Roberto Romano
da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles
“Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo
romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis
Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da
razão” (Editora Perspectiva).
Sobre o sincericídio
Para Roberto Romano, ‘sob a máscara da sinceridade, movem-se o caluniador, o invejoso, o fascista em estado puro”
Texto
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Em
frase célebre sobre a semiótica, campo de estudo muito forte no século
20, Umberto Eco mostra que o maniqueísmo, tendência recente da história
(se a pensarmos em milênios) não tem lugar legítimo na técnica ou ética.
Ele é um desvio da cultura. Recordo o enunciado. "A semiótica é em
princípio a disciplina que estuda tudo o que pode ser usado para mentir.
Se algo não pode ser usado para contar mentira, não pode ser movido
para contar a verdade: de fato, não pode ser usado para 'contar’ coisa
alguma. Penso que a definição de uma 'teoria da mentira' deve ser
tomada como excelente programa compreensivo para uma semiótica geral" (1).
Verdades e mentiras são aprendidas, ampliam-se após habitar a língua de
cada indivíduo, grupo, cidade, país. Wittgenstein considera a mentira
"um jogo de linguagem que precisa ser aprendido como qualquer outro" .
Como filósofo ele adianta que "a linguagem disfarça o pensamento" (2).
Nos debates recentes sobre as fake news, os aspectos definidos por Eco ou Wittgenstein têm sido negligenciados. Muita escrita retoma, nolente volente,
o comportamento maniqueu segundo o qual a veracidade encontra-se
totalmente numa seita – ideológica, religiosa, política – e a prática
mendaz teria seu habitáculo no campo alheio. Semelhante fanatismo gerou
intolerâncias que massacraram milhões na idade moderna. A "boa ética"
só residiria nos que partilham as mesmas crenças, os mesmos gestos, as
mesmas palavras. Quem não segue os mesmos códigos simbólicos,
linguísticos ou estéticos, é inimigo. Tal fonte nutriu um oceano de
doutrinas, entre elas a de Carl Schmitt: o outro é inimigo, lição básica
do fascismo (3).
Vale recordar um hermeneuta que observou, no papel de
vítima, a propaganda nazista e nela percebeu traços de um movimento
oposto, o Iluminismo. No mesmo impulso de Theodor Adorno e seus pares,
ele identificou na escrita das Luzes elementos que exigem precaução
máxima. Trata-se de Erich Auerbach. Ao discutir o estilo de Voltaire,
ele fala de um truque comum da propaganda. O golpe consiste "em iluminar
excessivamente uma pequena parte de um grande e complexo contexto,
deixando no escuro todo o restante que puder explicar ou ordenar aquela
parte, e que talvez serviria como contrapeso do que é salientado; de tal
forma diz-se aparentemente a verdade, pois que o dito é indiscutível,
mas tudo não deixa de ser falsificado, pois que, da verdade faz parte
toda a verdade, assim como a correta ligação das suas partes" (4).
Talvez a noção empregada por Auerbach tenha origem em Hegel. É costumeiro lembrar o dito hegeliano, na Fenomenologia do Espírito,
sobre as partes e o todo, na captura da verdade. Poucos recordam que
no filósofo a verdade é descrita como o delírio das bacantes, roda louca
na qual as partes embriagadas se dissolvem quando extraídas do todo,
temos aí a origem do trecho marxista sobre "o que é sólido se
dissolve". Tudo se resolve em novas totalidades mais amplas e
complexas. O verdadeiro é movimento de vida e morte, nunca experiência
de um só lado. Outro locus hegeliano explicita a diferença
entre o concreto e o abstrato. Concreto é o todo orgânico. Como no caso
de uma árvore: a sua verdade é constituída pelo solo, ar, água, calor –
importa a releitura de Empédocles para seguir os primeiros passos de
Hegel e companheiros, como Hölderlin – raízes, tronco, galhos, folhas,
flores, frutos. Separar alguns momentos ou parcelas é tarefa da
abstração. Hegel mostra que o Todo é passageiro, nunca um dado final no
processo da busca pela verdade. Nos embates entre pessoas, abstrata é a
fala que ataca subjetividades, as retirando do todo em que elas se
movem. É próprio da má fé (tema fascinante, trabalhado em outro sentido
por Jean Paul Sartre) separar o subjetivo, colocando-o como alvo único,
sem passar pelo que o envolve. Um hilariante texto hegeliano mostra até
onde vai a hipocrisia que opera com tais abstrações (Cf. Quem pensa abstrato?, 1807).
Voltemos ao crítico Auerbach. O truque da propaganda é
fácil de ser descoberto "mas falta ao povo ou ao público, em tempos de
tensão, a vontade séria de fazê-lo; quando uma forma de vida ou um grupo
humano cumpriram seu tempo ou perderam prestígio e tolerância, toda
injustiça que a propaganda comete contra eles é recebida, apesar de se
ter uma semiconsciência do seu caráter de injustiça, com alegria
sádica". O estilo rápido de Voltaire, propaganda do sistema capitalista e
das instituições afins, contra o Antigo Regime, serve como plataforma
do pensamento burguês a partir do século 18. Para arrasar o inimigo,
sobretudo com o ridículo, é indispensável o domínio do tempo na escrita.
O tempo rápido serve a Voltaire para caçoar de "quem merece" com
inclemência. O manejo temporal, diz Auerbach, em dias recentes trouxe
"as mais atrozes florações". A propaganda do século 20 acelera o ritmo
das mensagens dirigidas às multidões e também encolhe a extensão da
análise. O uso intenso dos slogans e ditos fulminantes a serviço da
venda e compra de mercadorias, e de seres humanos, adquiriu ares de
vitória decisiva a partir da Guerra Fria. É a era do "I like Ike" e dos
nomes presidenciais em abreviacão, JFK nos EUA, JK no Brasil. A
brevidade vocabular impõe nomes e mensagens. No mesmo passo, na imprensa
o número de palavras por artigos e matérias diminuiu drasticamente.
Após a operação Liliput, na imprensa escrita, veio o encolhimento
temporal no rádio e na TV. Vivemos em tempo voltaireano e nele quanto
mais rapidamente o ridículo é aplicado aos inimigos, maior coesão nas
seitas, mais eficácia nos slogans e palavras de ordem.
No século 18 o ridículo mata. O mercado soberano de
nossos dias engorda a tolice e dela tira partido. Por exemplo, os
acentos freudianos e infantis de alguém que hoje ocupa a Casa Branca. Em
guerra contra a democracia e os inimigos (árabes e latinos sobretudo)
dos EUA, aquele indivíduo não teve dúvidas ao replicar ao governante da
Coreia do Norte que afirmara ter um botão para impor mortes ao país
dominante: "o meu é maior". Conversa de garoto aos 11 anos. Mas
existiria ridículo maior do que o enunciado "Trump presidente?". Só
conheço outro non sense: "Temer presidente". Como disse uma
política brasileira outro dia: “não temos presidente, mas um refém”. O
patrocinador americano de reality show piora a receita. Ao
conversar com parlamentares sobre a imigração, disparou que os
candidatos a entrar nos EUA vêm de países que seriam shithole countries (5).
Ridículo e mentira unem-se desde a primavera humana. Mas o resultado
daquele conúbio é trágico. Rimos com Rabelais, Erasmo e Voltaire,
lamentamos com Hitler e a propaganda ao estilo do tempo rápido, da Blitzkrieg ideológica.
De Platão com a "nobre mentira" a Goebbels (leitor da filosofia grega, em especial da República)
e Oliver North, o general do caso Irã Contras que mentiu ao governo e
ao povo norte-americano, defendendo para si tal "direito" (6),
caminhando para o inefável Trump, a mentira e verdade são, em política e
assembleias religiosas, armas de destruição individual e também em
massa. Na ordem internacional, mentira e ridículo integram a panóplia
bélica e diplomática (7).
Nos casos bélicos intersubjetivos (estado que nunca abandonamos, pedida
a devida venia a Hobbes) a verdade assumiu um novo apelido, após
Rousseau. Quem usa o verdadeiro unilateral para destruir os demais é
"sincero". As "redes sociais" habitadas por "sinceros". Quase todos ali
dizem "a verdade" sobre seus inimigos, e recebem o troco equivalente.
A sinceridade é modo traiçoeiro e dissimulado de
ataque mortal. Ela nem é de fato verdadeira, nem falsa. Nas dobras do
efetivo e do delírio, ela encontra seu conforto. Como você está gorda e
feia! Desculpe, estou sendo sincera.... Como sua universidade é ruim...
como seu país é lastimável, como seu povo é corrompido.... desculpe,
estou sendo sincero! Sob a máscara da sinceridade, movem-se o
caluniador, o invejoso, o fascista em estado puro. Ah, esqueci de dizer,
a sinceridade quer honras de patriotismo, moralidade, ética. Trump é
sincero e seus eleitores partilham tal atitude. Todo fascista é sincero,
até a hora em que, para sua infelicidade, chega o Tribunal de
Nuremberg. O sincero é o hipócrita que seguiu os exércitos mais fortes.
Tal é a sua desculpa, cujo odor é de morte.
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(1) Eco, Humberto: A theory of semiotics, Indiana University Press, 1976.
(2) Na tradução inglesa (Philosophical Investigations I, Basil Blackwell, 1958): Are
we perhaps over-hasty in our assumption that the smile of an unweaned
infant is not a pretence? —And on what experience is our assumption
based? (Lying is a language-game that needs to be learned like any other
one). Victoria Camps, La mentira como presupuesto in El discurso de la mentira, C.C. Del Pino (Ed/), Madrid, Alianza, 1988.Schmitt, C. La notion de politique, théorie du partisan (Paris, Flammarion, 1992
(3) Temos muito a meditar acerca da noção de inimigo, com a onda de ódio contrária à imigração árabe no mundo e na Europa. Em As raizes do Brasil encontramos um elo estranho entre o historiador pátrio e o jurista. Cf.
Márcio Seligman Silva: “Sobre a passagem do registro da cordialidade
para o da hostilidade: o caso Paul Celan –Claire Goll ” na Revista Letras número 32, volume sobre Ética e Cordialidade, 13/05/ 2007
(4) Mimesis, The representation of Reality in Western Literature, Doubleday, 1957.
(5) The Washington Post, 12/01/2018.
(6) Jon Hesk, Deception and Democracy in Classical Athens, Cambridge, 2000.
(7)John J. Mearsheimer: Why leadres Lie (Oxford, 2011). O
nariz de Bush e aliados aumentou com as lorotas (acreditadas pela
imprensa norte-americana e internacional) sobre as “armas de destruição
em massa” de Sadam Hussein.
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