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terça-feira, 16 de janeiro de 2018

Jornal da Unicamp. Peter Schulz


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Foto: Antoninho PerriPeter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Quando cientistas não bastam para fazer ciência

Ilustração: Luppa SilvaNa minha formação como físico, da graduação ao doutorado, nunca me deparei com uma disciplina sobre metodologia científica, tema que é mais presente nas grades curriculares em outras áreas do conhecimento, como vim a descobrir bem mais tarde. Interessava-me, juntos com alguns outros colegas naquele longínquo século XX, por filosofia e história das ciências, mas passamos ao largo de qualquer manual de metodologia científica. Assim se alguém perguntasse naquela época o que era ciência, não teria uma resposta pronta (como ainda não tenho), mas poderia enunciar um conjunto de crenças, regras e práticas próprias daquilo que estava aprendendo e fazendo e que uma comunidade reconhecia como ciência, afinal meus artigos estavam sendo aceitos em revistas internacionais. E como isso que fazíamos (e continuamos a fazer) diferencia-se do que não era chamado de ciência? A demarcação da ciência frente a outras formas do conhecimento ocupou (e ocupa) um respeitável time de filósofos da ciência, entre eles, por exemplo, Imre Lakatos (1922-1974), que ainda aparecerá em uma nota nessa coluna.  Mas não é esse, pelo menos diretamente, o assunto desta coluna. No entanto, preciso mencionar que nos manuais de metodologia científica existe sim a preocupação de delimitar o conhecimento científico dos outros tipos de conhecimento: popular, religioso e filosófico; como descrito no capítulo três dos “Fundamentos de metodologia científica” de Marina de Andrade Marconi e Eva Maria Lakatos. Breves definições sobre esses tipos de conhecimento podem ser lidos aí [1], [2], portanto não vou me estender na descrição dessas caixas separadas, mas no que sempre me despertou maior curiosidade: a comunicação entre elas.
Os contatos entre ciência e religião vão, dependendo do representante de cada campo, da hostilidade declarada e beligerante ao diálogo respeitoso, que reconhece os dois territórios do conhecimento. Como exemplo desse último tipo de contato, temos o debate epistolar entre o semiólogo (entre outras coisas) Umberto Eco e o cardeal Carlo Maria Mantini, que ficou conhecido como “Em que creem os que não creem?” [3]. O diálogo é sobre Ética, mas Eco aborda diretamente a ciência em perguntas ao final de uma das suas cartas: “Qual é o estado atual do debate teológico a respeito, agora que a teologia não se mede já com a física aristotélica, a não ser, com as certezas (e as incertezas!) da ciência experimental moderna? Como bem sabe você, sob tais questões não subjaz, unicamente, uma reflexão sobre o problema do aborto, mas também, uma dramática série de problemas novíssimos, como a engenharia genética, por exemplo, ou a bioética, sobre a que hoje todos discutem, sejam crentes ou não. Qual é hoje a atitude do teólogo frente ao criacionismo clássico?” Mantini na carta resposta não aludiu diretamente a essas questões, mas começou a carta reafirmando: “Com toda razão recorda você, ao princípio de sua carta, o objetivo desta conversa epistolar. Trata-se de estabelecer um terreno de discussão comum entre laicos e católicos, confrontando também aqueles pontos nos quais não há consenso”.
Por outro lado, entre conhecimentos filosófico e científico o trânsito é bem mais intenso, ainda que um tanto assimétrico: o meu convívio acadêmico levou-me à percepção de que, em geral, os filósofos se interessam mais pela ciência do que os cientistas pela filosofia, o que é uma pena para estes últimos.
Não é, no entanto, as relações entre ciência e filosofia ou religião a questão central aqui, e sim a relação do conhecimento científico com o conhecimento popular, em particular os saberes tradicionais ou indígenas (indigenous knowledge). São muitas vezes saberes que correm risco de extinção junto com as línguas nas quais (ainda) são transmitidos, mas que, embora sejam “conhecimento não produzidos por meio de métodos de pesquisa tradicionais, podem ter valor científico” [4]. Para não cair na armadilha da mera abstração, seguem três breves exemplos.
O primeiro eu aprendi lendo o artigo citado logo acima, que menciona como algumas tribos na Indonésia escaparam do Tsunami de 2004 (incluindo aí alguns grupos de turistas ocidentais), graças aos conhecimentos tradicionais passados oralmente de geração em geração. Não foi um caso isolado, como o relatório Indigenous Knowledge for Disaster Risk Reduction” [5] mostra em seus 18 estudos de caso. Esses exemplos, se por um lado reconhecem a importância do conhecimento tradicional, por outro lado tem um quê de objeto de estudo da ciência, ou seja, ainda uma assimetria, como nas outras relações.
O segundo exemplo é o dos parabotânicos na Amazônia, identificadores da biodiversidade da floresta, profissional cuja formação parte do conhecimento tradicional e que está em extinção [6]. Nesse caso o conhecimento tradicional não só é reconhecido, mas é estratégico para viabilizar a pesquisa em si e até para que esta tenha credibilidade na comunidade científica internacional.
O último exemplo eu costumo apresentar nas aulas de Física sobre ondas, é uma pesquisa sobre a navegação através da “leitura do formato das ondas” em torno das ilhas Marshall no oceano Pacífico. Na primeira década deste século, as autoridades locais, preocupadas em promover o turismo, buscaram um meio de fazê-lo a partir do conhecimento tradicional de navegação com mapas de treliças de madeira, indicando as ondas e seus formatos, e conchas, identificando as ilhas, que refletem e refratam essas ondas. O sistema é eficiente, pois permite a navegação precisa por centenas de quilômetros, mas esse conhecimento tradicional estava se perdendo, pois poucos nativos ainda o detinham e sem nenhum estímulo para preservá-lo. Como resgatá-lo? Através de pesquisa conjunta entre portadores desse conhecimento tradicional, antropólogos para traduzir esse conhecimento e oceanógrafos com seus modelos computacionais da dinâmica marítima para comparar as ondas do conhecimento tradicional com as ondas da ciência. Resultado duplo: preservação através da ciência ocidental de um conhecimento tradicional, que ajuda a melhorar os modelos computacionais dos oceanógrafos. O artigo “Wave Navigation in the Marshall Islands – Comparing Indigenous and Western Knowledge of the Ocean” [7] é também assinado por Korent Joel, um dos últimos navegadores tradicionais dessas ilhas da Micronésia. Uma rota mais simétrica entre diferentes tipos de conhecimento.


[2] Uma curiosidade: Eva Maria dedica o livro a seu pai Tibor, mas um verbete na Wikipédia (acessado em 15/01/2017) assevera que “É filha do renomado Cientista húngaro e Teórico da Filosofia da Matemática Imre Lakatos. Checar informações assim não deveria fazer parte apenas da ciência.

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