São Paulo, sábado, 20 de outubro de 2001 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Os EUA pedirem menos exibição de Bin Laden na TV atenta contra a liberdade de imprensa? SIM Censura e terrorismo cultural ROBERTO ROMANO "Meu primo: você pode tremer e mudar de cor, reprimir sua respiração no meio de uma palavra, recomeçar e deter-se ainda, como se estivesse perdido e louco de terror?" (Shakespeare, Ricardo 3º) O rei tirânico, nessa passagem da peça, ironiza o símile antigo da política enquanto espetáculo teatral. Nela, os dominados exibem apenas terror, intimidados pelo príncipe. Dentre as coisas nauseantes do universo regido por Ricardo 3º, salienta-se a perda completa da palavra autônoma. Todos se calam diante dele e são cúmplices da própria desgraça e da ruína coletiva. Esse ambiente pestífero fornece as cores das teorias políticas que justificam a censura e a repressão da escrita e do pensamento. Contra ele se insurgiram estadistas e filósofos que definiram a democracia e a liberdade. Para os defensores da repressão, como Hobbes, as pessoas privadas dependem do arbítrio exercido pelo soberano, o único que pode censurar a vida pública. Spinoza nega isso e afirma que o Estado não supõe a perda dos direitos individuais. Ele identifica soberania e povo, soma de indivíduos livres, o que resulta em limites para os governantes. Estes não teriam direitos acima e além dos cidadãos comuns. O pensador não aceita atenuar a liberdade de escrita. Convidado para a Universidade de Heidelberg, ele recusou, pois foi-lhe dito, em carta oficial, que o eleitor palatino lhe daria "ampla liberdade de filosofar, desde que não criticasse a religião estabelecida". A sua réplica serve para todo universitário honesto: "Desconheço os limites do meu pensamento e não posso garantir que nunca irei incomodar a religião estabelecida". Numa época de choque religioso, como a nossa, a lição spinozana mostra-se estratégica. A propaganda oficial norte-americana alardeia que o terrorismo é "islâmico". Na verdade dois fundamentalismos hoje se enfrentam: um se reclama do Alcorão e outro parasita os evangelhos. Entre as crenças, balança o pensamento de quem deve dedicar-se à pesquisa, e não aos slogans das seitas, dentro ou fora do poder estatal. Se é grave a censura que controla a imprensa mundial, a começar pela americana, pior é o silêncio dos universitários diante do estupro à liberdade de pensamento, arrancada com a chantagem do terrorismo, pela direita dos EUA. Spinoza afirma, no "Tratado Teológico-Político", que a censura favorece bandidos e prejudica honestos. O Estado sob censura é o campo do medo e da tristeza, segundo o filósofo. Qualquer regime político, se confisca liberdades, deixa de ser democrático. Lembremos a frase de um pai da nação norte americana: "Quem joga fora a liberdade essencial para obter uma pequena segurança não merece nem liberdade nem segurança" (Benjamin Franklin, em 1759). É crime de genocídio, hoje, aceitar em silêncio a censura e a autocensura que ocorre na maior parte da mídia, reduzindo seu papel ao de mera propagandista. Todas as desculpas para o assassinato da informação pública pressagiam desgraças e servilismo inauditos. De certo modo, todos repetimos a experiência descrita por Shakespeare em "Ricardo 3º", todos, em nossos papéis políticos, parecemos loucos e perdidos pelo terror. A censura na mídia a está matando enquanto forma de pensamento e de pesquisa. A universidade caminha a passos rápidos para aceitar limites à pesquisa e ao debate. Some o direito de busca, de erro, de exame. Entramos no século 21 sob um dos maiores ataques à razão, feito por terroristas de Estado ou de seitas "religiosas". Após o golpe de 1964, feito sob patrocínio dos EUA em nossa terra, ressurgiram a censura, as prisões, a tortura e as violências que desgraçaram o país na ditadura Vargas. Os mesmos personagens, como Filinto Muller (que arrancava confissões aplicando ferros em brasa na pele dos adversários), definiram seu mando soberano. Tudo em nome da "segurança". Muitos jornalistas e universitários ficaram silentes diante da barbárie "cristã e ocidental". Algumas vozes tiveram coragem e ergueram a voz para protestar. Entre elas, a de Carlos Heitor Cony e a de Tristão de Athayde (o católico Alceu de Amoroso Lima). Este cunhou a expressão certa para os atos dos militares no poder: "terrorismo cultural". Ele era um homem lúcido e honesto, ou melhor, um homem. Roberto Romano, 55, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp. |
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