populações são jogadas no desemprego, na insegurança, nas guerras. Sem justificar seus monopólios da força, da norma jurídica, dos impostos, o poder público negligencia os serviços coletivos. O povo deve gerar riqueza, sem o básico da educação, saúde, transporte, segurança jurídica. Sem atender a tais requisitos o Estado perece, torna-se cada vez mais um absurdo instrumento sem vida. Aumenta a morte coletiva e surgem os signos do retorno ao estado de natureza, tanto nas periferias pobres das urbes quanto nos bairros enriquecidos. A responsabilidade por uma catástrofe política e social e pelo fim inglório da república deve ser partilhada entre políticos arrogantes que se julgam superiores ao povo e intelectuais idem. As massas, com seus alaridos “bárbaros”, ou “vandálicos”, abrem um caminho estranho à Raison d’État ( ) cuja “harmonia” é na verdade o caos dissonante imposto a ferro e fogo aos povos, o massacre dos milhões, a indústria bélica e seus barulhos horrendos. Conseguirá o Estado se recompor em novas bases? Ou seguiremos rumo à exacerbação de sua violência “legítima”? A semelhança das sereias que atormentaram Ulisses, qual propagandista conduzirá as gentes para o abismo sob maviosas cantigas? A propaganda, sabemos desde Goebbels, é arma importante em tal guerra. Mas pouco a pouco até mesmo ela se desgasta. Saudemos a nova esperança dos povos e de sua primavera. Esta, muito rápido, se tranforma no inverno mortal por obra dos poderes estatais, como vemos na Síria, no Egito e…last but not least, no Brasil da repressão brutal aos gritos de liberdade que vêm das ruas, contra os piores abusos cometidos nos palácios. 
Notas
(1) As páginas seguintes supõem o trato com vasta bibliografia sobre a Razão de Estado, tema que estudo na Unicamp há bom tempo. O texto e a bibliografia foram postos nos seus elementos essenciais. No final de 2013 está prevista a publicação de um livro meu com trabalhos extensos sobre a racionalidade estatal contra a soberania popular.

(2) NY, Doubleday,1942. Stuka: Sturzkampfflugzeug, bombardeiro da Luftwaffe, Segunda Guerra Mundial;

No adágio Dulce bellum inexpertis (A guerra é aprazível para quem não a conhece). (1515). Cf. Pugliatti, Paolo: Shakespeare and the just war tradition (Farnham, Ashgate, 2010) p. 42
“Pantagruel, ouvindo o escândalo que Panurgo fazia, exclamou (…) escutemos antes para saber do que se trata ! Talvez sejam os nossos. Não vejo ninguém. E no entanto percebo cem mil vozes ao nosso redor. (…) O capitão respondeu: ‘Senhor, não tenha medo de nada. Aqui se encontram os confins do mar glacial, onde se passou no começo do último inverno uma grande e bandida batalha entre os Arismapiens e os Nefelibatas. Então tudo gelou no ar, as palavras e os gritos dos homens e das mulheres, o choque das massas, a batida das lanças, das armaduras, os relinchos dos cavalos, e todo o estrondo de um combate. Agora que o rigor do inverno passou e retorna a paz e a duçura dos belos dias, o que gelou se faz ouvir e entender.’Por Deus, disse Panurgo, acredito. Mas poderíamos ver mais de perto? (…) Eis, eis, disse Pantagruel, eis algumas que não se descongelaram’ . E nos jogou então às mancheias punhados de todas as cores. Vimos palavras vermelhas, verdes,azuis, negras, douradas. Elas se fundiam porque esquentavam em nossas mãos e as ouvíamos perfeitamente. Mas não as compreendíamos, porque era uma lingua desconhecida. O irmão João apertou um grande número em suas mãos, o que fez um som igual ao das castanhas que estouram quando jogadas ao fogo sem terem sido fendidas, e nos sobressaltamos todos de espanto. ‘Aquela palavra foi um golpe de foice no seu tempo’ disse o irmão João. Panurgo pediu outras a Pantagruel. Este respondeu que só havia a dos amantes que empenhavam sua palavra. ‘Então as venda! ‘replicou Panurgo. ‘Só os advogados vendem palavras, respondeu Panurgo. Eu venderia de preferência o silêncio, muito caro!’ E ele jogou na ponte três ou quatro punhados. E vi palavras bem picantes, palavras injuriosas, (…) palavras horríveis, e outras muito desagradáveis de serem vistas. E quando todas se fundiram, ouvimos : ‘hin, hin, hin, hin, his, ticque, torche, lorgne, brededin, brededac, frr, frrr, frrr, bou, bou, bou, bou, traccc, trac, trr, trr, trr, trrr, trrrrrr, on, on, on, on, ououououon (…) e não sei mais que outras palavras bárbaras. Eram os ruídos do choque e do relinchar dos cavalos no assalto. Eu quis colocar algumas palavras vermelhas no óleo, para as conservar bem. Mas Pantagruel me impediu e declarou que era loucura guardar aquilo que nunca falta”. Pantagruel
, Quarto livro, capítulos LV e LVI in Oeuvres complètes de Rabelais(Paris, Gallimard, La Pléiade, 1938), pp. 711 e ss. Trata-se, em Rabelais, de um ensaio de sinestesia cuja agudeza terá ecos no romantismo. A audição colorida, da qual o poema de Rimbaud é um avatar (o batido “Voyelles”) encontra aqui um peso antropológico e político perene, bem mais amplo do que na imagética romântica.


(3) Citado por Jean Claude Margolin, Erasme et la musique (Paris, Vrin, 1965), p. 63

(4) Mcclelland, J.S. : The crowd and the mob, from Plato to Canetti (London, Unwin Hyman, 1989).

(5) Morrow, Glenn R. : “Plato and the rule of law” in Vlastos, Gregory (Ed.) : Plato, a collection of critical essays, ethics, politics, and philosphy of art and religion
(Notre Dame, University of notre Dame Press, 1978), pp. 144 e ss.

(6) Cf. A. Ed. Chaignet : La Vie et les écrits de Platon (Paris, Didier et Cie., 1871), pp. 403 e ss. Pantel, P. Sch. (ed.) Athènes et le politique, dans le sillage de Claude Maussé (Paris, Albin Michel, 2007).

(7) Cf. sobretudo Naudé, Gabriel: Considérations politiques sur les coups d’État (Paris, Gallimard, 2004) e Giovanni Botero, La ragion di Stato (Roma, Donzelli Editore, 1997). Yavetz, Zvi: La plèbe et le prince, foule et vie politique sous le haut-empire romain (Paris, La découverte, 1984).

(8) Catteuw, L. : Censures et raisons d’État
(Paris, Albin Michel, 2013).

(9) Malcolm, N. : Reason of State, propaganda, and the Thirty Years War (Oxford, Clarendon Press, 2007).

(10) Cf. Estudos sobre Hegel, Direito, Sociedade Civil, Estado
. São Paulo. Unesp, 1989.

“Das Volk, ohne seinem Monarchen und die eben damit notwendig und unmittelbar zusammenhängende Gliederung des Ganzen genommen, ist die formlose Masse, die kein Staast mehr ist” , Grundlinien der Philosophie des Rechts in Werke in zwanzig Bänden (FAM, Surhkamp, 1970), V. 7, p. 447. Karl Marx analisou de modo consistente as afirmações hegelianas sobre a forma do regime e do povo, na monarquia e na democracia. Não cabe aqui discutir tal sofisma anti-democrático de Hegel.

(11) Lazzeri, Christian e Reynié, D. : La raison d’État, politique et rationalité e Le pouvoir de la raison d’État (Paris, PUF, 1992).

(12) Livro até hoje essencial sobre a propaganda e sua forma de escravizar as massas, cf. Tchakhotine, Serge: Le viol des foules par la propagande politique
(Paris, Gallimard, 1952).

domingo, 18 de novembro de 2018

Descobri que entre os amigos do FB há um parente de um grande homem e filósofo, Professor Ubaldo Puppi, de quem tive a honra de ser discípulo e afilhado de crisma. Quando ele faleceu o Instituto Fé e Ciência de Curitiba me pediu uma homenagem. Ela foi publicada no site do Instituto, mas não está mais à vista. Aproveito o encontro do familiar do professor, para repetir aqui a homenagem. Para quem não o conheceu, ele foi secretário de Jacques Maritain, voltou ao Brasil e quando lecionava na Faculdade de Filosofia de Marilia foi preso por "subversão", devido à delação de duas senhoras que nem merecem o título de conservadoras, visto serem apenas fanáticas. Após muitas dificuldades ele venceu o processo (AINDA EXISTIAM JUÌZES NO PAÌS) e voltou à cátedra. Católico fervoroso, nunca ouvi dele nenhuma reclamação pelo que sofreu. Suas aulas eram brilhantes e suscitaram muitas vocações intelectuais. Deus o tenha na su glória.

ANO 6 - ED 73 - SETEMBRO DE 2005
ARTIGO
Professor Puppi, um testemunho
Roberto Romano
Patet igitur ex praedictis quod, sicut anima hominis elevabitur ad gloriam spirituum caelestium ut Deum per essentiam videat (…) ita eius corpus sublimabitur ad proprietates caelestium corporum, inquantum erit clarum, impassibile, absque difficultate et labore mobile, et perfectissime sua forma perfectum. Et propter hoc apostolus dicit resurgentium corpora esse caelestia, non quantum ad naturam, sed quantum ad gloriam. Unde cum dixisset quod sunt corpora caelestia, et sunt terrestria, subiungit quod alia est caelestium gloria, alia terrestrium. Sicut autem gloria in quam humana anima sublevatur, excedit naturalem virtutem caelestium spirituum (…) ita gloria resurgentium corporum excedit naturalem perfectionem caelestium corporum, ut sit maior claritas, impassibilitas firmior, agilitas facilior et dignitas naturae perfectior. Summa contra Gentiles De qualitate corporum glorificatorum (Liber 4, caput 86) (1)

Anjos. Esta foi a primeira palavra que ouvi, em companhia de outros jovens, de Ubaldo Puppi. A cidade era Marilia e o ano podia ser 1962 ou 1963. No Instituto Bicudo de ensino oficial secundário, numa sala de aula que reunia alguns estudantes da JEC, falava o professor de filosofia com a tranqüila seriedade dos sábios. Anjos. Risos surgiram, inevitáveis, quebrando o silêncio de um sábado modorrento, comum no interior paulista. Sem ira ou hilaridade o professor replicou : "anjos, sim". E ouvimos belíssima exposição sobre a essência dos corpos angélicos, a sua diferença em relação a nós, sua proximidade do poder divino, a pureza absoluta da mente e o controle de seu movimento. Passados muitos átimos, termina a aula. Saímos pensativos e preocupados. Anjos, quando berra a injustiça brasileira ? Anjos, quando o imperialismo ameaça a esquerda e a sociedade nacional? Anjos, quando o golpe de Estado se anuncia nas falas do IBAD e de Carlos Lacerda ? Anjos, quando as reformas (agrária e demais, anunciadas pelo governo) são indicadas pela imprensa como agressões comunistas ? Anjos…
Pouco tempo depois escutamos o mestre, agora na Faculdade de Filosofia de Marilia. Sua fala silenciava as realidades celestes e nos dirigia para os temas aflitivos da política nacional : fome no campo e na cidade, exploração imperialista, injusto usufruto das rendas, coronelato, capangagem, etc. Tratava -se não de anjos, mas do mundo bestial, no capitalismo sem peias. Puppi, com outro professor amigo, comandou o curso de preparação de monitores para o método Paulo Freire. Em companhia de Antonio Quelce Salgado, ele era a fonte onde jovens secundaristas e universitários sorviam o pensamento mais translúcido sobre a opaca realidade brasileira. Encontrá-lo era uma alegria: sem pedantismo, sem nariz erguido, sem crueldade (algo muito comum na filosofia universitária), ele respondia as perguntas e arrazoava - sempre- meditando sobre as origens empíricas e as dificuldades lógicas dos problemas. Ensinava da maneira eficaz, não parecia ensinar. 
No curso Paulo Freire, ou "sobre a realidade brasileira", como o chamávamos, acotovelam-se jovens e adolescentes sequiosos de saber e justiça. Mas também se apresentavam corações e cérebros opaco almas sombrias movidas pelo preconceito e ódio. Duas senhoras se notabilizaram nas palestras por suas falas conservadoras. Mas os trabalhos seguiam um ritmo natural. Entre a leitura dos textos e o lazer, um divertimento era seguir Puppi e seu colega, proprietário de um carrinho velho (se bem me lembro, verde escuro) pelo "tobogã" da Avenida São Luiz, no trecho entre a praça de São Bento e a Faculdade de Filosofia. Na descida, muitos de nós pulavam na boléia, rindo e aproveitando o ar livre. Na subida…não raro o carro enguiçava e lá íamos empurrando o heróico veículo até um ponto seguro. Dentro, nos atirando desafios, os dois professores amigos. O nome que demos ao veículo cômico e anacrônico? Catarina.
Chega 1964 e a tempestade de ódios e delações trazida pelo golpe civil e militar. Aparece a prática hedionda do chamado "dedurismo". Pessoas de bem são delatadas por pessoas que se imaginavam de bem, mas eram diabólicas. Puppi e seu colega foram apontados como perigosos subversivos a serviço de Moscou. Com a maré das acusações contra eles, tentam sair da cidade…pilotando a velha Catarina. Não foram longe. Detidos, voltaram para Marilia onde os esperava a baixeza humana em estado quase puro. Demitidos da Faculdade, foram obrigados a providenciar os recursos vitais de sua família de maneira digna, mas humilhante. Puppi vendeu produtos de consumo doméstico nas portas e procurou vender livros aos seus antigos alunos. Conforme ele mesmo me confidenciou, teve decepções com vários deles. Dias de sofrimento, entretanto, que ele dominou com a fé cristã e a temperança dos justos. Nunca o vimos desesperado ou sombrio: o sorriso gentil e nobre manteve-se em seus lábios, intocado. 
Certamente as horas mais escuras, quando até mesmo os santos sofrem o ataque da acedia, ele as partilhou com a companheira de todas as horas: a bela, gentil, cultivada e fina Dona Edi. É difícil encontrar um casal bem feito. Temos tal certeza pelos relatos sobre a gênese do pecado (se formos cristãos) ou pelas narrativas do Banquete platônico sobre o ser original, uno e completo, que se tornou inimigo desde o arrogante desafio aos deuses. O casal Puppi era uma rara exceção. Estar com os dois sempre foi uma alegria porque o sentimento e a inteligência se manifestava em ambos, não distribuidos segundo padrões numéricos, mas enquanto diversas operações de corpos. O lado masculino chamava para aspectos estratégicos da vida. Mas o feminino, suavemente, apresentava o sentido real das coisas. 
Ao retornar às salas de aula, por ato da justiça contra o arbítrio, Puppi retomou a brilhante carreira acadêmica. Um detalhe fundamental: na juventude extrema, ele esteve entre os noviços dominicanos, na França. Alí, estabeleceu os laços com a filosofia tomista e o canto gregoriano, que dominou até os últimos dias. Depois foi colaborador do maior pensador católico do século 20, Jacques Maritain, filósofo que buscava trazer a doutrina social e política da Igreja para os tempos modernos, sem trair a essência religiosa. O convívio com poderosas inteligências e vontades retas, como as de Jacques e de Raïssa, formou o pensador Puppi. Ao retornar ao Brasil, ele publicou alentado volume que visava refutar a fenomenologia husserliana. Certamente o livro teve poucos leitores. Tentei inspecionar a sua totalidade, mas desisti. Não tinha cultura ou cabeça para seguir as agudas sentenças e análises do autor. Só mais tarde captei, em parte, as demontrações de Ubaldo Puppi. Mas o professor, já naquele momento, reavaliava sua crítica à fenomenologia, acrescentando solidez aos argumentos. Filósofo com rigoroso treino metodológico, adquirida no tomismo, Puppi não se prendeu à escolástica: aberto ao pensamento e ao Ser, sua pesquisa jamais admitiu limites. É desse modo que redigiu páginas brilhantes e finas sobre estética (certamente a companhia de Dona Edi foi importante), ética, política, religião.
Ao retornar para a nossa terra, o Paraná, Puppi assumiu a tarefa árdude traduzir o pensamento para a polis democrática. Secretário da Educação, Presidente do Conselho Estadual de Educação, Assessor de políticos e de instituições públicas, o mestre lutou como poucos pela ética na vida estatal. Recebeu críticas e elogios, mas a constante maior era o respeito que suscitava em todos. Presença relevante no Instituto Fé e Ciência, ele encerrou com chave de ouro a sua vida pública, ajudando a trazer a reflexão filosófica e teológica ao mundo do saber técnico e científico. 
Meu testemunho sobre sua pessoa não pode ser entendido como o de um intimo. Nossos encontros, após 1965, tiveram a peridicidade dos cometas. Em 1980 convivemos no Departamento de Filosofia do qual ele era Chefe, em Marilia. Depois, compartilhei, sob sua regência, os trabalhos de oficialização da Unicentro, em Guarapuava, Paraná. A justiça e a segurança de seus juizos levaram o labor a bom termo. Nos encontramos pela última vez no Instituto Ciência e Fé. Depois, apenas nos relacionamos pela voz, ao telefone. Mas jamais esquecerei uma bela tarde de verão, em Marilia, na igrejinha próxima à Faculdade de Filosofia, quando me tornei afilhado de Crisma do casal feliz, Ubaldo e Edi. Quando recordo aquele ato, a paz invade o meu corpo inteiro. 
Anjos…hoje Puppi vive numa glória antecipada pelos seus dias na terra. Sua agilidade mental, sua claridade, seu domínio do corpo elegante, todos os bens corporais e anímicos foram infinitamente potencializados pela Graça. Esperemos receber o presente de abraçar aquela individualidade poderosa na sua vida celeste. À Dona Edi, que o ajudou tanto na marcha rumo ao Absoluto, nosso abraço afetuoso. Quando ela o encontrar, a felicidade de ambos será perfeita, porque os dois partilharam
L ´Amor che move il sole e l ´altre stelle
¹- "Assim como a alma humana será elevada à glória dos espíritos celestes até ver a essência de Deus, também o corpo do homem será sublimado até possuir as propriedades dos corpos celestes: claro e impassível, sem dificuldade ou esforço, conduzido à mais completa perfeição. Eis porque o Apóstolo diz dos corpos ressuscitados que eles serão celestes, não por sua natureza, mas por sua glória. E depois de enunciar que existem corpos celestes e terrestres, acrescenta : uma é a glória dos corpos celestes, outra a glória dos corpos terrestres. Assim também a glória à qual é elevada a alma do homem ultrapassa a excelência natural dos espíritos celestes e a glória dos corpos ressuscitados ultrapassa a perfeição natural dos corpos celestes pela maior clareza, impassibilidade mais firme, agilidade dos movimento e mais elevada dignidade de natureza". Tomás de Aquino, Suma contra os gentios, "A qualidade dos corpos glorificados", Livro 4, capítulo 86.