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Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin"
(IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da
Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de
artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria,
dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da
interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da
nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent,
2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as
telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São
Paulo (2010).
Quando cientistas não bastam para fazer ciência
Texto
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Na
minha formação como físico, da graduação ao doutorado, nunca me deparei
com uma disciplina sobre metodologia científica, tema que é mais
presente nas grades curriculares em outras áreas do conhecimento, como
vim a descobrir bem mais tarde. Interessava-me, juntos com alguns outros
colegas naquele longínquo século XX, por filosofia e história das
ciências, mas passamos ao largo de qualquer manual de metodologia
científica. Assim se alguém perguntasse naquela época o que era ciência,
não teria uma resposta pronta (como ainda não tenho), mas poderia
enunciar um conjunto de crenças, regras e práticas próprias daquilo que
estava aprendendo e fazendo e que uma comunidade reconhecia como
ciência, afinal meus artigos estavam sendo aceitos em revistas
internacionais. E como isso que fazíamos (e continuamos a fazer)
diferencia-se do que não era chamado de ciência? A demarcação da ciência
frente a outras formas do conhecimento ocupou (e ocupa) um respeitável
time de filósofos da ciência, entre eles, por exemplo, Imre Lakatos
(1922-1974), que ainda aparecerá em uma nota nessa coluna. Mas não é
esse, pelo menos diretamente, o assunto desta coluna. No entanto,
preciso mencionar que nos manuais de metodologia científica existe sim a
preocupação de delimitar o conhecimento científico dos outros tipos de
conhecimento: popular, religioso e filosófico; como descrito no capítulo
três dos “Fundamentos de metodologia científica” de Marina de Andrade
Marconi e Eva Maria Lakatos. Breves definições sobre esses tipos de
conhecimento podem ser lidos aí [1], [2],
portanto não vou me estender na descrição dessas caixas separadas, mas
no que sempre me despertou maior curiosidade: a comunicação entre elas.
Os contatos entre ciência e religião vão,
dependendo do representante de cada campo, da hostilidade declarada e
beligerante ao diálogo respeitoso, que reconhece os dois territórios do
conhecimento. Como exemplo desse último tipo de contato, temos o debate
epistolar entre o semiólogo (entre outras coisas) Umberto Eco e o
cardeal Carlo Maria Mantini, que ficou conhecido como “Em que creem os
que não creem?” [3]. O diálogo é sobre Ética, mas Eco aborda diretamente a ciência em perguntas ao final de uma das suas cartas: “Qual
é o estado atual do debate teológico a respeito, agora que a teologia
não se mede já com a física aristotélica, a não ser, com as certezas (e
as incertezas!) da ciência experimental moderna? Como bem sabe você, sob
tais questões não subjaz, unicamente, uma reflexão sobre o problema do
aborto, mas também, uma dramática série de problemas novíssimos, como a
engenharia genética, por exemplo, ou a bioética, sobre a que hoje todos
discutem, sejam crentes ou não. Qual é hoje a atitude do teólogo frente
ao criacionismo clássico?” Mantini na carta resposta não aludiu diretamente a essas questões, mas começou a carta reafirmando: “Com
toda razão recorda você, ao princípio de sua carta, o objetivo desta
conversa epistolar. Trata-se de estabelecer um terreno de discussão
comum entre laicos e católicos, confrontando também aqueles pontos nos
quais não há consenso”.
Por outro lado, entre conhecimentos filosófico e
científico o trânsito é bem mais intenso, ainda que um tanto
assimétrico: o meu convívio acadêmico levou-me à percepção de que, em
geral, os filósofos se interessam mais pela ciência do que os cientistas
pela filosofia, o que é uma pena para estes últimos.
Não é, no entanto, as relações entre ciência e
filosofia ou religião a questão central aqui, e sim a relação do
conhecimento científico com o conhecimento popular, em particular os
saberes tradicionais ou indígenas (indigenous knowledge). São
muitas vezes saberes que correm risco de extinção junto com as línguas
nas quais (ainda) são transmitidos, mas que, embora sejam “conhecimento
não produzidos por meio de métodos de pesquisa tradicionais, podem ter
valor científico” [4]. Para não cair na armadilha da mera abstração, seguem três breves exemplos.
O primeiro eu aprendi lendo o artigo citado
logo acima, que menciona como algumas tribos na Indonésia escaparam do
Tsunami de 2004 (incluindo aí alguns grupos de turistas ocidentais),
graças aos conhecimentos tradicionais passados oralmente de geração em
geração. Não foi um caso isolado, como o relatório “Indigenous Knowledge for Disaster Risk Reduction” [5]
mostra em seus 18 estudos de caso. Esses exemplos, se por um lado
reconhecem a importância do conhecimento tradicional, por outro lado tem
um quê de objeto de estudo da ciência, ou seja, ainda uma assimetria,
como nas outras relações.
O segundo exemplo é o dos parabotânicos na
Amazônia, identificadores da biodiversidade da floresta, profissional
cuja formação parte do conhecimento tradicional e que está em extinção [6].
Nesse caso o conhecimento tradicional não só é reconhecido, mas é
estratégico para viabilizar a pesquisa em si e até para que esta tenha
credibilidade na comunidade científica internacional.
O último exemplo eu costumo apresentar
nas aulas de Física sobre ondas, é uma pesquisa sobre a navegação
através da “leitura do formato das ondas” em torno das ilhas Marshall no
oceano Pacífico. Na primeira década deste século, as autoridades
locais, preocupadas em promover o turismo, buscaram um meio de fazê-lo a
partir do conhecimento tradicional de navegação com mapas de treliças
de madeira, indicando as ondas e seus formatos, e conchas, identificando
as ilhas, que refletem e refratam essas ondas. O sistema é eficiente,
pois permite a navegação precisa por centenas de quilômetros, mas esse
conhecimento tradicional estava se perdendo, pois poucos nativos ainda o
detinham e sem nenhum estímulo para preservá-lo. Como resgatá-lo?
Através de pesquisa conjunta entre portadores desse conhecimento
tradicional, antropólogos para traduzir esse conhecimento e oceanógrafos
com seus modelos computacionais da dinâmica marítima para comparar as
ondas do conhecimento tradicional com as ondas da ciência. Resultado
duplo: preservação através da ciência ocidental de um conhecimento
tradicional, que ajuda a melhorar os modelos computacionais dos
oceanógrafos. O artigo “Wave Navigation in the Marshall Islands –
Comparing Indigenous and Western Knowledge of the Ocean” [7]
é também assinado por Korent Joel, um dos últimos navegadores
tradicionais dessas ilhas da Micronésia. Uma rota mais simétrica entre
diferentes tipos de conhecimento.
[1] Existem vários pdfs por aí, como por exemplo: https://docente.ifrn.edu.br/olivianeta/disciplinas/copy_of_historia-i/historia-ii/china-e-india
[2] Uma curiosidade: Eva Maria dedica o livro a seu pai Tibor, mas um verbete na Wikipédia (acessado em 15/01/2017) assevera que “É filha do renomado Cientista húngaro e Teórico da Filosofia da Matemática Imre Lakatos”. Checar informações assim não deveria fazer parte apenas da ciência.
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