Roberto Romano
da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles
“Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo
romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis
Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da
razão” (Editora Perspectiva).
Terror cultural em novo ataque à liberdade acadêmica
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Um professor que integra a Universidade de Brasília (UnB) apresenta plano de aulas segundo as normas acadêmicas oficiais, mas sofre ameaças de processo judicial e censura. O episódio é inadmissível em terra democrática. Ele evoca a carta de Spinoza ao Eleitor Palatino, que lhe oferecera uma cátedra, “respeitados os limites da religião estabelecida” (1). O pensador recusou a honra com palavras imortais: “ignoro os limites em que minha liberdade filosófica deveria ser contida para não parecer nutrir a vontade de incomodar a religião oficialmente estabelecida. O cisma não vem do zelo religioso ardente, mas das paixões diversas ou amor da contradição que desvia de seu sentido e condena todas as palavras, mesmo se expressam um pensamento reto” (2). O governo brasileiro de facto – se é de iure pode-se discutir – quer impor limites ao pensamento, tarefa da pura força física.
Em política, nomes indicam o que deve ser, não o efetivo. Quando o último foge do modelo idealizado, o termo não mais lhe serve. Os discursos para o salvar acabam em pobre mentira. Se um regime chega a tal ponto, expõe sinais de morte. Assim sucede com a “democracia” (3). Definida como dogma, ela não raro disfarça mandos tirânicos. Benjamin Constant afirmava: “o povo não tem o direito de ferir um só inocente, nem de tratar como culpado um só réu sem provas legais. Ele, pois, não pode delegar tal direito a ninguém” (Sur la souveraineté du peuple). A advertência não impediu muitos liberais de aderir ao poder fascista que exibia apoio popular. O liberalismo atual cede novamente ao fascio ou ao sigma.
A cautela importa dada a polissemia dos vocábulos. Se num regime democrático as oposições perdem o direito de existência, a mendacidade salta aos olhos (4). Avishai Margali aponta Estados e sociedades decentes ou indecentes. Um capítulo nuclear de seu livro é o seguinte: Being Beastly to Humans (5). Sob o poder feroz todos se transformam em bichos com aparência humana. O Estado que só exibe as garras impede adesão racional, pois gera repulsa e pavor. “A única esperança para cada um de nós, de não sermos tratados como bichos pelos nossos semelhantes é que todos os semelhantes (...) experimentem a si mesmos, de imediato, como entes sofredores e cultivem em seu foro íntimo a aptidão para a piedade, que no estado de natureza ocupa o lugar ‘das leis, dos costumes e da virtude’ e sem o exercício da qual começamos a compreender que, no estado de sociedade não pode existir nem leis, nem costumes, nem virtude” (Claude Lévi-Strauss) (6).
O Estado brasileiro, cuja base é uma “sociedade civil” impiedosa, trata como fera o cidadão sem poder e dinheiro (“a gente diferenciada”). A atual equipe do Planalto usa a força para impor medidas odiosas contra os “negativamente privilegiados” (Max Weber). A reforma trabalhista diminui o preço da força de trabalho, aumenta o exército de reserva. Foi banido o aprimoramento dos trabalhadores (7). Os bens nacionais estão à venda, da água às técnicas pagas com dinheiro de impostos da cidadania. Nenhum país abre mão daqueles elementos, mas o patrimônio acumulado é entregue a empresas europeias, norte-americanas, chinesas.
O genocídio indígena renasce no conúbio de ruralistas e governo. A maioria dos jovens mortos é negra. Quilombolas são ameaçados. Os desvalidos teimam em viver, o que exige da polícia mais armas contra eles. Em 2016 o Brasil registou 61.619 mortes violentas. E o lobby parlamentar ligado à indústria de armamentos quer mais vendas aos “clientes”, conduzidas em projetos de “segurança” apresentados ao Congresso. Nos últimos dias foram condenadas mulheres a cuidar de nascituros em celas infectas. Foi preciso o STF para atenuar a barbárie. O governo, para gáudio do agronegócio, tentou abolir regras contra a escravidão. A reforma da Previdência foi adiada apenas. Mas a torneira dos cofres públicos garante apoio do Congresso e da “sociedade civil”.
Práticas de terror estatal são retomadas. Abusos físicos e morais da polícia ressurgem nas invasões de universidades públicas. Em Santa Catarina o reitor da UFSC foi levado ao suicídio. Nada ocorreu para reparar o atentado. A mesma força violou a UFMG em manobra cujo nome caçoa das horas tristes da ditadura civil-militar. “Esperança equilibrista” é música que entoa o lamento dos torturados e banidos porque não aceitaram o arbítrio.
Para aumentar a popularidade o governo inventou novo abuso do monopólio estatal da força física. A intervenção no Rio de Janeiro fica longe dos bairros ricos ou de classe média. Após a tatuagem de números nos campos alemães de concentração, chegam técnicas up to date. O fichamento com foto obrigatória de gente honesta, a reduz ao plano dos bandidos. Inocentes são espremidos entre forças policiais e traficantes. Reféns, seus filhos morrem em escolas, creches, ruas.
A censura ataca o setor universitário, aliada ao inaudito corte de verbas para pesquisas e serviços que ainda garantem um lugar para o Brasil no âmbito mundial. O docente da UnB, indicado no início do presente artigo, propõe examinar em sala de aula os poderes nacionais após a derrubada da Chefe de Estado. Com base em teorias expostas desde Maquiavel até Gabriel Naudé, incluindo a ciência política contemporânea, ele nomeia o impeachment como golpe de Estado. Em vez de responder, por seus defensores acadêmicos, com doutrina e ciência, o governo abre processo judicial com a desculpa de que o professor assumiria teses de um partido político.
O método sequer é novo. O Serviço Nacional de Informação (SNI), para erradicar a oposição à ditadura, tinha escritórios nas reitorias e controlava nomeações, pesquisas, ensino. Fato nacional e internacional, o autoritarismo com véu democrático também opera no Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS, França). Em 2007 um funcionário de “segurança e defesa” vigiava as investigações sociológicas e sociopolíticas “sensíveis”, em especial sobre as dedicadas ao islã. O policial escreveu a pesquisadores para vetar opiniões ou estudos. “A decisão do CNRS deixa o mundo acadêmico perplexo. Seria preciso proibir uma pesquisa pelo medo de que seus resultados desagradem o poder? É o mesmo que estilhaçar os termômetros para garantir que a febre não aumente” (8). Emprestamos do CNRS o jeito autoritário. Globalização do Estado tutor de ideias.
9) Xikito Affonso Ferreira: Histórias de meu avô Tristão, (Azulsol Ed. 2015).
10) J.G. A. Pocock: The machiavellian Moment. Florentine political though and the Atlantic Republic Tradition.(Princeton. Univ. Press, 2003).
Um professor que integra a Universidade de Brasília (UnB) apresenta plano de aulas segundo as normas acadêmicas oficiais, mas sofre ameaças de processo judicial e censura. O episódio é inadmissível em terra democrática. Ele evoca a carta de Spinoza ao Eleitor Palatino, que lhe oferecera uma cátedra, “respeitados os limites da religião estabelecida” (1). O pensador recusou a honra com palavras imortais: “ignoro os limites em que minha liberdade filosófica deveria ser contida para não parecer nutrir a vontade de incomodar a religião oficialmente estabelecida. O cisma não vem do zelo religioso ardente, mas das paixões diversas ou amor da contradição que desvia de seu sentido e condena todas as palavras, mesmo se expressam um pensamento reto” (2). O governo brasileiro de facto – se é de iure pode-se discutir – quer impor limites ao pensamento, tarefa da pura força física.
Em política, nomes indicam o que deve ser, não o efetivo. Quando o último foge do modelo idealizado, o termo não mais lhe serve. Os discursos para o salvar acabam em pobre mentira. Se um regime chega a tal ponto, expõe sinais de morte. Assim sucede com a “democracia” (3). Definida como dogma, ela não raro disfarça mandos tirânicos. Benjamin Constant afirmava: “o povo não tem o direito de ferir um só inocente, nem de tratar como culpado um só réu sem provas legais. Ele, pois, não pode delegar tal direito a ninguém” (Sur la souveraineté du peuple). A advertência não impediu muitos liberais de aderir ao poder fascista que exibia apoio popular. O liberalismo atual cede novamente ao fascio ou ao sigma.
A cautela importa dada a polissemia dos vocábulos. Se num regime democrático as oposições perdem o direito de existência, a mendacidade salta aos olhos (4). Avishai Margali aponta Estados e sociedades decentes ou indecentes. Um capítulo nuclear de seu livro é o seguinte: Being Beastly to Humans (5). Sob o poder feroz todos se transformam em bichos com aparência humana. O Estado que só exibe as garras impede adesão racional, pois gera repulsa e pavor. “A única esperança para cada um de nós, de não sermos tratados como bichos pelos nossos semelhantes é que todos os semelhantes (...) experimentem a si mesmos, de imediato, como entes sofredores e cultivem em seu foro íntimo a aptidão para a piedade, que no estado de natureza ocupa o lugar ‘das leis, dos costumes e da virtude’ e sem o exercício da qual começamos a compreender que, no estado de sociedade não pode existir nem leis, nem costumes, nem virtude” (Claude Lévi-Strauss) (6).
O Estado brasileiro, cuja base é uma “sociedade civil” impiedosa, trata como fera o cidadão sem poder e dinheiro (“a gente diferenciada”). A atual equipe do Planalto usa a força para impor medidas odiosas contra os “negativamente privilegiados” (Max Weber). A reforma trabalhista diminui o preço da força de trabalho, aumenta o exército de reserva. Foi banido o aprimoramento dos trabalhadores (7). Os bens nacionais estão à venda, da água às técnicas pagas com dinheiro de impostos da cidadania. Nenhum país abre mão daqueles elementos, mas o patrimônio acumulado é entregue a empresas europeias, norte-americanas, chinesas.
O genocídio indígena renasce no conúbio de ruralistas e governo. A maioria dos jovens mortos é negra. Quilombolas são ameaçados. Os desvalidos teimam em viver, o que exige da polícia mais armas contra eles. Em 2016 o Brasil registou 61.619 mortes violentas. E o lobby parlamentar ligado à indústria de armamentos quer mais vendas aos “clientes”, conduzidas em projetos de “segurança” apresentados ao Congresso. Nos últimos dias foram condenadas mulheres a cuidar de nascituros em celas infectas. Foi preciso o STF para atenuar a barbárie. O governo, para gáudio do agronegócio, tentou abolir regras contra a escravidão. A reforma da Previdência foi adiada apenas. Mas a torneira dos cofres públicos garante apoio do Congresso e da “sociedade civil”.
Práticas de terror estatal são retomadas. Abusos físicos e morais da polícia ressurgem nas invasões de universidades públicas. Em Santa Catarina o reitor da UFSC foi levado ao suicídio. Nada ocorreu para reparar o atentado. A mesma força violou a UFMG em manobra cujo nome caçoa das horas tristes da ditadura civil-militar. “Esperança equilibrista” é música que entoa o lamento dos torturados e banidos porque não aceitaram o arbítrio.
Para aumentar a popularidade o governo inventou novo abuso do monopólio estatal da força física. A intervenção no Rio de Janeiro fica longe dos bairros ricos ou de classe média. Após a tatuagem de números nos campos alemães de concentração, chegam técnicas up to date. O fichamento com foto obrigatória de gente honesta, a reduz ao plano dos bandidos. Inocentes são espremidos entre forças policiais e traficantes. Reféns, seus filhos morrem em escolas, creches, ruas.
A censura ataca o setor universitário, aliada ao inaudito corte de verbas para pesquisas e serviços que ainda garantem um lugar para o Brasil no âmbito mundial. O docente da UnB, indicado no início do presente artigo, propõe examinar em sala de aula os poderes nacionais após a derrubada da Chefe de Estado. Com base em teorias expostas desde Maquiavel até Gabriel Naudé, incluindo a ciência política contemporânea, ele nomeia o impeachment como golpe de Estado. Em vez de responder, por seus defensores acadêmicos, com doutrina e ciência, o governo abre processo judicial com a desculpa de que o professor assumiria teses de um partido político.
O método sequer é novo. O Serviço Nacional de Informação (SNI), para erradicar a oposição à ditadura, tinha escritórios nas reitorias e controlava nomeações, pesquisas, ensino. Fato nacional e internacional, o autoritarismo com véu democrático também opera no Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS, França). Em 2007 um funcionário de “segurança e defesa” vigiava as investigações sociológicas e sociopolíticas “sensíveis”, em especial sobre as dedicadas ao islã. O policial escreveu a pesquisadores para vetar opiniões ou estudos. “A decisão do CNRS deixa o mundo acadêmico perplexo. Seria preciso proibir uma pesquisa pelo medo de que seus resultados desagradem o poder? É o mesmo que estilhaçar os termômetros para garantir que a febre não aumente” (8). Emprestamos do CNRS o jeito autoritário. Globalização do Estado tutor de ideias.
É impossível respeitar um ministério dedicado ao plano educacional, mas exposto ao deboche por enobrecer um performer
pornográfico. O indecoro não reside apenas no homenageado. Obscena é a
censura ao ensino universitário. Tais práticas retomam o terror
cultural denunciado por Tristão de Athayde após 1964 (9).
Elas mimetizam o Decreto 477, o AI-5 aplicado à universidade. Todos
se lembram de Athayde, mas sumiu o nome dos censores e policiais que
estupraram a liberdade de cátedra. Ninguém guardará o nome do arteiro
que recebeu honras ministeriais, poucos recordarão a autoridade
censória. Mas a maioria saberá quem foi Luiz Carlos Cancellier de
Olivo. Serão honrados os que, nos campi, com
Luis Felipe Miguel defendem o exame sem limites dos fatos e ideias,
apesar dos Autos-de-fé. Existem momentos fortes e débeis na história dos
povos (10). O agora brasileiro será entendido como a era de um poder estatal terrorista.
1) Carta de Fabritius a Spinoza (16/02/1673).
2) Resposta de Spinoza a Fabritius (30/03/1673).
3) L. Canfora: La démocratie, histoire d’une idéologie (Paris, Seuil, 2006.
4) C. Castilla del Pino (org.) : El discurso de la mentira (Madrid, Alianza, 1988.
5) The Decent Society (London, Harvard Univ. Press, 1996).
6) Anthropologie structurelle, Deux, cit. por E. Fontenay :Le silence des bêtes, la philosophie à l’épreuve de l ‘animalité, Ed. Fayard, 1998, p. 483.
7) “Pais tem 5 milhões em busca de um emprego há pelo menos um ano”, Valor, 26/02/2018, p. A-3.
8) T. Todorov: “Menaces sur la démocratie”, Le Monde, 14/11/2009.9) Xikito Affonso Ferreira: Histórias de meu avô Tristão, (Azulsol Ed. 2015).
10) J.G. A. Pocock: The machiavellian Moment. Florentine political though and the Atlantic Republic Tradition.(Princeton. Univ. Press, 2003).
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