Revista Caros Amigos entrevista com Roberto Romano
Esta
entrevista caiu como bomba na academia e me trouxe cortes de bolsas,
para mim e meus orientandos, perseguições de partidos políticos, inclusive de esquerda. Ao
observar a colusão dos dois lados nos dias de hoje, sorrio. Às vezes me
perguntam o preço da integridade. Um dos custos é ouvir militantes
enceguecidos (o que é quase tautologia) afirmando que no período FHC eu
nada fiz para criticar a política dominante de então... Republico esta
entrevista, extraída do site da Revista Caros Amigos,
porque nela, além das críticas ao governo FHC, encontram-se debates
sobre a universidade e sobre o Brasil que podem servir como pista de
estudo para os mais jovens.
Roberto Romano
Revista Caros Amigos entrevista com Roberto Romano
Este filósofo, professor da Unicamp, sabe e sente na pele o que está acontecendo com a universidade brasileira. O quadro é mais que comprometedor, ultrapassa o limite da falta de responsabilidade. E só não vê quem não quer.
Sérgio de Souza - Como começa sua vida, professor?
Roberto Romano - Uma parte da minha família é do Rio Grande do Sul, que subiu e que sumiu talvez no ar, não sei onde. E outra parte é de caipiras de Tatuí e Itapetininga, que desceu e se encontrou no norte do Paraná, onde nasci e vivi boa parte da infância e adolescência. E depois São Paulo, onde fiz parte de movimentos estudantis, de movimentos católicos, de JEC inicialmente. E por isso fui parar nos dominicanos. Fui dominicano doze anos, saí e essa é a minha vida.
Marina Amaral - O senhor foi atraído pela filosofia nessa época dos dominicanos ou depois?
Roberto Romano - Não, bem antes. Tínhamos em Marília um professor chamado Ubaldo Puppi, que lecionava filosofia e era também um líder católico de esquerda, foi preso em 1964. Quando surgiu a AP, a Ação Popular, nós todos que gravitávamos ao redor do professor Puppi ficamos apaixonados pela filosofia.
Marina Amaral - E qual a relação entre o convento e o seu interesse pela filosofia?
Roberto Romano - No convento dominicano iria fazer estudos teológicos apenas para ordenação e não para a vida confessional, porque eu disse que queria fazer filosofia mesmo. Então me autorizavam, como a vários outros, a fazer filosofia na USP. E fizemos. Depois iria fazer o doutorado em filosofia pela ordem, na Suíça, com o frei Carlos Josaphat.
Marina Amaral - Isso foi quando?
Roberto Romano - Isso foi em 1967, 68 e 69, fiz o vestibular da USP, passei, mas aí veio um ano de noviciado, quando a pessoa é proibida de sair do convento etc., depois fui preso em dezembro de 1969, passei um ano na cadeia, e aí então voltei para a universidade. E acabei fazendo doutorado na École des Hantes Études de Paris.
José Arbex Jr. - Como foi a sua passagem do cristianismo do convento para a militância da AP?
Roberto Romano - Fui da AP antes do convento.
Marina Amaral - O senhor tem sido um dos maiores críticos do ensino superior no Brasil e até usou a expressão "genocídio programado"...
Roberto Romano - É muito interessante que comecemos a falar de universidade, porque o que aconteceu nestes últimos seis anos no Brasil foi um desmonte programado, intencional, racional, de todo um sistema de produção de saberes. O ministro Paulo Renato chegou a dizer na revista Exame que seria ótimo imitar a Coréia, não incentivar cursos de pós-graduação no país e mandar gente, por exemplo, para Harvard, porque era mais barato. Isso esconde o quê? Esconde o desmonte dos laboratórios, esconde a produção de remédios, esconde a pesquisa sobre AIDS, sobre o câncer, sobre uma série de coisas que estavam sendo feitas aqui. Há certos cientistas, nada radicais, como o senhor Ésper Cavalheiro, pró-reitor da Universidade Federal Paulista, que diz: "O dinheiro do Pronex (Programa Nacional de Excelência) não vem e eu tenho tecido cerebral apodrecendo no laboratório". Isso eu chamo de genocídio programado. Porque é impossível que essas pessoas que estão no governo, a começar pelo presidente da República, não saibam o que estão fazendo. Você pode até ser condescendente com pessoas como Collor, que é um menino rico do Nordeste, um sinhozinho, e que tem aquela cultura para enganar trouxa, fala muitas línguas... Agora, a formação do Fernando Henrique não lhe permite dizer que não sabia. Portanto, ele e o seu ministério, a começar pelo ministro Paulo Renato, têm uma responsabilidade muito grande sobre o que está acontecendo. Ao abraçar o Antônio Carlos Magalhães, e ao abraçar essa via do possível, o que fez ele? Escolheu o caminho da tradicional dominação brasileira, violentíssima, paternalista e mentirosa. Fui este ano a Salvador para dar uma palestra, no dia do aniversário do Antônio Carlos Magalhães. Me senti mal. A mais de 5 quilômetros da casa desse senhor, havia faixas e mais faixas de municípios não sei das quantas com os dizeres "o município tal está prostrado aos pés do Antônio Carlos Magalhães", uma coisa assim terrível. E, quando outro, o ministro Francisco Weffort, que tem duas teses sobre populismo e portanto sabe o que está falando, diz que Antônio Carlos Magalhães tem condições de conquistar a simpatia popular, isso para mim é crime. Não tem outro nome. Existe uma pesquisa do professor José Arapiraca, já falecido, da Universidade Federal da Bahia, interessantíssima, sobre o nome das escolas do Nordeste e da Bahia. Então, "Padre Vieira", trinta escolas, "Antônio Carlos Magalhães", trezentas e cinqüenta e poucas escolas. (risos) Isso é roubo do patrimônio simbólico público!
Sérgio de Souza - Em que nível se daria o genocídio programado?
Roberto Romano - Se alguém conhece a estrutura de dominação de classe do Brasil, se conhece a irresponsabilidade das elites dirigentes em relação à população, e intencionalmente desmonta laboratórios, como aconteceu infelizmente aqui em São Paulo, qualquer visita ao Butantã, por exemplo, já dá idéia do que está por trás. Quer dizer, essa pessoa, vou lhe dar outro nome, que não é muito de esquerda mas infelizmente é um dos elementos essenciais do governo Covas, o senhor Ioshiaki Nakano, teve o cinismo de dizer a um grupo de cientistas: "Hoje, na era da Internet, a gente não precisa mais de institutos de pesquisa aqui no Brasil. Apareceu uma moléstia, você acessa a Internet, vem o remédio e está tudo resolvido". (risos) Isso não é genocídio programado?
José Arbex Jr. - Professor, uma postura que acho admirável no professor Milton Santos é quando ele fala que o intelectual é um traidor. É aquele que trai as expectativas que depositam nele em obediência unicamente a suas próprias convicções. Analisando, por exemplo, o que os intelectuais estão fazendo na USP ou na Unicamp, fico abismado com a paralisia geral, há uma desarticulação total na universidade. Por que isso?
Roberto Romano - Concordo em gênero, número e caso com o professor Milton, em todas as atitudes, e digo mais: sempre repito, para irritação dos meus colegas, que não existe instrumento mais flexível no universo do que a espinha dos intelectuais. (risos) Por exemplo, a questão dos direitos humanos. Vou dizer coisas que aconteceram. Anos atrás, fui procurado pela Anistia Internacional para servir como intermediário junto às universidades de São Paulo em relação a um programa de educação para os direitos humanos. Diziam eles: "Não somos pedagogos, psicólogos, filósofos ou sociólogos, somos liberais. Mas temos algum dinheiro e queremos fazer livros e programas etc. Então precisaríamos da assessoria dessas pessoas".. Procurei na Unesp as pessoas que poderiam dar andamento ao projeto, e ela convocou uma reunião para discutir com o pessoal da Anistia Internacional. Dessa reunião resultaram alguns grupos de estudo. Boa parte deles, como tenho uma língua horrorosa, mesmo assim ficou um pouco atraída porque iria existir dinheiro para a publicação, mas em todo caso estavam lá.
Sérgio Pinto de Almeida - Quem sabe, umas passagens aéreas também. (risos)
Roberto Romano - Há um autor que diz isso, que as universidades de hoje estão se transformando no seguinte: a pessoa mais importante é o gerente de recursos, e os professores todos são globetrotters que vão vender o logotipo pelo mundo afora. Bom, no caso da USP eu não procurei, porque lá existem grupos de estudos contra a violência, pela consciência negra etc., enfim, falei: "Não é necessário, o pessoal da Anistia que entre novamente em contato com eles". E fui à Unicamp, a minha universidade. Falei com o pró-reitor de pós-graduação, José Dias, que me indicou todos os diretores que poderiam estar interessados, sobretudo da área de humanas. Além do que, conheço bastante a universidade. Pois bem, a Faculdade de Educação da Unicamp recebeu o pessoal da Anistia, numa reunião de congregação, durante cinco minutos, o presidente, que era o diretor, disse: "Agora acabou, que vamos tratar agora de assuntos sérios".. E o pessoal da Anistia saiu sem nada, nada foi discutido, nada foi feito. Mas no meu instituto foi pior. Ele é coalhado de gente de esquerda, gente que escreve livros de direitos humanos. E a congregação do instituto se recusou a receber a Anistia Internacional porque não era um "assunto acadêmico", e numa congregação só se conversam assuntos acadêmicos. Diante da recusa, procurei a diretora do instituto, a professora Mariza Correia, antropóloga, pensando: "Pelo menos uma conversa com a diretora do instituto, já que a congregação não quer conversar".. Chegamos na porta do gabinete da diretora, e demos com o aviso: "Audiências todas canceladas, porque estamos discutindo as bolsas da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior)". Meti o pé na porta, entrei berrando feito um italiano e disse: "Pelo menos em cinco minutos a senhora vai ceder". Aí cedeu. Agora, sabe quando foi isso? Isso foi uma semana depois do Carandiru.
José Arbex Jr. - Nossa!
Roberto Romano - Então, quando você fala de ética, tenho algum problema de ordem conceitual. Ética, no sentido aristotélico, no sentido hegeliano, é o conjunto de hábitos físicos e mentais que foram produzidos historicamente e que se tornaram automáticos, de tal modo que as pessoas fazem e não têm consciência. Por exemplo, a ética do trânsito brasileiro é das mais hediondas do mundo, mas é ética. Distingo isso daquilo que chamamos de consciência moral. Então, nesse sentido, a ética intelligentsia brasileira é a ética de servir ao sinhozinho. Essa é a ética, a de produzir uma imagem de si como bastante radical para ter condições de negociar depois uma adesão retumbante.
Milton Santos - Não será também a ética da subserviência à intelligentsia forânea hegemônica?
Roberto Romano - Ah, sim, o senhor pôs o dedo na ferida: temos uma intelligentsia que coloca para si mesma o padrão internacional, e que vive aqui num eterno banzo de uma França não existente. Enquanto isso, convive muito bem com a casa-grande.
Leo Gilson Ribeiro - O senhor não acha que os exemplos semeados por Simone de Beauvoir, Sartre, opostos à covardia Merleau-Ponty, durante o período de ocupação da França, também não serviram de parâmetro para muitos intelectuais, entre aspas, brasileiros agirem de maneira aética?
Milton Santos - Eu queria fazer uma interrupção. Serão intelectuais mesmo ou só letrados? Acho que houve uma multiplicação do número de letrados, e uma redução do número de intelectuais.
Roberto Romano - É verdade, essa distinção sartriana acho fundamental. Existem os filósofos, os parafilósofos – que trabalham todo dia –, os pensadores e os ideólogos. Os filósofos são aqueles que criticam, que abrem caminho, que se arriscam, que arriscam o erro, isso é um elemento fundamental. Não existe pensamento filosófico ou científico sem direito de errar. E esse direito está sendo negado pelo tipo atual de avaliação da universidade. Você tem de acertar sempre, é a fábrica de pãozinho, a receita foi dada, um mestrado é feito em dois anos e meio, três anos, e um doutorado em quatro. E dane-se quem não fez isso aí. E na avaliação também da produção teórica.
Milton Santos - Eventualmente, talvez a gente pudesse cruzar com a questão do totalitarismo, acho que foi levantado que na vida acadêmica isso hoje tem um papel muito forte. Totalitarismo mesmo.
Roberto Romano - O senhor acha?
Milton Santos - Acho, sim.
Sérgio Pinto de Almeida - Deixa eu colocar uma provocação no ar, que é o seguinte: há uma fé nas pessoas de que existem sinais claros de descontentamento na sociedade. No caso do meio universitário – não vamos nos restringir ao intelectual da colocação do professor Milton, mas no meio acadêmico –, quando o senhor conta um episódio tão patético como esse da Anistia indo à Unicamp, quando a gente vê uma série de manisfestações isoladas de professores, pergunto: não é possível esses professores, um da Unicamp, um da Unesp, um da UFRJ etc., criarem uma instância mas não burocrática, um fórum de discussão com uma programação que possa ser levada de forma mais sistemática, ordenada, por meio de encontros, de seminários, uma programação que possa ter alguma representatividade, algum percurso pelo país? Será que essa também burocracia da universidade não restringe a ação dos descontentes?
Roberto Romano - Acho que sim. Talvez por isso o professor Milton esteja falando de totalitarismo hoje na universidade. Porque as coisas são dadas, o pacote é dado, e o modo de executar e de avaliar são dados. São a priori, e você tem de levar em conta a priori. E, se não leva em conta, você tem sempre o bate-estaca de plantão, que está ali do lado. Quer dizer, fiz parte da avaliação da CAPES deste ano da Filosofia.
Milton Santos - Filosofia da USP ou do Brasil inteiro?
Roberto Romano - Do Brasil todo. Até agora, o comitê de avaliação era soberano. A partir deste ano, não, você tem acima dos avaliadores um conselho superior. E esse conselho superior estabeleceu determinados parâmetros do que é ciência, do que é pesquisa, do que não é etc. Antes, os avaliadores tinham sempre a possibilidade de se comunicar com os programas e dizer: "Olha, está faltando tal coisa, tal dado etc.".. Agora chegamos e estava tudo no computador, o que existia eram dados do computador. E antigamente as notas eram A, B, C, A+, também era uma bobagem, mas enfim... Aí recebemos a seguinte ordem: "A nota será numérica, de 0 a 7; 7 apenas aqueles programas que tenham condições de ‘concorrer internacionalmente’ (ri) em termos de produção científica".. E o que tínhamos eram os dados do computador. Não existiam pessoas, não existiam instituições, não existia nada, existiam números. Publicou cinqüenta artigos, foi a não sei quantos não sei o que etc. etc. e o peso específico. E um dos elementos que contam é o tempo de titulação dos alunos. Então, se um programa, por exemplo, levou em média quatro anos e meio, ele perde pontos. Note, não sou fanático da qualidade, acho que quantidade também tem um elemento muito importante. Mas você absolutamente recusa esse critério, a possibilidade do erro. Quer dizer, um menino vai fazer doutorado na área de biologia. Ele parte de um conhecimento, ele tem informes, ele tem um orientador que é uma pessoa responsável etc. etc. Mas ele não vai programar o sistema lógico restrito. Ele vai encontrar elementos que são imponderáveis, que podem inclusive colocar por terra todo o aparato intelectual que ele movimentou na produção do projeto. E vai ter de recomeçar, e muitas vezes é dessa maneira que se faz ciência. Você nega aquelas verdades estabelecidas ou mostra que aquelas verdades não abrangem todo o real. Ora, isso está negado, porque, se alguém ficar mais cinco meses revendo a sua tese, às vezes nem revendo hipóteses mas revendo a própria tese, o seu programa perde pontos. Havia um sistema de cooptação do número de bolsas com a nota da CAPES, que agora está desvinculado. Agora, você não tem mais relação entre a produção e a nota. E recursos. Antigamente, se um programa obtinha nota A, ganhava direito a determinado número de bolsas. Hoje, não, ele pode ter nota 7 e esse direito não está garantido, porque o conselho superior vai decidir.
Marina Amaral - E quem é esse conselho superior?
Roberto Romano - O conselho superior tem sumidades que me dispenso de dizer o nome, porque...
Marina Amaral - Mas são reitores, pessoas ligadas ao governo?
Roberto Romano - Que são ligadas ao governo, evidentemente. Mas que haja grande refinamento intelectual... Alguns até têm uma formação boa, é uma produção boa mas são de uma arrogância! Vou dar um exemplo: no caso da Filosofia, não demos nenhum 7, demos nota 6 para seis programas. Aí recebemos um papel assim, sem timbre, sem nada, onde uma das pessoas, que agora é assessora do Bresser Pereira no CNPq, redigia assim: "Senhor coordenador e membros. Não é possível que tais e tais programas - no caso, Federal do Rio Grande do Sul, Federal do Rio de Janeiro e PUC do Rio de Janeiro – sejam nota 6, porque não tem o número de publicações adequado. Providencie sobre isso". E nem assinado!
Leo Gilson Ribeiro - É como na universidade americana: publique ou pereça?
Roberto Romano - É pior. Aqui eles têm essa exigência. Agora, como você pode chegar a publicar aqui no Brasil? Quais são as condições de publicação? As editoras universitárias são poucas, a grande maioria não tem pessoal qualificado – e aí quero destacar uma honrosa exceção, a editora da Unesp, que é muito boa – e as editoras privadas ou não têm capital ou não têm interesse em publicar. Então, isso eu não teria coragem de chamar de totalitário, mas chamaria de autoritarismo atroz.
Marco Frenette - Professor, nessa dificuldade de publicação não entra um pouco também a linguagem hermética, e às vezes extremamente confusa até para os próprios acadêmicos?
Roberto Romano - Isso também.
Marco Frenette - Costumo pegar livros que são simplesmente ilegíveis, e isso inviabiliza a publicação para um público um pouco maior que o acadêmico.
Roberto Romano - Essa é uma condição para a formação das quadrilhas universitárias. Aliás, a quadrilha que deu certo foi a dos economistas.
José Arbex Jr. - Deu certo?
Roberto Romano - Deu certo, porque estão acabando conosco.
Marina Amaral - Para eles, deu certo; pra nós, não.
Roberto Romano - Você produz o idioleto, que só seria dominado pelos que seriam exímios naquela área. Então, esse idioleto é o filosofês, é o sociologuês, é o antropologuês etc., e o economês. Aí, o sujeito usa esse negócio, e isso é o que possibilita muita picaretagem e receber muito dinheiro supostamente em cima de pesquisa. Agora, acontece que, quando isso é traduzido em livro, evidente que o grande público não é composto pelos elementos da quadrilha. Você tem um público muito heterogêneo, que pode, digamos assim, não concordar com essa linguagem. Bom, aí dana-se.
Marco Frenette - Ele se vê obrigado a escrever nessa linguagem para ter um mínimo...
Roberto Romano - Para ter o reconhecimento dos seus pares. E para que o assessor, quando bater o olho em três palavras-chaves... Tem até palavra-chave! Isso eu acho que é uma coisa...dizem que é para facilitar a consulta. É nada!
Milton Santos - Agora, os que são normais, desculpe a pergunta, não deveriam se recusar a comparecer nesses comitês?
Roberto Romano - Acho que sim, eu...
Milton Santos - Não é nada direto.
Roberto Romano - Não, é verdade, o senhor tem toda a razão.
Milton Santos - Há dez anos que não vou lá. A minha discordância com a sua observação de agora é o tempo, porque há dez anos que vi que é impossível estar lá, que esse processo já estava se delineando há dez anos. De indução, e agora de um consenso que permitiu que o senhor fosse lá, e que ao meu ver não deveria ter ido.
Roberto Romano - Confesso ao senhor que fiquei bastante preocupado pelo fato de ir, e pelo fato de ter sido convidado. O senhor tem razão, porque não poupo...
Sérgio Pinto de Almeida - Ganha para ir?
Roberto Romano - Você ganha a passagem, o hotel, o lanche no meio da tarde.
Marina Amaral - E essa CAPES é constituída como?
Roberto Romano - Ela é uma instituição do Ministério da Educação, e teve como função inicial justamente melhorar o padrão de formação dos professores, dos pesquisadores.
Milton Santos - Foi o Anísio Teixeira que idealizou isso, não foi?
Roberto Romano - Anísio Teixeira. E pouco a pouco ela começou a assumir uma atitude de financiadora.
Milton Santos - De policiamento do trabalho.
Sérgio Pinto de Almeida - De distribuição de verbas também.
Roberto Romano - Sim, sobretudo de distribuição de verbas. Bolsas de estudo, dinheiro para projetos, um projeto de curso, de trabalho etc.
José Arbex Jr. - O senhor não acabou de responder a pergunta do Sérgio Pinto sobre a articulação de professores que tenham uma percepção crítica...
Roberto Romano - O problema é que não sei o que acontece do governo Sarney pra cá... Sei um pouco, tinha instrumentos de intimidação, a Rede Globo, essas chantagens todas, isso eu sei, mas acho que é alguma coisa um pouco mais complexa. Precisaríamos conversar um pouco mais sobre isso. Mas não chega a existir a força para as pessoas se reunirem. No mês retrasado estive em Santa Catarina, num fórum de pesquisa da Federal de Santa Catarina. E é uma coisa interessante, porque as pessoas estão chegando a um ponto que nem sequer para conseguir esses recursos, ou para entrar em contato com os fornecedores de recursos, se reúnem mais. No ano passado fiz cinqüenta viagens pelo Brasil inteiro, falando da questão da autonomia universitária, criticando a política do governo etc. Não que eu esteja falando do Ibope, mas normalmente as audiências não passam de quinze a vinte pessoas, em mesas-redondas com gente de peso nacional e internacional. E nessa de Santa Catarina tinha mais gente na mesa do que no plenário! Com a seguinte mudança: na mesa, fora eu, que não tinha peso nenhum do ponto de vista político-institucional, estavam o diretor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), o diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul e o diretor científico daquilo que eles chamam de fundação, lá de Santa Catarina. Sabe, então, nem os puxa-sacos estão se reunindo mais. (risos)
Marina Amaral - O senhor está dizendo que a universidade não debate mais?
Roberto Romano - Não, e existem meios e ilusões que estão alimentando esse estado de coisas. Na Unicamp, quando o Paulo Renato era o reitor, desenvolveu a idéia de fazer a universidade assim, (faz um desenho), quer dizer, a Unicamp é uma bolinha e os núcleos de pesquisa ficariam na periferia. Então, cada núcleo de pesquisa em cada área arrecadaria recursos do Estado ou da iniciativa privada para as pesquisas, de tal modo que as pessoas desse grupo de pesquisa estariam liberadas da servidão universitária, constitucionalística etc. etc. Fiz parte de um deles, não por opção minha, mas porque era chefe do departamento, e o chefe do departamento tinha de fazer parte do conselho do núcleo de estudo de políticas públicas. Mas pedi demissão, dizendo: "O departamento que mande outra pessoa" – justamente, a partir do primeiro relatório sobre o governo Montoro. Se vocês forem na Unicamp, peçam esse primeiro relatório e vejam o que é aquilo. É uma peça de propaganda pura e simples. Onde a estatística foi falseada etc. etc., no estilo pior do ideólogo, enfim, esses grupos. Então, haveria na física, na engenharia etc. etc., e a universidade seria reduzida aos professores que dariam aulas e que, portanto, não fariam pesquisas. Isso deu errado porque o Plano Cruzado deu no que deu. Depois veio o Plano Collor, e esses núcleos ficaram meio fantasmáticos na Unicamp. Com a vinda do Pronex, as pessoas que faziam parte desses núcleos adquiriram uma esperança nova. "Virá o dinheiro do Pronex, somos excelentes" etc. Então, você tem espaço para os excelentes dentro dos prédios, eles são considerado excepcionais etc. etc. Veja, o que acontece quase sempre é que, quando não há essa defesa ou essa permanência dentro dos quadros mínimos do que seria uma universidade, os grupos procuram a solução pessoal. E correm atrás dessa ilusão. Então, no caso, durante quatro anos, o Pronex serviu exatamente para abafar a possibilidade de você reunir as pessoas para discutir a universidade no sentido exato da palavra. Eles não estavam interessados na universidade.
Marco Frenette - Não seria possível pensar a universidade de uma tal maneira que quebrasse esse isolamento? Porque os produtores são os professores. E o aluno sofre muito. Universidade pública, ou privada, o que acontece é que se enche uma sala com cinqüenta alunos, e a pessoa se forma em letras e você pergunta de um Schiller, um Goethe, ele não sabe localizar esse escritor. Como o senhor vê essa condição da universidade como fornecedora de conhecimento para os alunos?
Roberto Romano - Vou dizer uma coisa que é meio complicada, mas não gosto de pedagogo. Sobretudo não gosto das faculdades de educação. Chamo a Faculdade de Educação da Unicamp de Pentágono, (risos), não por causa de o prédio ter cinco pontas, mas porque ela domina praticamente toda a atividade docente, da graduação à pós, e a avaliação também, criando situações tragicômicas. Por exemplo, um médico que trabalhe com seus estudantes numa enfermaria, ensinando etc., não é promovido na Unicamp porque não tem o número de horas-aula. A hora-aula é a terminologia do flanelógrafo, quer dizer, uma sala com aquele negócio lá, aquilo é hora-aula. Os padrões são esses. A linguagem é muito reveladora. Temos "grades curriculares" não é por acaso. O próprio Schelling, no momento em que era ainda meio fã da Revolução Francesa, teceu considerações sobre o ensino na universidade alemã e dizia: "Mas quem fez os currículos, baseado em que, para quem?" Quer dizer, o jovem entra e tem de seguir aquelas cadeiras, aquelas disciplinas – o nome também é disciplina –, e quando ele sai está com aquelas disciplinas na cabeça e no corpo. Mas isso não tem quase nada mais a ver com o que as pessoas estão fazendo. No nosso caso, da filosofia, existe história. Por exemplo, não é por acaso que um dos intelectuais mais respeitáveis do país, mas teve uma história de autoritarismo muito grande que é o Tristão de Athayde, ficou muitos anos no Conselho Federal de Educação, e lá ajudou a elaborar um currículo de filosofia que é imposto até hoje. A USP tem até hoje metafísica, só que ela dá outra coisa, mas ela tem aquilo, uma coisa muito complicada. Então existe a intenção do currículo, que corresponde a determinados interesses, no caso eram os interesses católicos, e existe a realização dos curricula. Mas o problema não está aí, o problema está em outro aspecto. Gosto de ser bastante prático nos momentos práticos: a Unesp é uma universidade criada pelo Maluf para abrigar um ex-Secretário de Educação dele. Pegou todos os institutos de ensino isolados superiores do Estado, e fez a Unesp, cuja sede legal era em Ilha Solteira, e a sede real é na praça da Sé, em São Paulo. O que fazia, por exemplo, no dia de reunião do conselho universitário, com que os diretores pegassem um avião e os seus motoristas fossem de carro esperá-los no aeroporto de Congonhas, para levar para a praça da Sé, e enchiam a praça da Sé de tal modo com seus carros, que o trânsito ficava congestionado. Mas era uma instituição criada de cima para baixo, autoritária, com laivos de fascismo. Quando começou o governo Montoro, a Unesp fez um congresso de modificação, de reinstauração. E criou três comissões grandes: ensino e pesquisa; carreira docente; e poder na universidade. Ensino e pesquisa, você entrava facilmente na sala, porque tinha umas quinze, vinte pessoas. Carreira docente, um pouquinho mais, porque isso interessava alguns professores. Você não conseguia chegar perto da sala do poder. Então, esse é um retrato perfeito da cabeça desse pessoal. Poder, para mim, é algo que se concentra naqueles três monopólios que o Estado se arrogou, e que retirou da sociedade.
Leo Gilson Ribeiro - Quais?
Roberto Romano - Monopólio da força física, só o Estado tem o direito de prender ou declarar guerra, nenhum particular tem mais esse direito. Segundo monopólio, a norma jurídica. Só o Estado pode editar leis cogentes para todo e qualquer indivíduo ou ele próprio. E o terceiro monopólio é o da gestão do excedente econômico. Só o Estado pode estabelecer impostos, taxas etc. etc. Onde a universidade tem isso? Onde um reitor tem isso? O que acontece é que temos representantes do poder dentro da universidade. Esses reitores são embaixadores do poder, são servos do poder. E, quando eles têm boas relações com os centros de poder, seja militar ou policial, como aconteceu na USP durante anos, mesmo no período anterior à ditadura militar de 1964, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista jurídico, esses sujeitos fazem as suas universidades até crescer.
Milton Santos - Uma das perguntas que preparei para lhe fazer é exatamente esta: me parece que dentro das universidades, talvez em função das novas condições de realização do trabalho acadêmico, é que essas pessoas que se renovam nos postos de comando, que distribuem as notas, que organizam o nosso trabalho impondo normas, inclusive prazos, constituem um grupo que tem uma certa autonomia de existência, e que se opõe à idéia da universidade. Isso é grave. E aí já engato com outra questão: será que estamos abdicando do dever da crítica interna, buscando só criticar o ministério, mais não sei o que, mais as agências, mas as próprias universidades recusam essa crítica interna? Acho que um dos objetos da crítica interna seria ver essa produção interna de buroprofessores. Quer dizer, são aqueles indivíduos que sai um, entra outro, mas é o mesmo grupo, que é inútil como esses pró-reitores quase todos, que são pessoas inúteis porque são intermediários dos quais não necessitamos na realidade, e que são um estorvo inclusive à produção intelectual.
Roberto Romano - A universidade não consegue autonomia por causa desses grupos.
Milton Santos - Que são internos a ela. E eles não deixam o debate se fazer.
Roberto Romano - O senhor tem razão. Veja bem, professor, há um elemento que acho até mais grave ainda. Me parece que a universidade mimetiza, de maneira perversa até, porque ela é uma espécie de parasita, mimetiza a estrutura de poder do Estado. No Estado brasileiro, você tem o Executivo, que supostamente é onipotente, e tem o Judiciário e o Legislativo, que vivem em função do Executivo. Na universidade, você criou a figura do reitor, que está acima do conselho, acima de qualquer coisa. Mas, na verdade, para que essa onipotência exista, é necessário que tenha os seus grupos de sustentação.
Milton Santos - Os nomeados depois das eleições.
Roberto Romano - Exatamente.
Milton Santos - Eles são cabos eleitorais, não são mais colegas nossos.
Roberto Romano - Não, eles são administradores profissionais.
José Arbex Jr. - É o tacão de fora.
Milton Santos - Ou o cheque de dentro.
Roberto Romano - No caso da Unicamp, todo candidato a reitor é obrigado a dizer, quando está em campanha, que a Unicamp é um anãozinho com uma cabeçona bem grande. A cabeçona é o número de funcionários e de grupos que ficam na reitoria em detrimento do lugar onde se deveria fazer pesquisa e ensino. Porque a cada novo reitor é necessário acomodar os velhos grupos e os novos. Então, você vai aumentando a cabeçona da universidade. E você tem uma troca fisiológica tão grave como no caso do poder federal. "Então eu te dou isso, te dou aquilo, você fica com tal setor, eu te dou tal e tal pró-reitoria, você fica com isso, você fica com aquilo." Mesmo a atual reitoria da Unicamp, que supostamente é uma oposição há doze anos de direção, teve de lotear direitinho, bonitinho, as coisas. Bom, esse é um ponto. Agora, tem outro elemento que é grave e que normalmente os universitários não gostam de conversar, que é o problema das fundações. Não vou nem falar da USP, porque sei que aquilo lá é um horror. Aquilo lá dá vários contos policiais e várias coisas mais. Na Unicamp tem a Funcamp, você tem uma série de "amps" lá dentro. Essas fundações são mantidas com dinheiro da universidade, ou com dinheiro da FAPESP, ou com dinheiro do CNPQ ou com o dinheiro da CAPES. Então são dinheiros públicos que estão ali.
Milton Santos - Das empresas também.
Roberto Romano - Das empresas também. Tem um lá, chamado de Uniemp, que é uma beleza. Mas, na última reitoria, toda vez que a oposição queria, no conselho universitário, examinar as contas das fundações, o reitor retirava de pauta. E chegou-se a dizer que eram entidades com direito privado. É uma monstruosidade jurídica. Não existe. O que aconteceu? Essas fundações distribuem os dinheiros para pesquisa, para os grupos etc., evidentemente para quem é amigo do rei. Agora, no caso do funcionalismo, muitas nomeações eram feitas por ali. No caso do Baneser, também teve esse negócio. Publiquei um artigo na Folha de S. Paulo, que dizia: "É preciso furar esse tumor na universidade".
Marina Amaral - O senhor dizia que é preciso divulgar que as pesquisas estavam sendo financiadas, quem estava nelas e quais eram os objetivos...
Roberto Romano - Até hoje, você tem uma banca de doutorado. Alguém fez uma banca de doutorado, você senta lá, por mais que você saiba que tem um jogo de cena, tem: "Eu aprovo o teu aluno, você aprova o meu".. Mas existe um limite, que é justamente o fato de ser pública essa defesa. Portanto, se houver plágio ou alguma coisa, alguém pode dizer: "Olha, isso aí está invalidado". Portanto, quem está na banca está empenhando publicamente o nome. Agora, que responsabilidade pública tem alguém que julga um projeto de pesquisa no anonimato mais absoluto?
Marina Amaral - Mesmo os projetos que são escolhidos pelas fundações para ser financiados, não é?
Roberto Romano - Exatamente. Agora, esse anonimato serve para você não prestar conta dos dinheiros, mas serve também para você cortar idéias, perseguir inimigos, "definir" um rumo definido do saber.
Sérgio Pinto de Almeida - E você aprova um tipo de pensamento.
Roberto Romano - Sim. É um mecanismo muito bem-feito. A FAPESP está agora publicando o nome de quem pediu o projeto, o montante do projeto, o tempo em que o projeto será feito. Isso já é um avanço, porque as outras não têm nada disso. Ninguém fica sabendo quem aprovou, quem vai aprovar. Aí, agora vou contar um caso que é mais grave. Eu estava um dia no Instituto de Filosofia e recebi o telefonema de um alto dirigente do CNPq. "Professor, estamos mandando para o senhor um projeto, e vamos pedir o seu parecer negativo." (risos) Vocês vão ver o negócio, é muito mais grave. "Estamos pedindo o parecer negativo pra todos." "Não, mas..." "Por favor, o senhor não fique bravo, o senhor leia o projeto que o senhor vai entender." Li o projeto e entendi. Era um projeto liderado por um ex-reitor de uma universidade do Nordeste: Por que Existe Corrupção no Brasil. Esse projeto indicava quatro filósofos e cinco sociólogos. E você faria aquilo que eles chamavam de fenomenologia. Fenomenologia significa pegar o estudante, o monitor, ele iria para a praça pública e perguntaria ao povo o que achava da corrupção. Aí os filósofos entravam com alguns textos de Platão, uns textos de Rousseau, alguma coisa assim, os sociólogos etc., juntava tudo com as entrevistas e a pesquisa estava feita. Para isso, eles pediam viagens para Londres, viagem para não sei onde, pediam computadores, pediam gravadores etc., bolsa para os estudantes...
Milton Santos - Qual era o custo disso?
Roberto Romano - O custo era de aproximadamente 1 milhão de dólares!
José Arbex Jr. - Bom, está explicada a corrupção no Brasil. (risos)
Roberto Romano - Aí fiz um parecer dizendo que parabenizava os componentes, porque sou filósofo, tenho uma tendência de idealista e gosto quando o círculo lógico se completa perfeitamente. Então, os parabenizava porque era o primeiro projeto corrupto sobre corrupção. (risos) E por que eles estavam pedindo parecer negativo? Porque já havia dois positivos. E o projeto foi aprovado, sim, senhores. Evidente que a loucura do 1 milhão não entrou. Diminuíram as pretensões. Sete meses depois estou de novo no Instituto de Filosofia, a mesma pessoa me liga: "Professor Romano, estou mandando um projeto daquele mesmo grupo, e estamos pedindo de novo aquele seu parecer negativo". Aí o tema não era mais corrupção, porque o Collor já tinha caído, era o neoliberalismo no Brasil... Então ficaram alguns indivíduos daquele grupo de professores, saíram outros etc., e assim uns leriam Locke, outros leriam Rousseau de novo (coitado do Rousseau!), e aí fariam um levantamento, e para isso pediriam bolsa de novo etc. etc. Um dos elementos que achei gravíssimo era o projeto ser um negocinho deste tamanho, mas gordo, porque era nutrido com xerox de títulos honoris causa daquele ex-reitor. E todo mundo sabe o que significa um reitor receber um título de doutor honoris causa, quer dizer, se o professor Milton receber é uma coisa, agora, um reitor é um pouco diferente. Vamos pensar muito no caso do reitor, pode ser que seja um reitor...
Milton Santos - Ou um presidente, também... (risos)
Roberto Romano - É, ou presidente. Muito raramente é pelos belos olhos ou pelo trabalho científico ou ético da pessoa. Você faz um convênio: você me dá um honoris causa, eu te dou um honoris causa. Então era um negócio deste tamanho. Teci considerações sobre a não-possibilidade de aceitar isso como um projeto. Isso foi aprovado de novo. Então, fico na seguinte situação ética: não posso colocar isso com todos os nomes e endereços na imprensa, como me deu comichão de fazer.
Milton Santos - É o dever do sigilo.
Roberto Romano - É o dever do sigilo, então eu seria "antiético"... (risos) Agora, tenho de assistir a canalhas roubando, e isso é ao lado de Caruaru! São pessoas que estão fazendo isso que não é filosofia, que não é sociologia, que é apropriação de dinheiro público pura e simplesmente, que é picaretagem, ao lado de Caruaru, onde as pessoas estão morrendo porque as máquinas não têm como se manter, como melhorar etc. etc. Então, fico nessa situação, não posso denunciar os dois, não sei quem foram as pessoas que deram o parecer positivo, está claro?
Sérgio de Souza - É um jogo de cartas marcadas.
Roberto Romano - Isso nem tem a ver com ética, isso é um tumor. Agora, como é que a universidade vai fazer a crítica dos políticos, dos etc.etc., se ela tem esse tipo de prática no seu interior, se o sigilo não é abolido? Agora, quando eu disse: "Vamos abolir o sigilo" – "Não, os ódios dentro da universidade aumentarão muito." Falei: "Mas os ódios já existem, o que ocorre é que eles são abafados". Se o meu projeto não passou, o dia em que eu virar poderoso: "Ah, você vai ver o que vai acontecer com você". Quer dizer, os ódios são incubados e se potencializam.
Milton Santos - Para tornar mais grave, creio que com a tal globalização, e aí com a desculpa mais uma vez da palavra descoberta, vosmecê fez uma distinção entre totalitarismo e autoritarismo e me pergunto se o totalitarismo que hoje se instala com a globalização não pode se instalar com a aparência de não ser autoritário. Porque acho que um dos problemas que permeiam a vida social é a própria vida acadêmica.
Roberto Romano - Esse é o ponto.
Roberto Freire - Quando o senhor estava analisando a política da vida universitária, o tempo inteiro eu achava que era exatamente igual à política partidária, à política do Estado, uma coisa só, dos partidos, da imprensa, ou da mídia, tudo está sendo feito desse jeito. E a universidade não conseguiu autonomia quando seria um grande papel da universidade ter a possibilidade de corrigir, denunciar tudo isso.
Sérgio Pinto de Almeida - E tem mais um detalhe, que é o papel crescente da universidade particular. Outro dia vi um anúncio na televisão, não sei se eram escolas da Unip, faculdades do Objetivo, aí o cara falou assim: "Corpo docente, tal, tal, tal, e você voltado para o mercado. Você vai ter lugar no mercado". Falava umas quatro ou cinco vezes "o mercado".
Milton Santos - E aqui não tem blablablá. (risos)
Sérgio Pinto de Almeida - E frisar o mercado. Aí li notícias sobre o assédio a professores, porque, porque tem uma série de requisitos para reconhecimento da universidade particular, é quando existem teses, quando existe professor doutorado, graduado etc. E há um assédio financeiro em cima desses professores, eles já se aposentam na escola pública, recebem no auge da carreira, e aí recebem a proposta para ir para a universidade particular muito mais para ceder o nome, e com isso a universidade conquistar pontos junto às instâncias...
Milton Santos - Vou fazer um adendo. Tomei nota de duas ou três questões que vou ter de fazer. Estou preocupado com a dificuldade de a escola privada realizar seus objetivos comuns e democráticos sem saber muito o que quer dizer, hoje. Mas o que é hoje a universidade pública? Será que as nossas ainda são? Será que a USP ou a Unicamp ainda são entidades públicas, ou a gente teria de redefinir?
Roberto Romano - Perfeito, porque o que eu ia começar a dizer é que a grande novidade que o pró-reitor de graduação da Unicamp anunciou, e foi festejado com página inteira da Folha de S. Paulo, foi que os cursos de graduação da Unicamp estariam voltados para o mercado. E, portanto, haveria uma flexibilização para que os nossos estudantes pudessem competir no mercado etc. etc. A uma universidade como a Unicamp, que tem um conjunto de doutores e de pesquisadores importantíssimo, o que significa essa decisão? Aí a pergunta: foi referendada pelo conjunto dos professores essa modificação? Ou esses professores assistem ao trabalho desses tecnoburocratas de tal modo que ficam infensos, na verdade executam ordens como se viessem de Deus todo-poderoso, e se dizem impotentes. Quer dizer, há um controle... Quando você tem um pró-reitor de graduação que propõe uma flexibilização da grade curricular para o mercado, você já tem então embutida toda uma decisão que vem da cúpula. Pouco importa se as pessoas que dão nome a isso são progressistas ou não. Agora, a questão da aposentadoria é outra coisa em que suscito muita antipatia no meio docente. Porque acho um escândalo moral um professor que recebeu dinheiro do Estado ou da sociedade, acho que é da sociedade, durante vinte anos, que fez uma universidade pública de alta qualidade, que foi muitas vezes para o estrangeiro, fez doutorado, voltou, recebeu verba da CAPES, do CNPq e da FAPESP, com 47 anos de idade ele se aposenta e vai se empregar, como é o caso do reitor da USP, Roberto Lobo, em Mogi das Cruzes, vendendo uma coisa que não é dele. Desculpe, o professor Milton é uma sumidade, mas o que ele sabe está vinculado ao que o povo brasileiro pôs nele em termos de aposta. Não é propriedade privada. A questão do público, acho que você tem toda razão, pensamos o nosso diploma, o nosso saber como propriedade privada, pequena propriedade privada, você vai lá e vende e tal. Só que nesse ponto a coisa está complicada, porque há uns quatro anos um professor titular que se aposentasse nas universidades paulistas e fosse trabalhar na universidade privada recebia uns 15.000 dólares e tal, e hoje está chegando aos 4.000.
Milton Santos - Está barateando...
Roberto Romano - Claro, é a lei do mercado: quanto mais oferta, diminui o salário. (risos)
Wagner Nabuco - Os privatistas dizem que a nossa universidade é muito cara por aluno/ano. Isso é verdade, comparando com as universidades norte-americanas, européias e do mundo? Depois: alguns defendem a universidade dizendo que uma das coisas que a encarecem muito é o custo dos hospitais universitários, então faria sentido passar os hospitais universitários para o Ministério da Saúde, como é o projeto. E, por último, se o senhor acha possível estabelecer uma quarentena para o aluno que se forma usando dinheiro público, e então só poderia ir para a iniciativa privada depois de um ano de trabalho público compulsório.
Roberto Romano - Em primeiro lugar, a questão do custo da universidade. Se for universidade, pesquisa, compra de livros, se tiver compra de laboratório, se tiver tudo isso, é caro mesmo. E será caro em qualquer situação. Você pode pensar aí modos de apropriação desses instrumentos, socialização desses instrumentos, de forma que não fiquem esses preços absurdos. Por outro lado, fazer um curso de física onde o laboratório não tem máquinas, é visitado a cada seis meses e você fazer tudo na base do quadro-negro, é barato. Quanto à questão dos hospitais universitários, dado esse mimetismo, essas relações promíscuas do executivo universitário com o executivo político, você tem toda uma série de concessões por parte das autoridades acadêmicas quando se trata da instalação desses hospitais. Então, de certo modo, houve uma programada destruição dos meios de saúde pública do Estado de São Paulo, e naturalmente passaram para as universidades a função de cumprir esse papel. E daí junto ao Executivo, do prefeito ao governador, com os nossos políticos, com os deputados, os vereadores etc. A coisa mais simples que você vê no hospital de clínicas da Unicamp é chegar um doente que vem do Cabrobó da Serra, com uma infecção no dedo, numa ambulância onde está escrito "Município de Não Sei das Quantas, administração maravilhosa", não sei o que e tal. Quer dizer, o que eles fazem? Eles pegam todos os casos e jogam para a Unicamp, porque aí as pessoas são gratas a eles: "Foi o prefeito, foi o vereador que colocou meu pai na coisa e tal". E aí chega todo esse pessoal na Unicamp, e para ser atendido é uma doideira. Imagina como você pode atender...
Marina Amaral - Não tem regra nenhuma de quem pode ser atendido?
Roberto Romano - Vai chegando no pronto-socorro, vai "selecionando" e vai despejando. Ora, isso faz supor que os reitores deveriam ter tido, antes desse sistema, batido a mão na mesa e ter dito: "A universidade tem a função de pesquisa etc. e tem uma função social, que vai ser cumprida dentro dos limites dela, universidade. Mas ela não vai substituir uma política de desmonte do Estado". Tal como ocorreu no Estado de São Paulo.
Wagner Nabuco - Quer dizer, destituiu a missão básica do hospital universitário.
Roberto Romano - Que era a pesquisa, o ensino e os serviços.
Wagner Nabuco - Virou um novo SUS.
Roberto Romano - Virou pior. Porque, como tem o logotipo, e o logotipo é um negócio seriíssimo, o sujeito foi para a Unicamp cuidar da unha encravada, mesmo que morra é a Unicamp, não é o SUS. O SUS não tem logotipo. Agora, a Unicamp tem os melhores especialistas. E aquele calhorda do vereador tem um dividendo muito maior. Então, esse negócio é muito grave. Aí a questão da autonomia.
Roberto Freire - Ele comprou um eleitor com dinheiro do Estado.
Roberto Romano - Exato. E a universidade não tem autonomia, não se torna autônoma, aí o professor Milton tem toda a razão, é uma coisa que está dentro dela já.
Milton Santos - Há um plano inclinado, que eu não saberia datar de quando. Me lembro quando cheguei aqui em São Paulo para ensinar, até hoje, e sinto realmente um processo de deterioração muito grande do espírito universitário dentro das universidades. E essa vontade de ceder ao poder político eleitoral, às vezes imaginando se tornar secretário de Estado, ou ministro.
Sérgio de Souza - Por falar nisso, que avaliação o senhor faz do atual ministro da Educação?
Roberto Romano - Olha, o ministro atual da Educação... (risos)
José Arbex Jr. - Já falou pela sua reação.
Roberto Romano - Veja, todos os instrumentos de ascensão social foram utilizados. Ele estava no Chile, exilado. Aí veio para o Brasil, foi trabalhar na Unicamp, era professor e foi eleito presidente da Adunicamp, a associação dos docentes. Aí o sindicato serviu muito bem, e era para que o discurso de esquerda – me perdoem, de vez em quando falo umas coisas pesadas, mas acho que existe um chantilly e debaixo do chantilly um bolo de merda. (risos) Você tem esse chantilly mais para a esquerda, muito bem cheirosa, mas por baixo o negócio é feio. No caso, ele foi presidente da Unicamp, e chegou a reitor justamente porque representava uma mudança etc. etc. etc. Não posso dizer que o reitorado dele tenha sido totalmente desastroso, porque ele instalou determinadas coisas que não existiam na Unicamp enquanto universidade. Porque a Unicamp foi criada pelo professor Zeferino Vaz, que controlava tudo, ela tem todos os méritos e os defeitos do professor Zeferino Vaz. Ele contratava, demitia, ele fazia e acontecia. A Unicamp não tinha conselho universitário, não tinha congregação, não tinha nada, tudo era definido pelo gabinete do reitor. E, no período Paulo Renato e Pinotti, a Unicamp adquiriu determinados ramos, como a congregação, como os conselhos etc. Mas adquiriu também as pró-reitorias, e todos esses instrumentos do executivo. Nesse período, ele estava se preparando para ser o quê? Secretário. Foi secretário da Educação do Estado de São Paulo, ocasião em que o núcleo de estudos políticos – se você olhar o nome das pessoas que estavam naquele núcleo e olhar agora as pessoas que estão nessa alta comissão de reformulação do CNPq, vai ver que são os mesmos – fez aquele relatório maravilha, que era propaganda política e não relatório de pesquisa. Aí, depois de secretário de Estado, foi ser empregado do BID.
Milton Santos - Foi para Washington.
Roberto Romano - Aí voltou, e a receita estava no BID, todos conhecem, e estava com alguém para executá-la. Esse senhor mente. Por exemplo, na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara do Deputados, ele foi dar um depoimento e disse que estava encaminhando para as universidades privadas, para ajudar as universidades privadas, 300 milhões de dólares. Questionado pelo deputado Ivan Valente, infelizmente não reeleito, ele disse que esses 300 milhões de dólares não eram dinheiro público, eram do BNDES! O que significa isso? Ele deu uma entrevista como ministro, dizendo que todos os professores da Unicamp são vagabundos, porque enquanto estava na Unicamp ele dava duas horas de aula. Em lógica elementar, ele seria reprovado. Que ele fosse vagabundo e desse apenas duas horas de aula, pode ser um fato, não vou olhar sua folha corrida na Unicamp. Agora, que todos os professores da Unicamp dão duas horas de aula, isso é uma mentira. Esse senhor mente.
Sérgio Pinto de Almeida - Mas ele é coerente, porque o chefe dele diz que aposentado é vagabundo... (risos)
Roberto Romano - Existe uma tática dentro do governo Fernando Henrique que é colocar alguns garotos-propaganda. E, no caso, o Paulo Renato é o garoto-propaganda ideal. Ele fala o que bem lhe interessa. Por exemplo, quando aconteceu essa briguinha entre o Serra e a equipe econômica por causa dos cortes do orçamento, o que disse Paulo Renato? Está registrado. Disse que não discutia os dinheiros do ministério dele publicamente. Disse: "Defendo o meu dinheiro na calada dos gabinetes". A frase é ipsis litteris. Primeiro, o dinheiro não é dele, é público, e na calada dos gabinetes, fora do juízo público, é qualquer coisa. Ele não ligou, já escrevi artigo citando isso na Folha de S. Paulo. Como é que pode uma autoridade que deveria primar pelo respeito, pela cultura, pelo espírito, pelo saber etc. agir publicamente dessa maneira, com o aplauso dos colegas?
Marina Amaral - O senhor acredita que o governo tem mesmo um projeto de privatização das universidades públicas?
Roberto Romano - A questão que o professor Milton colocou já responde. De tal modo acuaram os professores, ou os próprios professores encontraram as saídas, que boa parte dos serviços que deveriam ser gratuitos na universidade já é paga. Você tem cursos, por exemplo, chamados convênios, em que professores de inglês dão cursos onde eles cobram. Isso existe na Universidade do Espírito Santo. A Faculdade de Administração da USP tem um convênio com uma lanchonete que está fazendo o prédio de trás. Então, o prédio de trás será da lanchonete até um certo ano, depois vai passar para a universidade.
Sérgio Pinto de Almeida - A Sociologia da USP tem catorze xerox instaladas, claro, particulares, todas com energias de fio puxado da USP.
José Arbex Jr. - Existe hoje universidade pública no Brasil?
Roberto Romano - Existe o princípio da universidade pública, uma tradição anterior de universidade pública, mas paradoxalmente excludente. Aí precisamos discutir um pouco melhor o projeto da USP. Gosto sempre de lembrar que a USP tem uma origem hedionda. Gosto sempre de citar o texto do Júlio de Mesquita Filho, quando ele diz que a USP, que a universidade deve ser, no organismo social, o que o cérebro é no corpo. E que a função da universidade é estabelecer a disciplina na mentalidade popular. Mas duas páginas depois ele diz: "Nós temos que cuidar muito do organismo político brasileiro, e não podemos dar direito de voto a determinadas regiões" – como a nordestina etc., porque o organismo brasileiro é meio teratológico, cresceu de um lado e não se desenvolveu em outro. E que temos um outro problema – o professor Milton acho que conhece essa frase assim na consciência, porque diz o Júlio
Mesquita Filho: "Ocorreu na sociedade brasileira um problema seriíssimo, foi incorporada à cidadania a massa impura e formidável de 2 milhões de negros, que fizeram baixar o nível da nacionalidade, na mesma proporção da mescla operada". Vou morrer com essa frase decorada. Então, está dado o programa. Está claro? Agora, tinha pretensões a coisa pública. Mas você tem o princípio, você tem efetivamente a possibilidade de lutar por ela, você tem até na Constituição essa parte, mas você tem uma lei como a LDB, que já cria todas as possibilidades para a privatização. Por exemplo, estamos na USP, na Unicamp e na Unesp cuidando de adequar a universidade à LDB. Uma das primeiras providências é acabar com os departamentos. Não vai mais ter departamento. Quem vai definir o ensino e a estrutura mesma dos institutos são o diretor e os coordenadores de pós-graduação e de graduação. O que quer dizer que já iremos trabalhar numa estrutura em que a pesquisa está afastada liminarmente. Você vai se dedicar àquilo que é ensino, como se fosse possível alguém ensinar alguém sem pesquisar essa coisa.
José Arbex Jr. - Mas não tem um dado positivo nisso, de você estimular a multidisciplinaridade? O departmento não estanquiza um pouco a coisa também?
Roberto Romano - O problema não é esse. O problema é que você não vai ter mais diversidade. Você vai ter uma raça estudiosa definida pelos coordenadores de pós e pelos coordenadores de graduação.
José Arbex Jr. - Um parâmetro rígido, e não tem conversa.
Roberto Romano - E dane-se, já está tudo definido. O professor Milton estava lembrando, já estamos no instituto com propósitos no seguinte sentido: "Os professores serão obrigados a ficar no prédio atendendo os alunos de tal horário a tal horário" – porque tal, não sei o que, tarararará.
José Arbex Jr. - O senhor teria a noção do que seria uma universidade pública hoje, nas condições da globalização, do discurso de mercado?
Roberto Romano - Estudo Diderot, é o meu campo de trabalho. Trabalho com as luzes do século 18, e acho que estamos até muito precisados. Diderot tem um plano de universidade que a Catarina II pediu que ele fizesse. Ele começa dizendo que a universidade é uma instituição aberta para o maior número de cidadãos. E é onde eles aprendem os princípios básicos de todos os saberes. Outra coisa que Diderot diz é: "Não vou estabelecer hierarquia de disciplinas". Quer dizer, todas as disciplinas poderão ser exercitadas, sobretudo as novas. Mais: "E deve estar voltada principalmente para aquelas pessoas que não têm recursos para mandar os seus filhos para a universidade". Isto é, a grande maioria da nação. Diz ele: "Porque até do ponto de vista estatístico é mais fácil, é mais correto que você encontre grandes gênios em cem choupanas do que em dez palácios". Então, esse é o programa burguês de universidade pública, que foi tão desacreditado. Estamos atrás anos-luz. E mais outra coisa: "Onde mestres, estipendiados pelo Estado, se dedicariam integralmente a esse estudo, a esse ensino, não temendo porque teriam uma aposentadoria digna e respeitável". É o programa burguês do século 17. É a consciência burguesa. Agora, se comparamos isso com o que existe e com o que existiu aqui no Brasil, evidentemente não temos universidade pública e não tivemos nem sequer segundo os parâmetros da burguesia, ou dessa burguesia mais ilustrada. Quer dizer, estamos mesmo numa situação de barbárie social. Você teve feudos, onde a intelligentsia se estabeleceu, estabeleceu o seu programa e se arvorou então a dirigir o Estado. Sobre isso tenho alguma coisa a dizer também, porque há sempre aquela discussão sobre o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e a USP. O ISEB seriam os nacionalistas que teriam aderido ao Estado autoritário, e a USP seria rigorosa, científica etc. Esqueceram que esse grupo da USP tinha um projeto de poder. Não é piada, o senhor Fernando Henrique Cardoso pensava em ser presidente da República desde a época em que era assistente do professor Florestan Fernandes. Nunca abandonou esse sonho e fez tudo para isso.
Milton Santos - Será que se pode localizar nessa trajetória imaginada essa vocação exercida pelo presidente para ficar cada vez mais próximo do poder americano há mais de vinte anos, porque não é recente? Será que pode?
Roberto Romano - Acho que sim. Há uma espécie de namoro, que foi exercitado nesse período dos anos 60, com a sociologia norte-americana.
Milton Santos - Mas é mais que a sociologia, são os meios de trabalho. Não é só o trabalho intelectual, são os meios materiais de trabalhar de quem participava dos conselhos e das instituições que distribuíam recursos.
Roberto Romano - Claro. E fundações. Lembro sempre de um caso que a minha mulher (professora Maria Sylvia Carvalho Franco) conta, e ela tem uma memória boa: diz ela que o professor Florestan Fernandes foi procurado por um professor ligado ao Departamento de Estado norte-americano, para fazer uma pesquisa no Brasil, para saber como a população reagiria a um golpe de Estado.
José Arbex Jr. - O Florestan Fernandes?
Roberto Romano - E o professor Florestan Fernandes pôs esse professor para fora. Parece, penso eu, que nem todos os membros da sua equipe estavam tão dispostos assim. Não vou dizer mais nada. (risos)
Milton Santos - Vou fazer uma pergunta, só para lhe fazer falar: pode-se dizer que há uma regressão da universidade brasileira nos últimos quinze, vinte anos? Às vezes fico pensando que ela não exerce o seu dever nem para com a sociedade em geral, nem para com a humanidade, nem para com ela própria. Quer dizer, que há um processo de autodestruição evidente, de menosprezo a uma interpretação veraz do que é a sociedade brasileira, e um desinteresse por uma interpretação correta do mundo.
Roberto Romano - A sua análise é percuciente. Vou contar mais um caso – que sou bem caipira nesse sentido: quando Fernando Henrique Cardoso deixou o Senado para se reintegrar na USP, deu uma aula inaugural. Nessa aula inaugural estavam presentes o corpo inteiro da Faculdade de Filosofia, e de toda a USP, a sala estava lotada, os corredores lotados. E esse professor disse o seguinte: "Deixo o Senado, que é o espaço da ação, e venho para a universidade, que é o espaço da falação". Se aquelas pessoas que lá estavam tivessem algum amor pelo saber, algum amor pela verdade, algum amor pela ética, levantariam e dariam uma vaia nesse indivíduo. (risos) Mas ele foi aplaudido de pé quando falou isso. Ora, a universidade, se é universidade, não é falação. Ela produz teoremas, ela produz vacinas, ela produz pesquisa de átomo, ela produz atos, ela produz modificações éticas etc., se ela for universidade. Agora, o que é a prova mais evidente de que aquilo não era a universidade é o fato de eles terem aplaudido, porque cuspiram para cima e caiu na cara. São pessoas sem vergonha, que estavam bajulando uma pessoa poderosa.
José Arbex Jr. - O senhor falou nos últimos quinze, vinte anos, e não por acaso 99 menos 15 dá 84, que é mais ou menos a época em que a Folha de S. Paulo publicou a lista dos improdutivos. Acho que essa lista dos improdutivos é uma espécie de marco na história da universidade recente no Brasil. As famosas idéias de mercado acabam virando um parâmetro...
Roberto Romano - Nunca se esqueça de que essa lista dos improdutivos foi produzida na reitoria, com a colaboração direta da professora Eunice Durham, uma das conselheiras do Conselho Nacional de Educação e uma das pessoas mais nefastas para os campi, porque foi justamente a partir do parecer dela que o reitor Vilhena fechou o conselho universitário da UFRJ. É uma das pessoas mais nefastas dessa linha burocrática, e medíocre do ponto de vista da pesquisa, uma das pessoas mais nefastas na universidade brasileira nos dias de hoje. É oficialismo em duas pernas. E eu já disse isso em público para ela, e repito quantas vezes eu quiser. Foi uma coisa hedionda, porque juntou aí o interesse sensacionalista e a campanha contra a universidade, com interesses de dentro, de professores que estavam escalando a vida social, escalando a vida política. E isso é indefensável. Existe uma profissão agora dentro da universidade que é o avaliador. Não faço avaliação 24 horas por dia, estudo Diderot, dou aula, faço conferência, discuto com os meus colegas etc., não faço avaliação. Mas existe gente especializada em avaliação, existem núcleos de avaliação. Pergunto o seguinte: o que eles fazem no campo de pesquisa? Quem é antropólogo e que só avalia os outros... De repente, você só tem avaliadores, que avaliam físicos, matemáticos, químicos etc. etc. Não conheço indivíduo ou grupo que possa ter um domínio do saber tão grande que possa avaliar tudo isso. O que quer dizer que a avaliação, nesse sentido, é picaretagem pura. Existem teses de doutorado sobre avaliação!
José Arbex Jr. - Em nome do que, de que projeto ideológico, se é que havia algum, a Folha se empenhou em publicar essa lista e dar a ela um peso que até hoje repercute na universidade?
Roberto Romano - A ideologia da Folha nesse episódio, e continua sendo a ideologia do Estado de S. Paulo, do Jornal do Brasil etc., é que não pode existir, sobretudo nesse campo, serviço público e que é necessária uma privatização. Isso está claro.
José Arbex Jr. - O senhor acha que desde 1984?
Roberto Romano - Desde sempre. O Estado de S. Paulo defendeu a USP dele, a USP para formar as elites e formar os intermediários entre as elites, o estado e a população, para disciplinar a mentalidade do povo. Esse pensamento privatista faz parte dessa visão empresarial. E, quando esses jornais encontraram na universidade aliados, aí veio o que está aí. A idéia de produtividade é uma idéia extremamente danosa à pesquisa científica. Existem pensadores, como é o caso de Wittgenstein, que teriam tirado zero na CAPES, (risos), porque passaram dezenas de anos sem publicar quase nada. Então, essa é uma perspectiva ideológica de privatização, mas que vem de longa data. No caso, com a gestão do professor Goldemberg, que na própria Folha de S. Paulo chamei de infame, e repito, porque na questão da privatização o que a imprensa teve foi a clara adesão e incentivo das autoridades acadêmicas. Começou aí. E hoje existe pró-reitoria de avaliação. E teses, como eu disse. Você avalia o quê? Avaliar um saber é uma das coisas mais difíceis do conhecimento. E qual é o critério? O critério é o quanto. Fez tantas encenações, é um excelente pesquisador em artes. Meu Deus, então vamos dar nota 7 para o Ratinho... (risos) mas não está longe, porque, num dos elementos dos questionários que a dona Eunice Durham introduziu na USP, vem lá: "Quantas entrevistas para jornais você deu? Quantas entrevistas para a televisão?" Eu me recuso, nos meus relatórios para a universidade não cito artigos que escrevi para a Folha de S. Paulo etc., não cito entrevistas etc. Isso aí é a opinião de um cidadão que tem todo o direito de falar do jeito que quiser sobre as coisas. Outro é o meu trabalho onde pesquiso, onde estudo, onde reflito etc. tem outro peso.
Leo Gilson Ribeiro - Eu queria perguntar sobre essa modificação teratológica que houve com a universidade. A Universidade de Bolonha, que é sabidamente no Ocidente a mais antiga, junto com a Universidade de Paris, e depois junto com as universidades inglesas, em que momento o senhor determina ou acha que houve esse absolutismo que vivemos hoje, se isso remonta a Maquiavel, ou se remonta ao absolutismo europeu, ou se é uma coisa mais recente de uma hegemonia mercantil de determinados países?
Roberto Romano - A sua pergunta é estrategicíssima, porque sem tentar respondê-la perderemos anos discutindo a questão da universidade. Começando com a questão de Bolonha. Uma característica fundamental de Bolonha, que lhe deu uma autonomia muito grande diante do papa e dos governantes, é o fato de que ela era composta por uma congregação de advogados, e que providenciavam o pagamento das suas despesas. É um ponto fundamental: para ter autonomia espiritual, você precisa ter autonomia material. As outras universidades, como é o caso da Universidade de Paris, das inglesas etc.., ou estavam sob o protetorado do rei, ou protetorado do papa, e recebiam desses poderes, que na época inclusive se digladiavam, junto com as verbas o verbo. Recebiam a raça estudiosa, recebiam aquilo que era permitido e aquilo que não era permitido. Mesmo assim, conservaram um poder muito forte. Um outro elemento, que o professor Jacques Le Golf lembra, é que "na Idade Média não existiam a universidade e o poder, existiam a universidade e os poderes".. Poder do rei, poder do papa, poder da burguesia mercantil emergente. No caso, os mercadores queriam determinadas coisas da universidade e não queriam outras. Segundo Le Golf, essa situação piorou no século 16, quando você tem o estabelecimento do absolutismo monárquico, tem essa hegemonia do poder real e a universidade se adapta perfeitamente à função que o Estado queria dela. E Le Golf cita um discurso do reitor Gerson que diz: "A universidade não tem de ficar criticando tiranos nem coisa nenhuma. O que ela tem de cuidar é que haja um governante, e que os donos das galinhas durmam tranqüilos". Quer dizer, a propriedade tem de ser preservada. Bom, essa situação foi marginalizando a universidade, que por exemplo esteve afastada do Renascimento. Praticamente todos os grandes criadores da ciência, da cultura etc. passaram pela universidade, mas não eram universitários. A começar com Bacon, Descartes no século 17, Espinosa, todos esses grandes pensadores estiveram fora e contra a universidade. Descartes andou correndo pela Europa perseguido pela Faculdade de Teologia de Paris. A tal ponto, que o acusavam de ser rosa-cruz. E, como existia a lenda de que os rosa-cruzes ficavam invisíveis, quando foi para Paris fez questão de aparecer em todas as rodas, para ficar claro que ele não era rosa-cruz. (risos) Então, a universidade ficou fora do Renascimento, e fora do engendramento das ciências e das técnicas modernas. E quem ficava dentro da universidade tentando modificar era perseguido. Nos séculos 17 e 18, as Luzes não foram instaladas dentro da universidade. Diderot faz o projeto da Enciclopédia para atingir um público – veio até parar no Brasil, em Minas Gerais tem lugares onde se encontram exemplares Enciclopédia até hoje –, para formar um público numa perspectiva muito mais ampla do que era feito dentro da universidade. Na Enciclopédia, você tem saberes que a universidade desprezava absolutamente, por exemplo as artes mecânicas. Um dos elementos fundamentais da Enciclopédia é a tábua, é o caderno de instrumentos, porque ele ia lá, chegava no artesão e perguntava: "Olha, como é que se faz esse instrumento, para que se usa esse instrumento?"
Leo Gilson Ribeiro - O torno, por exemplo.
Roberto Romano - Exato. Bom, então a universidade não chegou a assumir a perspectiva total do Renascimento, não chegou a assumir a definição total das Luzes, mas sofreu, como no Brasil, a contra-revolução. Quer dizer, quando veio o Termidor, no Estado napoleônico, ela se instalou perfeitamente na função desejada pelo poder executivo do imperador. E foi esse modelo de universidade que passava aqui na cabeça de muita gente. Quando se diz que a universidade está hoje, de certo modo, já privatizada, a cabeça desse estrato sempre, me perdoem a generalização, sempre esteve voltada para produzir elites para a Igreja e para o Estado, produzir pessoas que sirvam bem a um quesito. Essa é a função. E esse elemento foi reforçado com Napoleão. Esse modelo napoleônico persiste nessa visão, a de que o executivo define todas as declinações da universidade.
Wagner Nabuco - Voltando à minha pergunta: como se apropriar do que é produzido na universidade, com todos esses defeitos? Como se apropriar de fato para o público que sustenta essa universidade? De que maneira isso está sendo pensado dentro dela? Falei da quarentena, o diplomado vai trabalhar no instituto para produzir coisas para a população antes de ganhar dinheiro igual um louco na iniciativa privada. O dinheiro é do imposto do povo, como é isso?
Roberto Romano - Mas aí você precisa também combater essa ideologia do mercado, que é passada pelos organismos dirigentes. Quando um pró-reitor diz "olhem a maravilha que fiz – transformar a graduação adequada ao mercado", na verdade ele está correspondendo a uma exigência que é anterior, que vem do ministério, e das secretarias: as famosas parcerias com a iniciativa privada. No fundo, o que os governantes disseram é o seguinte: "Vocês, professores, que têm saberes, virem-se e procurem financiamento da iniciativa privada". Não sei como isso é possível num país de recessão. Que iniciativa privada é essa? Primeiro, a iniciativa privada brasileira não é conhecida por aplicar em ciência e tecnologia, e saberes.
Leo Gilson Ribeiro - Há outra nuance também, que é a famosa fuga de cérebros, principalmente rumo aos Estados Unidos. Havia uma lei na União Soviética, antes de ela se dissolver, em que a pessoa que quisesse se transferir para outro país teria de ressarcir o Estado pela quantia despendida com ela. O Brasil é um supridor gratuito.
Roberto Romano - A Unicamp tem uma regra estabelecida: todo professor que tenha ido para o estrangeiro e que tenha rompido o seu contrato precisa ressarcir a universidade com o salário daquele período de rompimento. Só que isso vai para a Justiça, e cai. A universidade perde, porque existem os direitos Por isso sempre defendi, no caso de defesa da universidade: vamos deixar de colocar apenas como dialogante o Poder Executivo. Vamos procurar, enquanto comunidade, o Legislativo, o Judiciário. Porque muita coisa se decide na universidade passando pelo Judiciário e a gente nem tem consciência disso. Vamos discutir com o Judiciário, vamos dialogar com o Judiciário. Mas o uso do cachimbo entorta a boca, as pessoas não pensam, quer dizer, elas não querem, começando do próprio Legislativo. Muitas vezes você vai conversar com o deputado... O professor Fava, na época em que foi diretor científico da FAPESP, contava uma história que, quando a FAPESP precisava aumentar o seu quinhão no orçamento do Estado, ele foi procurar a Assembléia Legislativa. Pensou: "Bom, lá terei aliados certos, os professores universitários que são deputados, e vou ter problemas com as outras pessoas". Foi exatamente o contrário. Diz ele que Wadih Helu disse: "Mas a ciência é fundamental", e tal. Já os professores universitários: "Não precisa desse negócio, já tem dinheiro demais". E é isso. (risos) É um ponto complicado. Há uma teoria sobre o auto-ódio, o judeu que tem ódio de judeu, o homossexual que tem ódio de homossexual, e um dos elementos fundamentais dessa casta ou dessa raça, ou dessa gente que vira burocrata da universidade é que eles têm ódio de intelectual. Nunca vi tanto ódio ao pensamento intelectual. Nunca vi tanto ódio ao pensamento intelectual. Intelectuais que viraram deputados, que viraram assessores, pessoas que um dia estavam fazendo crítica, e no dia seguinte tomam uma atitude composta. Até o jeito meio hierático – já vira assim, já fala assim... (risos) São assessores. Acho que outra profissão horrível é essa tal de assessores. O meu instituto da Unicamp tem agora no Palácio do Planalto mais de dez assessores. Eles não estão dando aula e estão recebendo.
Sérgio Pinto de Almeida - Como assessor, fazendo o que lá?
Roberto Romano - Assessorando, dando conselho, dando opiniões geniais.
Sérgio de Souza - Assessorando a quem?
Roberto Romano - Ah, sei lá. São funcionários da Unicamp, professores da Unicamp, e estão lá "assessorando".
Wagner Nabuco - Vai trabalhar no gabinete do ministro...
Roberto Romano - Na presidência da República.
Sérgio Pinto de Almeida - Entendi que estavam a serviço da escola enviados a Brasília.
Roberto Romano - Não. Eles estão afastados, recebendo o seu salário. Isso que é o negócio, essa coisa de classe média. Você vende a assessoria, e na venda da assessoria vende também a sua ideologia, a sua posição política. Por isso, o caso Weffort também não foi nenhum escândalo – é muito comum. São coisas assim, mas é difícil você ter o relacionamento da universidade mesmo com esses políticos. Por exemplo, o ex-secretário de Justiça, o Belisário, tem um programa que acho muito interessante, que é o programa dos cortiços de São Paulo, defender os cortiços. E uma das fases do programa é oferecer assistência jurídica para aquelas pessoas que estão no cortiço, para que elas saibam a que têm direito etc. Ele procurou a Faculdade de Direito da USP, pedindo um convênio. A faculdade pediu um ano para estudar, e mais um ano para encaminhar. Ele disse: "Bom, quando a Faculdade de Direito aceitar, o governador do Estado pode ser o Paulo Salim Maluf, e aí não tem direito de cortiço, não tem direito de coisa nenhuma". Quer dizer, essa questão do timing, do tempo. Porque tudo isso supõe uma sensibilidade ao tempo, ao Kairós, ao tempo da sociedade. Você precisa estar aberto àquilo que as pessoas estão vivendo. Não adianta nada chegar cinco anos depois como uma coisa quando é preciso fazer naquele momento. Agora, pergunto: quantos professores da Faculdade de Direito da USP estão empenhados na luta pela cidadania pelos cortiços, seja lá o que for? Não vamos "mascar as palavras", como dizem os franceses. Quer dizer, conheço professor da USP que é ministro do Desenvolvimento, conheço professor da USP que é etc. etc., mas com esse empenho conheço o professor Fábio Konder Comparato – e o professor Fábio Konder Comparato... (risos) e talvez o professor Fábio Konder Comparato... talvez alguma outra pessoa, para não estar fazendo uma injustiça muito grande. É complicado, mas não contraditório.
Sérgio de Souza - Professor, fiquei preocupado com aquela história da corrupção, do CNPp, do ex-reitor. O senhor disse que por um dever de ética não se pode denunciar os corruptos?
Roberto Romano - É, por uma norma ética.
Sérgio de Souza - Mas quem denunciaria? Além dessa crítica do ensino, há corrupção mesmo, assim escancarada?
Roberto Romano - Olha, fiz proposta às associações docentes. Mandei-a também para as associações docentes da USP, da Unesp e da Unicamp, dizendo o seguinte: que se fizesse um movimento pedindo ou exigindo o fim do sigilo dessas fundações. Tenho as cartas, tenho uma caixa negra. E não recebi nenhuma resposta.
Wagner Nabuco - E alguém do Legislativo não podia buscar uma coisa desse tipo?
Milton Santos - É que está na Constituição, ela proíbe. Mas também está nos hábitos arraigados da nossa categoria.
Roberto Romano - Claro. Quanto ao Legislativo, uns cinco anos atrás vi que a situação da universidade paulista estava ficando uma coisa muito complicada, porque as reitorias têm uma opção preferencial pelo Executivo, e bom...aí, eu falei: "Mas sou professor titular da universidade". Professor titular nas universidades paulistas é um cargo criado pela Assembléia Legislativa, e as reitorias têm um lote determinado de cargos de professores titulares. Para aumentar esse número, é preciso ter autorização, é um cargo de Estado. Pensei: "Se tenho esta responsabilidade, vou até a Assembléia Legislativa e digo que quero discutir com os deputados as verbas das universidades públicas". Até em gabinete de pessoas de esquerda muitas vezes eu ouvi o seguinte: "Professor, está tudo certo, é isso mesmo".. Daí tiravam um dossiê e perguntavam: "E o que o senhor diz disso dessa fundação? O que o senhor me conta disso aqui? Como vamos defender mais verba para a universidade se tem isso aqui?" Vocês já ouviram falar das "Termas Manuelinas"? É um hotel feito pela Faculdade de Economia da Unicamp, na cidade de Campinas, um hotel de muito boa qualidade, supostamente para acolher pesquisadores estrangeiros, mas que é uma colônia de férias muito interessante para os professores da Faculdade de Economia. E vai dinheiro lá o tempo todo. "Termas Manuelinas", porque criada pelo bom e simpático João Manuel Cardoso de Mello. Isso foi denunciado pela associação docente etc. etc., mas agora silenciou. Silenciou por quê? Porque agora está em curso a instalação na Unicamp de um Instituto Superior de Administração, que tem como patrocinadores o professor João Manuel Cardoso de Mello, o professor Delfim Netto e outros professores. O problema é que tipo de promiscuidade está ocorrendo, que você não pode nem sequer discriminar o que é dinheiro público e o que é dinheiro privado. Se você, como conselheiro da Unicamp, for no conselho da Unicamp dizer "eu exijo que o reitor coloque as contas da Funcamp para exame de conselho", ele vai dizer "não".
Wagner Nabuco - E o estatuto permite a ele dizer isso?
Roberto Romano - Aí é que está, permite e não permite. Sempre lembro de Marx, no Capital, quando ele está discutindo o tempo do trabalho, sempre chega uma hora em que a classe trabalhadora entra em confronto com o capitalista, então um está vendendo mercadoria e o outro está comprando. E nessa hora é direito contra direito e, quando é direito contra direito, decide a força. (risos) Agora, que força? Aí que chega o ponto. Onde vamos encontrar pessoas para quem o elemento público seja um valor tão grande que lhe permita enfrentar esse tipo de ação, sabendo das represálias que ocorrerão naturalmente.
Leo Gilson Ribeiro - A imprensa não poderia?
Roberto Romano - Fiz o máximo que pude. Teve um caso famoso, de um diretor do CNPq, com a mulher do diretor do CNPq com o irmão do diretor do CNPq, que importou areia e instrumentos para a pesquisa física. Isso está até no jornal. Requisitei a documentação e eles mandaram. E o que foi importado foram arruelas enferrujadas e etc. E com isso o CNPq foi bigodeado em 40 milhões de uma vez, algo assim. E não aconteceu nada. Como a operação foi feita nos Estados Unidos, o CNPq teve de entrar na Justiça americana e a Justiça americana condenou os ex-diretores do CNPq. Pergunto eu: como alguém pode chegar a ser diretor de uma instituição científica com esse qualificativo? E mais: é só ele que faz isso?
Wagner Nabuco - Com esse quadro todo, qual a perspectiva?
Roberto Romano - Não venham os privatistas com a universidade privada. Porque aí a coisa é muito pior. O Conselho Federal de Educação foi fechado por corrupção explícita dos donos das universidades privadas. Fiz parte de uma comissão de reconhecimento de uma universidade pública do Paraná, a Unicentro. E nós, a comissão, nos demos três anos para fazer o parecer inicial. E vimos coisas espantosas. Por exemplo, havia um curso de informática. E só existiam dois computadores. (risos) O professor de matemática da Unicamp disse: "Não posso aprovar um curso de informática com dois computadores". Aí o reitor pro tempore, porque não podia ser reitor ainda, nos chamou e disse: "Tem um problema sério aqui. É que o Requião (que era governador do Estado) brigou com a Xerox e brigou com a IBM. Como ele não pode proibir este negócio, ele baixou uma norma interna, de boca a boca, que todos os órgãos públicos não irão utilizar produtos da IBM e da Xerox. Então, os dois computadores que estão aí foram comprados com o dinheiro da CAPES, que é federal, e isso vai nos dar um tempo. Esperem, por favor, porque ele está saindo para ser candidato e o vice-governador já nos disse que vai nos oferecer isso". Então esperamos mais seis meses, e o curso de informática teve os seus cinqüenta computadores necessários para funcionar. Quer dizer, é esse tipo de coisa que o Executivo nacional faz. Eu disse o Requião, mas podíamos colocar qualquer nome. Então, nessa linha levamos três anos para fazer o reconhecimento dessa universidade e, quando fizemos, sabíamos que ela tinha defeitos terríveis. Por exemplo, fiquei encarregado da biblioteca. Eles listavam como obra fundamental de teoria as obras do general Emílio Garrastazu Medici. Precisei explicar longamente que como documento talvez, mas como base teórica..., coisa nessa linha. Nesse ínterim, pipocou reconhecimento de universidades privadas no Estado do Paraná que era uma maravilha. Cursos de medicina, então, era um em cada esquina. Isso se faz à custa de dinheiro, dada essa corrupção na universidade privada, dada essa ideologia de privatização, essa pronunciada preferência da grande imprensa em relação a isso. O fato de o Roberto Lobo ter saído da USP e ido para Mogi da Cruzes deu esse charme, mas que pesquisa aquilo lá está fazendo? Que ensino? Eu estava numa mesa da SBPC, estava presente a doutora Eunice Durham (risos), e eu disse: "As universidades privadas de São Paulo funcionam ao ritmo de ‘O mundo gira e a Lusitana roda’, porque, quando vem uma inspeção do MEC, as bibliotecas são emprestadas umas para as outras". Aí a professora Eunice disse que eu estava fazendo uma caricatura. Mas, na Universidade Tibiriçá, a biblioteca fica atrás do caixa! E a biblioteca da faculdade tem isto aqui, (mostra um espaço mínimo) entre a Enciclopédia Barsa e não sei o que mais. Você só pega o livro se estiver em dia com o caixa, e a biblioteca é ridícula, não existe, aquilo não é laboratório coisa nenhuma! Então, não há motivo para ter medo de fazer crítica à universidade pública, porque efetivamente a privada tem coisas terríveis.
Marina Amaral - São duas coisas diferentes a universidade privada e a pública?
Roberto Romano - Por definição, o que é privado tende a formar elementos para, no caso da luta social, garantir os interesses de quem é privado. Agora, tem uma coisa também, que venho dizendo há bom tempo e que as pessoas não levam muito em conta. É um pouco falácia dizer que a universidade brasileira forma as grandes elites econômicas. Filho de rico, mesmo, não de classe média, estuda na GV ou estuda em Harvard, Cambridge etc. Não estuda na USP. Existem levantamentos na própria USP dizendo que o nível salarial de boa parte dos pais dos estudantes não é lá muito elevado. Tem esse aspecto. É preciso tomar um pouco de cuidado, o mal, no meu entender, não é tanto o fato de existir gente rica nas escolas públicas, porque o problema é anterior, data da luta social e da luta econômica. O problema é que a universidade está financiando sistematicamente essa classe média que tem como horizonte a si mesma, a sua pequena propriedade. Nessa linha, não vejo saída, sou um pouco religioso, e digo: "É necessário que haja uma metanóia por boa parte da universidade". Quer dizer, uma conversão da mente. Porque, se continuarmos pensando dessa maneira, a defesa da universidade pública gratuita etc., sem outros bemóis no seu interior, vamos caminhar para o suicídio, porque a classe média vai procurar a sua saída, não existe nenhum mecanismo possível nessa linha, não vejo uma forma de obrigar a pessoa a devolver o dinheiro que foi aplicado nela. Se os professores não se sentem compromissados, se se aposentam com 47 anos de idade, é um escândalo, se os próprios professores fazem isso...
Sérgio de Souza - Ou vão fazer assessoria.
Roberto Romano - Vão fazer assessoria, vão ganhar dinheiro, vão fazer parceria com a iniciativa privada. E agora, nesse projeto de reforma da universidade, esse negócio das organizações sociais que estão planejando, as universidades seriam transformadas em organizações que não seriam do Estado e também não seriam propriamente empresas, seriam "organizações sociais". Mais ou menos isso, o picaretol sempre começa por aí. E essas organizações sociais teriam determinada quantidade de dinheiro, básica, e procurariam junto ao próprio Estado ou à iniciativa privada os meios que faltam.
Marina Amaral - Essa é ruim.
Roberto Romano - Já há várias. O CNPq é uma organização social. Essas coisas estão sendo feitas.
Roberto Freire - Mas o dinheiro vem do Estado, não é? Do CNPq, por exemplo?
Roberto Romano - O elemento básico é o seguinte: o Estado coloca o dinheiro, e aí teremos a parceria com a iniciativa privada.
Wagner Nabuco - Eleva a produção...
Roberto Romano - Eleva a produção, tira a universidade da crise – são receitas miraculosas, fantásticas!!
Milton Santos - Poder pagar corretamente...
Roberto Romano - Pagar bem seus professores... professor Milton, já existe uma coisa que é monstruosa: foram reunidas as nove universidades ditas de pesquisa do país.
Sérgio Pinto de Almeida - Quais são, professor?
Roberto Romano - Unicamp, USP, UFRGS, Unesp, UFMG, UFRJ, UnB, Unicesp (federal de São Paulo), PUC-RJ. Elas já se reuniram mais de dez vezes, reitores, pró-reitores, todos, e já definiram um plano de salvação delas. E dentro desse plano você tem a terceirização de serviços, tem a privatização de serviços etc. etc., e o que os reitores dizem quando são criticados é: "Bom, mas preciso pagar melhor os meus professores, senão os perco, eles vão para o exterior". Até quando? Sempre digo, não é o corpo docente inteiro da UFMG ou da USP etc., mas a sua direção decretou que essas nove são mais excelentes que todas as outras. E que, se as outras forem destruídas, tudo bem, porque elas estão salvas. Isso é uma coisa horrorosa. E essas universidades não terão os entraves burocráticos das outras. Que de fato são entraves e são burocráticos. Agora, você não vai resolver isso colocando a universidade na beira da esquina do mercado. Se você acha que é isso, você está perdido.
Entrevistadores: Marina Amaral, professor Milton Santos, Leo Gilson Ribeiro, José Arbex Jr., Roberto Freire, Sérgio Pinto de Almeida, Wagner Nabuco, Marco Frenette, Sérgio de Souza.
Roberto Romano
Revista Caros Amigos entrevista com Roberto Romano
Este filósofo, professor da Unicamp, sabe e sente na pele o que está acontecendo com a universidade brasileira. O quadro é mais que comprometedor, ultrapassa o limite da falta de responsabilidade. E só não vê quem não quer.
Sérgio de Souza - Como começa sua vida, professor?
Roberto Romano - Uma parte da minha família é do Rio Grande do Sul, que subiu e que sumiu talvez no ar, não sei onde. E outra parte é de caipiras de Tatuí e Itapetininga, que desceu e se encontrou no norte do Paraná, onde nasci e vivi boa parte da infância e adolescência. E depois São Paulo, onde fiz parte de movimentos estudantis, de movimentos católicos, de JEC inicialmente. E por isso fui parar nos dominicanos. Fui dominicano doze anos, saí e essa é a minha vida.
Marina Amaral - O senhor foi atraído pela filosofia nessa época dos dominicanos ou depois?
Roberto Romano - Não, bem antes. Tínhamos em Marília um professor chamado Ubaldo Puppi, que lecionava filosofia e era também um líder católico de esquerda, foi preso em 1964. Quando surgiu a AP, a Ação Popular, nós todos que gravitávamos ao redor do professor Puppi ficamos apaixonados pela filosofia.
Marina Amaral - E qual a relação entre o convento e o seu interesse pela filosofia?
Roberto Romano - No convento dominicano iria fazer estudos teológicos apenas para ordenação e não para a vida confessional, porque eu disse que queria fazer filosofia mesmo. Então me autorizavam, como a vários outros, a fazer filosofia na USP. E fizemos. Depois iria fazer o doutorado em filosofia pela ordem, na Suíça, com o frei Carlos Josaphat.
Marina Amaral - Isso foi quando?
Roberto Romano - Isso foi em 1967, 68 e 69, fiz o vestibular da USP, passei, mas aí veio um ano de noviciado, quando a pessoa é proibida de sair do convento etc., depois fui preso em dezembro de 1969, passei um ano na cadeia, e aí então voltei para a universidade. E acabei fazendo doutorado na École des Hantes Études de Paris.
José Arbex Jr. - Como foi a sua passagem do cristianismo do convento para a militância da AP?
Roberto Romano - Fui da AP antes do convento.
Marina Amaral - O senhor tem sido um dos maiores críticos do ensino superior no Brasil e até usou a expressão "genocídio programado"...
Roberto Romano - É muito interessante que comecemos a falar de universidade, porque o que aconteceu nestes últimos seis anos no Brasil foi um desmonte programado, intencional, racional, de todo um sistema de produção de saberes. O ministro Paulo Renato chegou a dizer na revista Exame que seria ótimo imitar a Coréia, não incentivar cursos de pós-graduação no país e mandar gente, por exemplo, para Harvard, porque era mais barato. Isso esconde o quê? Esconde o desmonte dos laboratórios, esconde a produção de remédios, esconde a pesquisa sobre AIDS, sobre o câncer, sobre uma série de coisas que estavam sendo feitas aqui. Há certos cientistas, nada radicais, como o senhor Ésper Cavalheiro, pró-reitor da Universidade Federal Paulista, que diz: "O dinheiro do Pronex (Programa Nacional de Excelência) não vem e eu tenho tecido cerebral apodrecendo no laboratório". Isso eu chamo de genocídio programado. Porque é impossível que essas pessoas que estão no governo, a começar pelo presidente da República, não saibam o que estão fazendo. Você pode até ser condescendente com pessoas como Collor, que é um menino rico do Nordeste, um sinhozinho, e que tem aquela cultura para enganar trouxa, fala muitas línguas... Agora, a formação do Fernando Henrique não lhe permite dizer que não sabia. Portanto, ele e o seu ministério, a começar pelo ministro Paulo Renato, têm uma responsabilidade muito grande sobre o que está acontecendo. Ao abraçar o Antônio Carlos Magalhães, e ao abraçar essa via do possível, o que fez ele? Escolheu o caminho da tradicional dominação brasileira, violentíssima, paternalista e mentirosa. Fui este ano a Salvador para dar uma palestra, no dia do aniversário do Antônio Carlos Magalhães. Me senti mal. A mais de 5 quilômetros da casa desse senhor, havia faixas e mais faixas de municípios não sei das quantas com os dizeres "o município tal está prostrado aos pés do Antônio Carlos Magalhães", uma coisa assim terrível. E, quando outro, o ministro Francisco Weffort, que tem duas teses sobre populismo e portanto sabe o que está falando, diz que Antônio Carlos Magalhães tem condições de conquistar a simpatia popular, isso para mim é crime. Não tem outro nome. Existe uma pesquisa do professor José Arapiraca, já falecido, da Universidade Federal da Bahia, interessantíssima, sobre o nome das escolas do Nordeste e da Bahia. Então, "Padre Vieira", trinta escolas, "Antônio Carlos Magalhães", trezentas e cinqüenta e poucas escolas. (risos) Isso é roubo do patrimônio simbólico público!
Sérgio de Souza - Em que nível se daria o genocídio programado?
Roberto Romano - Se alguém conhece a estrutura de dominação de classe do Brasil, se conhece a irresponsabilidade das elites dirigentes em relação à população, e intencionalmente desmonta laboratórios, como aconteceu infelizmente aqui em São Paulo, qualquer visita ao Butantã, por exemplo, já dá idéia do que está por trás. Quer dizer, essa pessoa, vou lhe dar outro nome, que não é muito de esquerda mas infelizmente é um dos elementos essenciais do governo Covas, o senhor Ioshiaki Nakano, teve o cinismo de dizer a um grupo de cientistas: "Hoje, na era da Internet, a gente não precisa mais de institutos de pesquisa aqui no Brasil. Apareceu uma moléstia, você acessa a Internet, vem o remédio e está tudo resolvido". (risos) Isso não é genocídio programado?
José Arbex Jr. - Professor, uma postura que acho admirável no professor Milton Santos é quando ele fala que o intelectual é um traidor. É aquele que trai as expectativas que depositam nele em obediência unicamente a suas próprias convicções. Analisando, por exemplo, o que os intelectuais estão fazendo na USP ou na Unicamp, fico abismado com a paralisia geral, há uma desarticulação total na universidade. Por que isso?
Roberto Romano - Concordo em gênero, número e caso com o professor Milton, em todas as atitudes, e digo mais: sempre repito, para irritação dos meus colegas, que não existe instrumento mais flexível no universo do que a espinha dos intelectuais. (risos) Por exemplo, a questão dos direitos humanos. Vou dizer coisas que aconteceram. Anos atrás, fui procurado pela Anistia Internacional para servir como intermediário junto às universidades de São Paulo em relação a um programa de educação para os direitos humanos. Diziam eles: "Não somos pedagogos, psicólogos, filósofos ou sociólogos, somos liberais. Mas temos algum dinheiro e queremos fazer livros e programas etc. Então precisaríamos da assessoria dessas pessoas".. Procurei na Unesp as pessoas que poderiam dar andamento ao projeto, e ela convocou uma reunião para discutir com o pessoal da Anistia Internacional. Dessa reunião resultaram alguns grupos de estudo. Boa parte deles, como tenho uma língua horrorosa, mesmo assim ficou um pouco atraída porque iria existir dinheiro para a publicação, mas em todo caso estavam lá.
Sérgio Pinto de Almeida - Quem sabe, umas passagens aéreas também. (risos)
Roberto Romano - Há um autor que diz isso, que as universidades de hoje estão se transformando no seguinte: a pessoa mais importante é o gerente de recursos, e os professores todos são globetrotters que vão vender o logotipo pelo mundo afora. Bom, no caso da USP eu não procurei, porque lá existem grupos de estudos contra a violência, pela consciência negra etc., enfim, falei: "Não é necessário, o pessoal da Anistia que entre novamente em contato com eles". E fui à Unicamp, a minha universidade. Falei com o pró-reitor de pós-graduação, José Dias, que me indicou todos os diretores que poderiam estar interessados, sobretudo da área de humanas. Além do que, conheço bastante a universidade. Pois bem, a Faculdade de Educação da Unicamp recebeu o pessoal da Anistia, numa reunião de congregação, durante cinco minutos, o presidente, que era o diretor, disse: "Agora acabou, que vamos tratar agora de assuntos sérios".. E o pessoal da Anistia saiu sem nada, nada foi discutido, nada foi feito. Mas no meu instituto foi pior. Ele é coalhado de gente de esquerda, gente que escreve livros de direitos humanos. E a congregação do instituto se recusou a receber a Anistia Internacional porque não era um "assunto acadêmico", e numa congregação só se conversam assuntos acadêmicos. Diante da recusa, procurei a diretora do instituto, a professora Mariza Correia, antropóloga, pensando: "Pelo menos uma conversa com a diretora do instituto, já que a congregação não quer conversar".. Chegamos na porta do gabinete da diretora, e demos com o aviso: "Audiências todas canceladas, porque estamos discutindo as bolsas da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior)". Meti o pé na porta, entrei berrando feito um italiano e disse: "Pelo menos em cinco minutos a senhora vai ceder". Aí cedeu. Agora, sabe quando foi isso? Isso foi uma semana depois do Carandiru.
José Arbex Jr. - Nossa!
Roberto Romano - Então, quando você fala de ética, tenho algum problema de ordem conceitual. Ética, no sentido aristotélico, no sentido hegeliano, é o conjunto de hábitos físicos e mentais que foram produzidos historicamente e que se tornaram automáticos, de tal modo que as pessoas fazem e não têm consciência. Por exemplo, a ética do trânsito brasileiro é das mais hediondas do mundo, mas é ética. Distingo isso daquilo que chamamos de consciência moral. Então, nesse sentido, a ética intelligentsia brasileira é a ética de servir ao sinhozinho. Essa é a ética, a de produzir uma imagem de si como bastante radical para ter condições de negociar depois uma adesão retumbante.
Milton Santos - Não será também a ética da subserviência à intelligentsia forânea hegemônica?
Roberto Romano - Ah, sim, o senhor pôs o dedo na ferida: temos uma intelligentsia que coloca para si mesma o padrão internacional, e que vive aqui num eterno banzo de uma França não existente. Enquanto isso, convive muito bem com a casa-grande.
Leo Gilson Ribeiro - O senhor não acha que os exemplos semeados por Simone de Beauvoir, Sartre, opostos à covardia Merleau-Ponty, durante o período de ocupação da França, também não serviram de parâmetro para muitos intelectuais, entre aspas, brasileiros agirem de maneira aética?
Milton Santos - Eu queria fazer uma interrupção. Serão intelectuais mesmo ou só letrados? Acho que houve uma multiplicação do número de letrados, e uma redução do número de intelectuais.
Roberto Romano - É verdade, essa distinção sartriana acho fundamental. Existem os filósofos, os parafilósofos – que trabalham todo dia –, os pensadores e os ideólogos. Os filósofos são aqueles que criticam, que abrem caminho, que se arriscam, que arriscam o erro, isso é um elemento fundamental. Não existe pensamento filosófico ou científico sem direito de errar. E esse direito está sendo negado pelo tipo atual de avaliação da universidade. Você tem de acertar sempre, é a fábrica de pãozinho, a receita foi dada, um mestrado é feito em dois anos e meio, três anos, e um doutorado em quatro. E dane-se quem não fez isso aí. E na avaliação também da produção teórica.
Milton Santos - Eventualmente, talvez a gente pudesse cruzar com a questão do totalitarismo, acho que foi levantado que na vida acadêmica isso hoje tem um papel muito forte. Totalitarismo mesmo.
Roberto Romano - O senhor acha?
Milton Santos - Acho, sim.
Sérgio Pinto de Almeida - Deixa eu colocar uma provocação no ar, que é o seguinte: há uma fé nas pessoas de que existem sinais claros de descontentamento na sociedade. No caso do meio universitário – não vamos nos restringir ao intelectual da colocação do professor Milton, mas no meio acadêmico –, quando o senhor conta um episódio tão patético como esse da Anistia indo à Unicamp, quando a gente vê uma série de manisfestações isoladas de professores, pergunto: não é possível esses professores, um da Unicamp, um da Unesp, um da UFRJ etc., criarem uma instância mas não burocrática, um fórum de discussão com uma programação que possa ser levada de forma mais sistemática, ordenada, por meio de encontros, de seminários, uma programação que possa ter alguma representatividade, algum percurso pelo país? Será que essa também burocracia da universidade não restringe a ação dos descontentes?
Roberto Romano - Acho que sim. Talvez por isso o professor Milton esteja falando de totalitarismo hoje na universidade. Porque as coisas são dadas, o pacote é dado, e o modo de executar e de avaliar são dados. São a priori, e você tem de levar em conta a priori. E, se não leva em conta, você tem sempre o bate-estaca de plantão, que está ali do lado. Quer dizer, fiz parte da avaliação da CAPES deste ano da Filosofia.
Milton Santos - Filosofia da USP ou do Brasil inteiro?
Roberto Romano - Do Brasil todo. Até agora, o comitê de avaliação era soberano. A partir deste ano, não, você tem acima dos avaliadores um conselho superior. E esse conselho superior estabeleceu determinados parâmetros do que é ciência, do que é pesquisa, do que não é etc. Antes, os avaliadores tinham sempre a possibilidade de se comunicar com os programas e dizer: "Olha, está faltando tal coisa, tal dado etc.".. Agora chegamos e estava tudo no computador, o que existia eram dados do computador. E antigamente as notas eram A, B, C, A+, também era uma bobagem, mas enfim... Aí recebemos a seguinte ordem: "A nota será numérica, de 0 a 7; 7 apenas aqueles programas que tenham condições de ‘concorrer internacionalmente’ (ri) em termos de produção científica".. E o que tínhamos eram os dados do computador. Não existiam pessoas, não existiam instituições, não existia nada, existiam números. Publicou cinqüenta artigos, foi a não sei quantos não sei o que etc. etc. e o peso específico. E um dos elementos que contam é o tempo de titulação dos alunos. Então, se um programa, por exemplo, levou em média quatro anos e meio, ele perde pontos. Note, não sou fanático da qualidade, acho que quantidade também tem um elemento muito importante. Mas você absolutamente recusa esse critério, a possibilidade do erro. Quer dizer, um menino vai fazer doutorado na área de biologia. Ele parte de um conhecimento, ele tem informes, ele tem um orientador que é uma pessoa responsável etc. etc. Mas ele não vai programar o sistema lógico restrito. Ele vai encontrar elementos que são imponderáveis, que podem inclusive colocar por terra todo o aparato intelectual que ele movimentou na produção do projeto. E vai ter de recomeçar, e muitas vezes é dessa maneira que se faz ciência. Você nega aquelas verdades estabelecidas ou mostra que aquelas verdades não abrangem todo o real. Ora, isso está negado, porque, se alguém ficar mais cinco meses revendo a sua tese, às vezes nem revendo hipóteses mas revendo a própria tese, o seu programa perde pontos. Havia um sistema de cooptação do número de bolsas com a nota da CAPES, que agora está desvinculado. Agora, você não tem mais relação entre a produção e a nota. E recursos. Antigamente, se um programa obtinha nota A, ganhava direito a determinado número de bolsas. Hoje, não, ele pode ter nota 7 e esse direito não está garantido, porque o conselho superior vai decidir.
Marina Amaral - E quem é esse conselho superior?
Roberto Romano - O conselho superior tem sumidades que me dispenso de dizer o nome, porque...
Marina Amaral - Mas são reitores, pessoas ligadas ao governo?
Roberto Romano - Que são ligadas ao governo, evidentemente. Mas que haja grande refinamento intelectual... Alguns até têm uma formação boa, é uma produção boa mas são de uma arrogância! Vou dar um exemplo: no caso da Filosofia, não demos nenhum 7, demos nota 6 para seis programas. Aí recebemos um papel assim, sem timbre, sem nada, onde uma das pessoas, que agora é assessora do Bresser Pereira no CNPq, redigia assim: "Senhor coordenador e membros. Não é possível que tais e tais programas - no caso, Federal do Rio Grande do Sul, Federal do Rio de Janeiro e PUC do Rio de Janeiro – sejam nota 6, porque não tem o número de publicações adequado. Providencie sobre isso". E nem assinado!
Leo Gilson Ribeiro - É como na universidade americana: publique ou pereça?
Roberto Romano - É pior. Aqui eles têm essa exigência. Agora, como você pode chegar a publicar aqui no Brasil? Quais são as condições de publicação? As editoras universitárias são poucas, a grande maioria não tem pessoal qualificado – e aí quero destacar uma honrosa exceção, a editora da Unesp, que é muito boa – e as editoras privadas ou não têm capital ou não têm interesse em publicar. Então, isso eu não teria coragem de chamar de totalitário, mas chamaria de autoritarismo atroz.
Marco Frenette - Professor, nessa dificuldade de publicação não entra um pouco também a linguagem hermética, e às vezes extremamente confusa até para os próprios acadêmicos?
Roberto Romano - Isso também.
Marco Frenette - Costumo pegar livros que são simplesmente ilegíveis, e isso inviabiliza a publicação para um público um pouco maior que o acadêmico.
Roberto Romano - Essa é uma condição para a formação das quadrilhas universitárias. Aliás, a quadrilha que deu certo foi a dos economistas.
José Arbex Jr. - Deu certo?
Roberto Romano - Deu certo, porque estão acabando conosco.
Marina Amaral - Para eles, deu certo; pra nós, não.
Roberto Romano - Você produz o idioleto, que só seria dominado pelos que seriam exímios naquela área. Então, esse idioleto é o filosofês, é o sociologuês, é o antropologuês etc., e o economês. Aí, o sujeito usa esse negócio, e isso é o que possibilita muita picaretagem e receber muito dinheiro supostamente em cima de pesquisa. Agora, acontece que, quando isso é traduzido em livro, evidente que o grande público não é composto pelos elementos da quadrilha. Você tem um público muito heterogêneo, que pode, digamos assim, não concordar com essa linguagem. Bom, aí dana-se.
Marco Frenette - Ele se vê obrigado a escrever nessa linguagem para ter um mínimo...
Roberto Romano - Para ter o reconhecimento dos seus pares. E para que o assessor, quando bater o olho em três palavras-chaves... Tem até palavra-chave! Isso eu acho que é uma coisa...dizem que é para facilitar a consulta. É nada!
Milton Santos - Agora, os que são normais, desculpe a pergunta, não deveriam se recusar a comparecer nesses comitês?
Roberto Romano - Acho que sim, eu...
Milton Santos - Não é nada direto.
Roberto Romano - Não, é verdade, o senhor tem toda a razão.
Milton Santos - Há dez anos que não vou lá. A minha discordância com a sua observação de agora é o tempo, porque há dez anos que vi que é impossível estar lá, que esse processo já estava se delineando há dez anos. De indução, e agora de um consenso que permitiu que o senhor fosse lá, e que ao meu ver não deveria ter ido.
Roberto Romano - Confesso ao senhor que fiquei bastante preocupado pelo fato de ir, e pelo fato de ter sido convidado. O senhor tem razão, porque não poupo...
Sérgio Pinto de Almeida - Ganha para ir?
Roberto Romano - Você ganha a passagem, o hotel, o lanche no meio da tarde.
Marina Amaral - E essa CAPES é constituída como?
Roberto Romano - Ela é uma instituição do Ministério da Educação, e teve como função inicial justamente melhorar o padrão de formação dos professores, dos pesquisadores.
Milton Santos - Foi o Anísio Teixeira que idealizou isso, não foi?
Roberto Romano - Anísio Teixeira. E pouco a pouco ela começou a assumir uma atitude de financiadora.
Milton Santos - De policiamento do trabalho.
Sérgio Pinto de Almeida - De distribuição de verbas também.
Roberto Romano - Sim, sobretudo de distribuição de verbas. Bolsas de estudo, dinheiro para projetos, um projeto de curso, de trabalho etc.
José Arbex Jr. - O senhor não acabou de responder a pergunta do Sérgio Pinto sobre a articulação de professores que tenham uma percepção crítica...
Roberto Romano - O problema é que não sei o que acontece do governo Sarney pra cá... Sei um pouco, tinha instrumentos de intimidação, a Rede Globo, essas chantagens todas, isso eu sei, mas acho que é alguma coisa um pouco mais complexa. Precisaríamos conversar um pouco mais sobre isso. Mas não chega a existir a força para as pessoas se reunirem. No mês retrasado estive em Santa Catarina, num fórum de pesquisa da Federal de Santa Catarina. E é uma coisa interessante, porque as pessoas estão chegando a um ponto que nem sequer para conseguir esses recursos, ou para entrar em contato com os fornecedores de recursos, se reúnem mais. No ano passado fiz cinqüenta viagens pelo Brasil inteiro, falando da questão da autonomia universitária, criticando a política do governo etc. Não que eu esteja falando do Ibope, mas normalmente as audiências não passam de quinze a vinte pessoas, em mesas-redondas com gente de peso nacional e internacional. E nessa de Santa Catarina tinha mais gente na mesa do que no plenário! Com a seguinte mudança: na mesa, fora eu, que não tinha peso nenhum do ponto de vista político-institucional, estavam o diretor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), o diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul e o diretor científico daquilo que eles chamam de fundação, lá de Santa Catarina. Sabe, então, nem os puxa-sacos estão se reunindo mais. (risos)
Marina Amaral - O senhor está dizendo que a universidade não debate mais?
Roberto Romano - Não, e existem meios e ilusões que estão alimentando esse estado de coisas. Na Unicamp, quando o Paulo Renato era o reitor, desenvolveu a idéia de fazer a universidade assim, (faz um desenho), quer dizer, a Unicamp é uma bolinha e os núcleos de pesquisa ficariam na periferia. Então, cada núcleo de pesquisa em cada área arrecadaria recursos do Estado ou da iniciativa privada para as pesquisas, de tal modo que as pessoas desse grupo de pesquisa estariam liberadas da servidão universitária, constitucionalística etc. etc. Fiz parte de um deles, não por opção minha, mas porque era chefe do departamento, e o chefe do departamento tinha de fazer parte do conselho do núcleo de estudo de políticas públicas. Mas pedi demissão, dizendo: "O departamento que mande outra pessoa" – justamente, a partir do primeiro relatório sobre o governo Montoro. Se vocês forem na Unicamp, peçam esse primeiro relatório e vejam o que é aquilo. É uma peça de propaganda pura e simples. Onde a estatística foi falseada etc. etc., no estilo pior do ideólogo, enfim, esses grupos. Então, haveria na física, na engenharia etc. etc., e a universidade seria reduzida aos professores que dariam aulas e que, portanto, não fariam pesquisas. Isso deu errado porque o Plano Cruzado deu no que deu. Depois veio o Plano Collor, e esses núcleos ficaram meio fantasmáticos na Unicamp. Com a vinda do Pronex, as pessoas que faziam parte desses núcleos adquiriram uma esperança nova. "Virá o dinheiro do Pronex, somos excelentes" etc. Então, você tem espaço para os excelentes dentro dos prédios, eles são considerado excepcionais etc. etc. Veja, o que acontece quase sempre é que, quando não há essa defesa ou essa permanência dentro dos quadros mínimos do que seria uma universidade, os grupos procuram a solução pessoal. E correm atrás dessa ilusão. Então, no caso, durante quatro anos, o Pronex serviu exatamente para abafar a possibilidade de você reunir as pessoas para discutir a universidade no sentido exato da palavra. Eles não estavam interessados na universidade.
Marco Frenette - Não seria possível pensar a universidade de uma tal maneira que quebrasse esse isolamento? Porque os produtores são os professores. E o aluno sofre muito. Universidade pública, ou privada, o que acontece é que se enche uma sala com cinqüenta alunos, e a pessoa se forma em letras e você pergunta de um Schiller, um Goethe, ele não sabe localizar esse escritor. Como o senhor vê essa condição da universidade como fornecedora de conhecimento para os alunos?
Roberto Romano - Vou dizer uma coisa que é meio complicada, mas não gosto de pedagogo. Sobretudo não gosto das faculdades de educação. Chamo a Faculdade de Educação da Unicamp de Pentágono, (risos), não por causa de o prédio ter cinco pontas, mas porque ela domina praticamente toda a atividade docente, da graduação à pós, e a avaliação também, criando situações tragicômicas. Por exemplo, um médico que trabalhe com seus estudantes numa enfermaria, ensinando etc., não é promovido na Unicamp porque não tem o número de horas-aula. A hora-aula é a terminologia do flanelógrafo, quer dizer, uma sala com aquele negócio lá, aquilo é hora-aula. Os padrões são esses. A linguagem é muito reveladora. Temos "grades curriculares" não é por acaso. O próprio Schelling, no momento em que era ainda meio fã da Revolução Francesa, teceu considerações sobre o ensino na universidade alemã e dizia: "Mas quem fez os currículos, baseado em que, para quem?" Quer dizer, o jovem entra e tem de seguir aquelas cadeiras, aquelas disciplinas – o nome também é disciplina –, e quando ele sai está com aquelas disciplinas na cabeça e no corpo. Mas isso não tem quase nada mais a ver com o que as pessoas estão fazendo. No nosso caso, da filosofia, existe história. Por exemplo, não é por acaso que um dos intelectuais mais respeitáveis do país, mas teve uma história de autoritarismo muito grande que é o Tristão de Athayde, ficou muitos anos no Conselho Federal de Educação, e lá ajudou a elaborar um currículo de filosofia que é imposto até hoje. A USP tem até hoje metafísica, só que ela dá outra coisa, mas ela tem aquilo, uma coisa muito complicada. Então existe a intenção do currículo, que corresponde a determinados interesses, no caso eram os interesses católicos, e existe a realização dos curricula. Mas o problema não está aí, o problema está em outro aspecto. Gosto de ser bastante prático nos momentos práticos: a Unesp é uma universidade criada pelo Maluf para abrigar um ex-Secretário de Educação dele. Pegou todos os institutos de ensino isolados superiores do Estado, e fez a Unesp, cuja sede legal era em Ilha Solteira, e a sede real é na praça da Sé, em São Paulo. O que fazia, por exemplo, no dia de reunião do conselho universitário, com que os diretores pegassem um avião e os seus motoristas fossem de carro esperá-los no aeroporto de Congonhas, para levar para a praça da Sé, e enchiam a praça da Sé de tal modo com seus carros, que o trânsito ficava congestionado. Mas era uma instituição criada de cima para baixo, autoritária, com laivos de fascismo. Quando começou o governo Montoro, a Unesp fez um congresso de modificação, de reinstauração. E criou três comissões grandes: ensino e pesquisa; carreira docente; e poder na universidade. Ensino e pesquisa, você entrava facilmente na sala, porque tinha umas quinze, vinte pessoas. Carreira docente, um pouquinho mais, porque isso interessava alguns professores. Você não conseguia chegar perto da sala do poder. Então, esse é um retrato perfeito da cabeça desse pessoal. Poder, para mim, é algo que se concentra naqueles três monopólios que o Estado se arrogou, e que retirou da sociedade.
Leo Gilson Ribeiro - Quais?
Roberto Romano - Monopólio da força física, só o Estado tem o direito de prender ou declarar guerra, nenhum particular tem mais esse direito. Segundo monopólio, a norma jurídica. Só o Estado pode editar leis cogentes para todo e qualquer indivíduo ou ele próprio. E o terceiro monopólio é o da gestão do excedente econômico. Só o Estado pode estabelecer impostos, taxas etc. etc. Onde a universidade tem isso? Onde um reitor tem isso? O que acontece é que temos representantes do poder dentro da universidade. Esses reitores são embaixadores do poder, são servos do poder. E, quando eles têm boas relações com os centros de poder, seja militar ou policial, como aconteceu na USP durante anos, mesmo no período anterior à ditadura militar de 1964, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista jurídico, esses sujeitos fazem as suas universidades até crescer.
Milton Santos - Uma das perguntas que preparei para lhe fazer é exatamente esta: me parece que dentro das universidades, talvez em função das novas condições de realização do trabalho acadêmico, é que essas pessoas que se renovam nos postos de comando, que distribuem as notas, que organizam o nosso trabalho impondo normas, inclusive prazos, constituem um grupo que tem uma certa autonomia de existência, e que se opõe à idéia da universidade. Isso é grave. E aí já engato com outra questão: será que estamos abdicando do dever da crítica interna, buscando só criticar o ministério, mais não sei o que, mais as agências, mas as próprias universidades recusam essa crítica interna? Acho que um dos objetos da crítica interna seria ver essa produção interna de buroprofessores. Quer dizer, são aqueles indivíduos que sai um, entra outro, mas é o mesmo grupo, que é inútil como esses pró-reitores quase todos, que são pessoas inúteis porque são intermediários dos quais não necessitamos na realidade, e que são um estorvo inclusive à produção intelectual.
Roberto Romano - A universidade não consegue autonomia por causa desses grupos.
Milton Santos - Que são internos a ela. E eles não deixam o debate se fazer.
Roberto Romano - O senhor tem razão. Veja bem, professor, há um elemento que acho até mais grave ainda. Me parece que a universidade mimetiza, de maneira perversa até, porque ela é uma espécie de parasita, mimetiza a estrutura de poder do Estado. No Estado brasileiro, você tem o Executivo, que supostamente é onipotente, e tem o Judiciário e o Legislativo, que vivem em função do Executivo. Na universidade, você criou a figura do reitor, que está acima do conselho, acima de qualquer coisa. Mas, na verdade, para que essa onipotência exista, é necessário que tenha os seus grupos de sustentação.
Milton Santos - Os nomeados depois das eleições.
Roberto Romano - Exatamente.
Milton Santos - Eles são cabos eleitorais, não são mais colegas nossos.
Roberto Romano - Não, eles são administradores profissionais.
José Arbex Jr. - É o tacão de fora.
Milton Santos - Ou o cheque de dentro.
Roberto Romano - No caso da Unicamp, todo candidato a reitor é obrigado a dizer, quando está em campanha, que a Unicamp é um anãozinho com uma cabeçona bem grande. A cabeçona é o número de funcionários e de grupos que ficam na reitoria em detrimento do lugar onde se deveria fazer pesquisa e ensino. Porque a cada novo reitor é necessário acomodar os velhos grupos e os novos. Então, você vai aumentando a cabeçona da universidade. E você tem uma troca fisiológica tão grave como no caso do poder federal. "Então eu te dou isso, te dou aquilo, você fica com tal setor, eu te dou tal e tal pró-reitoria, você fica com isso, você fica com aquilo." Mesmo a atual reitoria da Unicamp, que supostamente é uma oposição há doze anos de direção, teve de lotear direitinho, bonitinho, as coisas. Bom, esse é um ponto. Agora, tem outro elemento que é grave e que normalmente os universitários não gostam de conversar, que é o problema das fundações. Não vou nem falar da USP, porque sei que aquilo lá é um horror. Aquilo lá dá vários contos policiais e várias coisas mais. Na Unicamp tem a Funcamp, você tem uma série de "amps" lá dentro. Essas fundações são mantidas com dinheiro da universidade, ou com dinheiro da FAPESP, ou com dinheiro do CNPQ ou com o dinheiro da CAPES. Então são dinheiros públicos que estão ali.
Milton Santos - Das empresas também.
Roberto Romano - Das empresas também. Tem um lá, chamado de Uniemp, que é uma beleza. Mas, na última reitoria, toda vez que a oposição queria, no conselho universitário, examinar as contas das fundações, o reitor retirava de pauta. E chegou-se a dizer que eram entidades com direito privado. É uma monstruosidade jurídica. Não existe. O que aconteceu? Essas fundações distribuem os dinheiros para pesquisa, para os grupos etc., evidentemente para quem é amigo do rei. Agora, no caso do funcionalismo, muitas nomeações eram feitas por ali. No caso do Baneser, também teve esse negócio. Publiquei um artigo na Folha de S. Paulo, que dizia: "É preciso furar esse tumor na universidade".
Marina Amaral - O senhor dizia que é preciso divulgar que as pesquisas estavam sendo financiadas, quem estava nelas e quais eram os objetivos...
Roberto Romano - Até hoje, você tem uma banca de doutorado. Alguém fez uma banca de doutorado, você senta lá, por mais que você saiba que tem um jogo de cena, tem: "Eu aprovo o teu aluno, você aprova o meu".. Mas existe um limite, que é justamente o fato de ser pública essa defesa. Portanto, se houver plágio ou alguma coisa, alguém pode dizer: "Olha, isso aí está invalidado". Portanto, quem está na banca está empenhando publicamente o nome. Agora, que responsabilidade pública tem alguém que julga um projeto de pesquisa no anonimato mais absoluto?
Marina Amaral - Mesmo os projetos que são escolhidos pelas fundações para ser financiados, não é?
Roberto Romano - Exatamente. Agora, esse anonimato serve para você não prestar conta dos dinheiros, mas serve também para você cortar idéias, perseguir inimigos, "definir" um rumo definido do saber.
Sérgio Pinto de Almeida - E você aprova um tipo de pensamento.
Roberto Romano - Sim. É um mecanismo muito bem-feito. A FAPESP está agora publicando o nome de quem pediu o projeto, o montante do projeto, o tempo em que o projeto será feito. Isso já é um avanço, porque as outras não têm nada disso. Ninguém fica sabendo quem aprovou, quem vai aprovar. Aí, agora vou contar um caso que é mais grave. Eu estava um dia no Instituto de Filosofia e recebi o telefonema de um alto dirigente do CNPq. "Professor, estamos mandando para o senhor um projeto, e vamos pedir o seu parecer negativo." (risos) Vocês vão ver o negócio, é muito mais grave. "Estamos pedindo o parecer negativo pra todos." "Não, mas..." "Por favor, o senhor não fique bravo, o senhor leia o projeto que o senhor vai entender." Li o projeto e entendi. Era um projeto liderado por um ex-reitor de uma universidade do Nordeste: Por que Existe Corrupção no Brasil. Esse projeto indicava quatro filósofos e cinco sociólogos. E você faria aquilo que eles chamavam de fenomenologia. Fenomenologia significa pegar o estudante, o monitor, ele iria para a praça pública e perguntaria ao povo o que achava da corrupção. Aí os filósofos entravam com alguns textos de Platão, uns textos de Rousseau, alguma coisa assim, os sociólogos etc., juntava tudo com as entrevistas e a pesquisa estava feita. Para isso, eles pediam viagens para Londres, viagem para não sei onde, pediam computadores, pediam gravadores etc., bolsa para os estudantes...
Milton Santos - Qual era o custo disso?
Roberto Romano - O custo era de aproximadamente 1 milhão de dólares!
José Arbex Jr. - Bom, está explicada a corrupção no Brasil. (risos)
Roberto Romano - Aí fiz um parecer dizendo que parabenizava os componentes, porque sou filósofo, tenho uma tendência de idealista e gosto quando o círculo lógico se completa perfeitamente. Então, os parabenizava porque era o primeiro projeto corrupto sobre corrupção. (risos) E por que eles estavam pedindo parecer negativo? Porque já havia dois positivos. E o projeto foi aprovado, sim, senhores. Evidente que a loucura do 1 milhão não entrou. Diminuíram as pretensões. Sete meses depois estou de novo no Instituto de Filosofia, a mesma pessoa me liga: "Professor Romano, estou mandando um projeto daquele mesmo grupo, e estamos pedindo de novo aquele seu parecer negativo". Aí o tema não era mais corrupção, porque o Collor já tinha caído, era o neoliberalismo no Brasil... Então ficaram alguns indivíduos daquele grupo de professores, saíram outros etc., e assim uns leriam Locke, outros leriam Rousseau de novo (coitado do Rousseau!), e aí fariam um levantamento, e para isso pediriam bolsa de novo etc. etc. Um dos elementos que achei gravíssimo era o projeto ser um negocinho deste tamanho, mas gordo, porque era nutrido com xerox de títulos honoris causa daquele ex-reitor. E todo mundo sabe o que significa um reitor receber um título de doutor honoris causa, quer dizer, se o professor Milton receber é uma coisa, agora, um reitor é um pouco diferente. Vamos pensar muito no caso do reitor, pode ser que seja um reitor...
Milton Santos - Ou um presidente, também... (risos)
Roberto Romano - É, ou presidente. Muito raramente é pelos belos olhos ou pelo trabalho científico ou ético da pessoa. Você faz um convênio: você me dá um honoris causa, eu te dou um honoris causa. Então era um negócio deste tamanho. Teci considerações sobre a não-possibilidade de aceitar isso como um projeto. Isso foi aprovado de novo. Então, fico na seguinte situação ética: não posso colocar isso com todos os nomes e endereços na imprensa, como me deu comichão de fazer.
Milton Santos - É o dever do sigilo.
Roberto Romano - É o dever do sigilo, então eu seria "antiético"... (risos) Agora, tenho de assistir a canalhas roubando, e isso é ao lado de Caruaru! São pessoas que estão fazendo isso que não é filosofia, que não é sociologia, que é apropriação de dinheiro público pura e simplesmente, que é picaretagem, ao lado de Caruaru, onde as pessoas estão morrendo porque as máquinas não têm como se manter, como melhorar etc. etc. Então, fico nessa situação, não posso denunciar os dois, não sei quem foram as pessoas que deram o parecer positivo, está claro?
Sérgio de Souza - É um jogo de cartas marcadas.
Roberto Romano - Isso nem tem a ver com ética, isso é um tumor. Agora, como é que a universidade vai fazer a crítica dos políticos, dos etc.etc., se ela tem esse tipo de prática no seu interior, se o sigilo não é abolido? Agora, quando eu disse: "Vamos abolir o sigilo" – "Não, os ódios dentro da universidade aumentarão muito." Falei: "Mas os ódios já existem, o que ocorre é que eles são abafados". Se o meu projeto não passou, o dia em que eu virar poderoso: "Ah, você vai ver o que vai acontecer com você". Quer dizer, os ódios são incubados e se potencializam.
Milton Santos - Para tornar mais grave, creio que com a tal globalização, e aí com a desculpa mais uma vez da palavra descoberta, vosmecê fez uma distinção entre totalitarismo e autoritarismo e me pergunto se o totalitarismo que hoje se instala com a globalização não pode se instalar com a aparência de não ser autoritário. Porque acho que um dos problemas que permeiam a vida social é a própria vida acadêmica.
Roberto Romano - Esse é o ponto.
Roberto Freire - Quando o senhor estava analisando a política da vida universitária, o tempo inteiro eu achava que era exatamente igual à política partidária, à política do Estado, uma coisa só, dos partidos, da imprensa, ou da mídia, tudo está sendo feito desse jeito. E a universidade não conseguiu autonomia quando seria um grande papel da universidade ter a possibilidade de corrigir, denunciar tudo isso.
Sérgio Pinto de Almeida - E tem mais um detalhe, que é o papel crescente da universidade particular. Outro dia vi um anúncio na televisão, não sei se eram escolas da Unip, faculdades do Objetivo, aí o cara falou assim: "Corpo docente, tal, tal, tal, e você voltado para o mercado. Você vai ter lugar no mercado". Falava umas quatro ou cinco vezes "o mercado".
Milton Santos - E aqui não tem blablablá. (risos)
Sérgio Pinto de Almeida - E frisar o mercado. Aí li notícias sobre o assédio a professores, porque, porque tem uma série de requisitos para reconhecimento da universidade particular, é quando existem teses, quando existe professor doutorado, graduado etc. E há um assédio financeiro em cima desses professores, eles já se aposentam na escola pública, recebem no auge da carreira, e aí recebem a proposta para ir para a universidade particular muito mais para ceder o nome, e com isso a universidade conquistar pontos junto às instâncias...
Milton Santos - Vou fazer um adendo. Tomei nota de duas ou três questões que vou ter de fazer. Estou preocupado com a dificuldade de a escola privada realizar seus objetivos comuns e democráticos sem saber muito o que quer dizer, hoje. Mas o que é hoje a universidade pública? Será que as nossas ainda são? Será que a USP ou a Unicamp ainda são entidades públicas, ou a gente teria de redefinir?
Roberto Romano - Perfeito, porque o que eu ia começar a dizer é que a grande novidade que o pró-reitor de graduação da Unicamp anunciou, e foi festejado com página inteira da Folha de S. Paulo, foi que os cursos de graduação da Unicamp estariam voltados para o mercado. E, portanto, haveria uma flexibilização para que os nossos estudantes pudessem competir no mercado etc. etc. A uma universidade como a Unicamp, que tem um conjunto de doutores e de pesquisadores importantíssimo, o que significa essa decisão? Aí a pergunta: foi referendada pelo conjunto dos professores essa modificação? Ou esses professores assistem ao trabalho desses tecnoburocratas de tal modo que ficam infensos, na verdade executam ordens como se viessem de Deus todo-poderoso, e se dizem impotentes. Quer dizer, há um controle... Quando você tem um pró-reitor de graduação que propõe uma flexibilização da grade curricular para o mercado, você já tem então embutida toda uma decisão que vem da cúpula. Pouco importa se as pessoas que dão nome a isso são progressistas ou não. Agora, a questão da aposentadoria é outra coisa em que suscito muita antipatia no meio docente. Porque acho um escândalo moral um professor que recebeu dinheiro do Estado ou da sociedade, acho que é da sociedade, durante vinte anos, que fez uma universidade pública de alta qualidade, que foi muitas vezes para o estrangeiro, fez doutorado, voltou, recebeu verba da CAPES, do CNPq e da FAPESP, com 47 anos de idade ele se aposenta e vai se empregar, como é o caso do reitor da USP, Roberto Lobo, em Mogi das Cruzes, vendendo uma coisa que não é dele. Desculpe, o professor Milton é uma sumidade, mas o que ele sabe está vinculado ao que o povo brasileiro pôs nele em termos de aposta. Não é propriedade privada. A questão do público, acho que você tem toda razão, pensamos o nosso diploma, o nosso saber como propriedade privada, pequena propriedade privada, você vai lá e vende e tal. Só que nesse ponto a coisa está complicada, porque há uns quatro anos um professor titular que se aposentasse nas universidades paulistas e fosse trabalhar na universidade privada recebia uns 15.000 dólares e tal, e hoje está chegando aos 4.000.
Milton Santos - Está barateando...
Roberto Romano - Claro, é a lei do mercado: quanto mais oferta, diminui o salário. (risos)
Wagner Nabuco - Os privatistas dizem que a nossa universidade é muito cara por aluno/ano. Isso é verdade, comparando com as universidades norte-americanas, européias e do mundo? Depois: alguns defendem a universidade dizendo que uma das coisas que a encarecem muito é o custo dos hospitais universitários, então faria sentido passar os hospitais universitários para o Ministério da Saúde, como é o projeto. E, por último, se o senhor acha possível estabelecer uma quarentena para o aluno que se forma usando dinheiro público, e então só poderia ir para a iniciativa privada depois de um ano de trabalho público compulsório.
Roberto Romano - Em primeiro lugar, a questão do custo da universidade. Se for universidade, pesquisa, compra de livros, se tiver compra de laboratório, se tiver tudo isso, é caro mesmo. E será caro em qualquer situação. Você pode pensar aí modos de apropriação desses instrumentos, socialização desses instrumentos, de forma que não fiquem esses preços absurdos. Por outro lado, fazer um curso de física onde o laboratório não tem máquinas, é visitado a cada seis meses e você fazer tudo na base do quadro-negro, é barato. Quanto à questão dos hospitais universitários, dado esse mimetismo, essas relações promíscuas do executivo universitário com o executivo político, você tem toda uma série de concessões por parte das autoridades acadêmicas quando se trata da instalação desses hospitais. Então, de certo modo, houve uma programada destruição dos meios de saúde pública do Estado de São Paulo, e naturalmente passaram para as universidades a função de cumprir esse papel. E daí junto ao Executivo, do prefeito ao governador, com os nossos políticos, com os deputados, os vereadores etc. A coisa mais simples que você vê no hospital de clínicas da Unicamp é chegar um doente que vem do Cabrobó da Serra, com uma infecção no dedo, numa ambulância onde está escrito "Município de Não Sei das Quantas, administração maravilhosa", não sei o que e tal. Quer dizer, o que eles fazem? Eles pegam todos os casos e jogam para a Unicamp, porque aí as pessoas são gratas a eles: "Foi o prefeito, foi o vereador que colocou meu pai na coisa e tal". E aí chega todo esse pessoal na Unicamp, e para ser atendido é uma doideira. Imagina como você pode atender...
Marina Amaral - Não tem regra nenhuma de quem pode ser atendido?
Roberto Romano - Vai chegando no pronto-socorro, vai "selecionando" e vai despejando. Ora, isso faz supor que os reitores deveriam ter tido, antes desse sistema, batido a mão na mesa e ter dito: "A universidade tem a função de pesquisa etc. e tem uma função social, que vai ser cumprida dentro dos limites dela, universidade. Mas ela não vai substituir uma política de desmonte do Estado". Tal como ocorreu no Estado de São Paulo.
Wagner Nabuco - Quer dizer, destituiu a missão básica do hospital universitário.
Roberto Romano - Que era a pesquisa, o ensino e os serviços.
Wagner Nabuco - Virou um novo SUS.
Roberto Romano - Virou pior. Porque, como tem o logotipo, e o logotipo é um negócio seriíssimo, o sujeito foi para a Unicamp cuidar da unha encravada, mesmo que morra é a Unicamp, não é o SUS. O SUS não tem logotipo. Agora, a Unicamp tem os melhores especialistas. E aquele calhorda do vereador tem um dividendo muito maior. Então, esse negócio é muito grave. Aí a questão da autonomia.
Roberto Freire - Ele comprou um eleitor com dinheiro do Estado.
Roberto Romano - Exato. E a universidade não tem autonomia, não se torna autônoma, aí o professor Milton tem toda a razão, é uma coisa que está dentro dela já.
Milton Santos - Há um plano inclinado, que eu não saberia datar de quando. Me lembro quando cheguei aqui em São Paulo para ensinar, até hoje, e sinto realmente um processo de deterioração muito grande do espírito universitário dentro das universidades. E essa vontade de ceder ao poder político eleitoral, às vezes imaginando se tornar secretário de Estado, ou ministro.
Sérgio de Souza - Por falar nisso, que avaliação o senhor faz do atual ministro da Educação?
Roberto Romano - Olha, o ministro atual da Educação... (risos)
José Arbex Jr. - Já falou pela sua reação.
Roberto Romano - Veja, todos os instrumentos de ascensão social foram utilizados. Ele estava no Chile, exilado. Aí veio para o Brasil, foi trabalhar na Unicamp, era professor e foi eleito presidente da Adunicamp, a associação dos docentes. Aí o sindicato serviu muito bem, e era para que o discurso de esquerda – me perdoem, de vez em quando falo umas coisas pesadas, mas acho que existe um chantilly e debaixo do chantilly um bolo de merda. (risos) Você tem esse chantilly mais para a esquerda, muito bem cheirosa, mas por baixo o negócio é feio. No caso, ele foi presidente da Unicamp, e chegou a reitor justamente porque representava uma mudança etc. etc. etc. Não posso dizer que o reitorado dele tenha sido totalmente desastroso, porque ele instalou determinadas coisas que não existiam na Unicamp enquanto universidade. Porque a Unicamp foi criada pelo professor Zeferino Vaz, que controlava tudo, ela tem todos os méritos e os defeitos do professor Zeferino Vaz. Ele contratava, demitia, ele fazia e acontecia. A Unicamp não tinha conselho universitário, não tinha congregação, não tinha nada, tudo era definido pelo gabinete do reitor. E, no período Paulo Renato e Pinotti, a Unicamp adquiriu determinados ramos, como a congregação, como os conselhos etc. Mas adquiriu também as pró-reitorias, e todos esses instrumentos do executivo. Nesse período, ele estava se preparando para ser o quê? Secretário. Foi secretário da Educação do Estado de São Paulo, ocasião em que o núcleo de estudos políticos – se você olhar o nome das pessoas que estavam naquele núcleo e olhar agora as pessoas que estão nessa alta comissão de reformulação do CNPq, vai ver que são os mesmos – fez aquele relatório maravilha, que era propaganda política e não relatório de pesquisa. Aí, depois de secretário de Estado, foi ser empregado do BID.
Milton Santos - Foi para Washington.
Roberto Romano - Aí voltou, e a receita estava no BID, todos conhecem, e estava com alguém para executá-la. Esse senhor mente. Por exemplo, na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara do Deputados, ele foi dar um depoimento e disse que estava encaminhando para as universidades privadas, para ajudar as universidades privadas, 300 milhões de dólares. Questionado pelo deputado Ivan Valente, infelizmente não reeleito, ele disse que esses 300 milhões de dólares não eram dinheiro público, eram do BNDES! O que significa isso? Ele deu uma entrevista como ministro, dizendo que todos os professores da Unicamp são vagabundos, porque enquanto estava na Unicamp ele dava duas horas de aula. Em lógica elementar, ele seria reprovado. Que ele fosse vagabundo e desse apenas duas horas de aula, pode ser um fato, não vou olhar sua folha corrida na Unicamp. Agora, que todos os professores da Unicamp dão duas horas de aula, isso é uma mentira. Esse senhor mente.
Sérgio Pinto de Almeida - Mas ele é coerente, porque o chefe dele diz que aposentado é vagabundo... (risos)
Roberto Romano - Existe uma tática dentro do governo Fernando Henrique que é colocar alguns garotos-propaganda. E, no caso, o Paulo Renato é o garoto-propaganda ideal. Ele fala o que bem lhe interessa. Por exemplo, quando aconteceu essa briguinha entre o Serra e a equipe econômica por causa dos cortes do orçamento, o que disse Paulo Renato? Está registrado. Disse que não discutia os dinheiros do ministério dele publicamente. Disse: "Defendo o meu dinheiro na calada dos gabinetes". A frase é ipsis litteris. Primeiro, o dinheiro não é dele, é público, e na calada dos gabinetes, fora do juízo público, é qualquer coisa. Ele não ligou, já escrevi artigo citando isso na Folha de S. Paulo. Como é que pode uma autoridade que deveria primar pelo respeito, pela cultura, pelo espírito, pelo saber etc. agir publicamente dessa maneira, com o aplauso dos colegas?
Marina Amaral - O senhor acredita que o governo tem mesmo um projeto de privatização das universidades públicas?
Roberto Romano - A questão que o professor Milton colocou já responde. De tal modo acuaram os professores, ou os próprios professores encontraram as saídas, que boa parte dos serviços que deveriam ser gratuitos na universidade já é paga. Você tem cursos, por exemplo, chamados convênios, em que professores de inglês dão cursos onde eles cobram. Isso existe na Universidade do Espírito Santo. A Faculdade de Administração da USP tem um convênio com uma lanchonete que está fazendo o prédio de trás. Então, o prédio de trás será da lanchonete até um certo ano, depois vai passar para a universidade.
Sérgio Pinto de Almeida - A Sociologia da USP tem catorze xerox instaladas, claro, particulares, todas com energias de fio puxado da USP.
José Arbex Jr. - Existe hoje universidade pública no Brasil?
Roberto Romano - Existe o princípio da universidade pública, uma tradição anterior de universidade pública, mas paradoxalmente excludente. Aí precisamos discutir um pouco melhor o projeto da USP. Gosto sempre de lembrar que a USP tem uma origem hedionda. Gosto sempre de citar o texto do Júlio de Mesquita Filho, quando ele diz que a USP, que a universidade deve ser, no organismo social, o que o cérebro é no corpo. E que a função da universidade é estabelecer a disciplina na mentalidade popular. Mas duas páginas depois ele diz: "Nós temos que cuidar muito do organismo político brasileiro, e não podemos dar direito de voto a determinadas regiões" – como a nordestina etc., porque o organismo brasileiro é meio teratológico, cresceu de um lado e não se desenvolveu em outro. E que temos um outro problema – o professor Milton acho que conhece essa frase assim na consciência, porque diz o Júlio
Mesquita Filho: "Ocorreu na sociedade brasileira um problema seriíssimo, foi incorporada à cidadania a massa impura e formidável de 2 milhões de negros, que fizeram baixar o nível da nacionalidade, na mesma proporção da mescla operada". Vou morrer com essa frase decorada. Então, está dado o programa. Está claro? Agora, tinha pretensões a coisa pública. Mas você tem o princípio, você tem efetivamente a possibilidade de lutar por ela, você tem até na Constituição essa parte, mas você tem uma lei como a LDB, que já cria todas as possibilidades para a privatização. Por exemplo, estamos na USP, na Unicamp e na Unesp cuidando de adequar a universidade à LDB. Uma das primeiras providências é acabar com os departamentos. Não vai mais ter departamento. Quem vai definir o ensino e a estrutura mesma dos institutos são o diretor e os coordenadores de pós-graduação e de graduação. O que quer dizer que já iremos trabalhar numa estrutura em que a pesquisa está afastada liminarmente. Você vai se dedicar àquilo que é ensino, como se fosse possível alguém ensinar alguém sem pesquisar essa coisa.
José Arbex Jr. - Mas não tem um dado positivo nisso, de você estimular a multidisciplinaridade? O departmento não estanquiza um pouco a coisa também?
Roberto Romano - O problema não é esse. O problema é que você não vai ter mais diversidade. Você vai ter uma raça estudiosa definida pelos coordenadores de pós e pelos coordenadores de graduação.
José Arbex Jr. - Um parâmetro rígido, e não tem conversa.
Roberto Romano - E dane-se, já está tudo definido. O professor Milton estava lembrando, já estamos no instituto com propósitos no seguinte sentido: "Os professores serão obrigados a ficar no prédio atendendo os alunos de tal horário a tal horário" – porque tal, não sei o que, tarararará.
José Arbex Jr. - O senhor teria a noção do que seria uma universidade pública hoje, nas condições da globalização, do discurso de mercado?
Roberto Romano - Estudo Diderot, é o meu campo de trabalho. Trabalho com as luzes do século 18, e acho que estamos até muito precisados. Diderot tem um plano de universidade que a Catarina II pediu que ele fizesse. Ele começa dizendo que a universidade é uma instituição aberta para o maior número de cidadãos. E é onde eles aprendem os princípios básicos de todos os saberes. Outra coisa que Diderot diz é: "Não vou estabelecer hierarquia de disciplinas". Quer dizer, todas as disciplinas poderão ser exercitadas, sobretudo as novas. Mais: "E deve estar voltada principalmente para aquelas pessoas que não têm recursos para mandar os seus filhos para a universidade". Isto é, a grande maioria da nação. Diz ele: "Porque até do ponto de vista estatístico é mais fácil, é mais correto que você encontre grandes gênios em cem choupanas do que em dez palácios". Então, esse é o programa burguês de universidade pública, que foi tão desacreditado. Estamos atrás anos-luz. E mais outra coisa: "Onde mestres, estipendiados pelo Estado, se dedicariam integralmente a esse estudo, a esse ensino, não temendo porque teriam uma aposentadoria digna e respeitável". É o programa burguês do século 17. É a consciência burguesa. Agora, se comparamos isso com o que existe e com o que existiu aqui no Brasil, evidentemente não temos universidade pública e não tivemos nem sequer segundo os parâmetros da burguesia, ou dessa burguesia mais ilustrada. Quer dizer, estamos mesmo numa situação de barbárie social. Você teve feudos, onde a intelligentsia se estabeleceu, estabeleceu o seu programa e se arvorou então a dirigir o Estado. Sobre isso tenho alguma coisa a dizer também, porque há sempre aquela discussão sobre o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e a USP. O ISEB seriam os nacionalistas que teriam aderido ao Estado autoritário, e a USP seria rigorosa, científica etc. Esqueceram que esse grupo da USP tinha um projeto de poder. Não é piada, o senhor Fernando Henrique Cardoso pensava em ser presidente da República desde a época em que era assistente do professor Florestan Fernandes. Nunca abandonou esse sonho e fez tudo para isso.
Milton Santos - Será que se pode localizar nessa trajetória imaginada essa vocação exercida pelo presidente para ficar cada vez mais próximo do poder americano há mais de vinte anos, porque não é recente? Será que pode?
Roberto Romano - Acho que sim. Há uma espécie de namoro, que foi exercitado nesse período dos anos 60, com a sociologia norte-americana.
Milton Santos - Mas é mais que a sociologia, são os meios de trabalho. Não é só o trabalho intelectual, são os meios materiais de trabalhar de quem participava dos conselhos e das instituições que distribuíam recursos.
Roberto Romano - Claro. E fundações. Lembro sempre de um caso que a minha mulher (professora Maria Sylvia Carvalho Franco) conta, e ela tem uma memória boa: diz ela que o professor Florestan Fernandes foi procurado por um professor ligado ao Departamento de Estado norte-americano, para fazer uma pesquisa no Brasil, para saber como a população reagiria a um golpe de Estado.
José Arbex Jr. - O Florestan Fernandes?
Roberto Romano - E o professor Florestan Fernandes pôs esse professor para fora. Parece, penso eu, que nem todos os membros da sua equipe estavam tão dispostos assim. Não vou dizer mais nada. (risos)
Milton Santos - Vou fazer uma pergunta, só para lhe fazer falar: pode-se dizer que há uma regressão da universidade brasileira nos últimos quinze, vinte anos? Às vezes fico pensando que ela não exerce o seu dever nem para com a sociedade em geral, nem para com a humanidade, nem para com ela própria. Quer dizer, que há um processo de autodestruição evidente, de menosprezo a uma interpretação veraz do que é a sociedade brasileira, e um desinteresse por uma interpretação correta do mundo.
Roberto Romano - A sua análise é percuciente. Vou contar mais um caso – que sou bem caipira nesse sentido: quando Fernando Henrique Cardoso deixou o Senado para se reintegrar na USP, deu uma aula inaugural. Nessa aula inaugural estavam presentes o corpo inteiro da Faculdade de Filosofia, e de toda a USP, a sala estava lotada, os corredores lotados. E esse professor disse o seguinte: "Deixo o Senado, que é o espaço da ação, e venho para a universidade, que é o espaço da falação". Se aquelas pessoas que lá estavam tivessem algum amor pelo saber, algum amor pela verdade, algum amor pela ética, levantariam e dariam uma vaia nesse indivíduo. (risos) Mas ele foi aplaudido de pé quando falou isso. Ora, a universidade, se é universidade, não é falação. Ela produz teoremas, ela produz vacinas, ela produz pesquisa de átomo, ela produz atos, ela produz modificações éticas etc., se ela for universidade. Agora, o que é a prova mais evidente de que aquilo não era a universidade é o fato de eles terem aplaudido, porque cuspiram para cima e caiu na cara. São pessoas sem vergonha, que estavam bajulando uma pessoa poderosa.
José Arbex Jr. - O senhor falou nos últimos quinze, vinte anos, e não por acaso 99 menos 15 dá 84, que é mais ou menos a época em que a Folha de S. Paulo publicou a lista dos improdutivos. Acho que essa lista dos improdutivos é uma espécie de marco na história da universidade recente no Brasil. As famosas idéias de mercado acabam virando um parâmetro...
Roberto Romano - Nunca se esqueça de que essa lista dos improdutivos foi produzida na reitoria, com a colaboração direta da professora Eunice Durham, uma das conselheiras do Conselho Nacional de Educação e uma das pessoas mais nefastas para os campi, porque foi justamente a partir do parecer dela que o reitor Vilhena fechou o conselho universitário da UFRJ. É uma das pessoas mais nefastas dessa linha burocrática, e medíocre do ponto de vista da pesquisa, uma das pessoas mais nefastas na universidade brasileira nos dias de hoje. É oficialismo em duas pernas. E eu já disse isso em público para ela, e repito quantas vezes eu quiser. Foi uma coisa hedionda, porque juntou aí o interesse sensacionalista e a campanha contra a universidade, com interesses de dentro, de professores que estavam escalando a vida social, escalando a vida política. E isso é indefensável. Existe uma profissão agora dentro da universidade que é o avaliador. Não faço avaliação 24 horas por dia, estudo Diderot, dou aula, faço conferência, discuto com os meus colegas etc., não faço avaliação. Mas existe gente especializada em avaliação, existem núcleos de avaliação. Pergunto o seguinte: o que eles fazem no campo de pesquisa? Quem é antropólogo e que só avalia os outros... De repente, você só tem avaliadores, que avaliam físicos, matemáticos, químicos etc. etc. Não conheço indivíduo ou grupo que possa ter um domínio do saber tão grande que possa avaliar tudo isso. O que quer dizer que a avaliação, nesse sentido, é picaretagem pura. Existem teses de doutorado sobre avaliação!
José Arbex Jr. - Em nome do que, de que projeto ideológico, se é que havia algum, a Folha se empenhou em publicar essa lista e dar a ela um peso que até hoje repercute na universidade?
Roberto Romano - A ideologia da Folha nesse episódio, e continua sendo a ideologia do Estado de S. Paulo, do Jornal do Brasil etc., é que não pode existir, sobretudo nesse campo, serviço público e que é necessária uma privatização. Isso está claro.
José Arbex Jr. - O senhor acha que desde 1984?
Roberto Romano - Desde sempre. O Estado de S. Paulo defendeu a USP dele, a USP para formar as elites e formar os intermediários entre as elites, o estado e a população, para disciplinar a mentalidade do povo. Esse pensamento privatista faz parte dessa visão empresarial. E, quando esses jornais encontraram na universidade aliados, aí veio o que está aí. A idéia de produtividade é uma idéia extremamente danosa à pesquisa científica. Existem pensadores, como é o caso de Wittgenstein, que teriam tirado zero na CAPES, (risos), porque passaram dezenas de anos sem publicar quase nada. Então, essa é uma perspectiva ideológica de privatização, mas que vem de longa data. No caso, com a gestão do professor Goldemberg, que na própria Folha de S. Paulo chamei de infame, e repito, porque na questão da privatização o que a imprensa teve foi a clara adesão e incentivo das autoridades acadêmicas. Começou aí. E hoje existe pró-reitoria de avaliação. E teses, como eu disse. Você avalia o quê? Avaliar um saber é uma das coisas mais difíceis do conhecimento. E qual é o critério? O critério é o quanto. Fez tantas encenações, é um excelente pesquisador em artes. Meu Deus, então vamos dar nota 7 para o Ratinho... (risos) mas não está longe, porque, num dos elementos dos questionários que a dona Eunice Durham introduziu na USP, vem lá: "Quantas entrevistas para jornais você deu? Quantas entrevistas para a televisão?" Eu me recuso, nos meus relatórios para a universidade não cito artigos que escrevi para a Folha de S. Paulo etc., não cito entrevistas etc. Isso aí é a opinião de um cidadão que tem todo o direito de falar do jeito que quiser sobre as coisas. Outro é o meu trabalho onde pesquiso, onde estudo, onde reflito etc. tem outro peso.
Leo Gilson Ribeiro - Eu queria perguntar sobre essa modificação teratológica que houve com a universidade. A Universidade de Bolonha, que é sabidamente no Ocidente a mais antiga, junto com a Universidade de Paris, e depois junto com as universidades inglesas, em que momento o senhor determina ou acha que houve esse absolutismo que vivemos hoje, se isso remonta a Maquiavel, ou se remonta ao absolutismo europeu, ou se é uma coisa mais recente de uma hegemonia mercantil de determinados países?
Roberto Romano - A sua pergunta é estrategicíssima, porque sem tentar respondê-la perderemos anos discutindo a questão da universidade. Começando com a questão de Bolonha. Uma característica fundamental de Bolonha, que lhe deu uma autonomia muito grande diante do papa e dos governantes, é o fato de que ela era composta por uma congregação de advogados, e que providenciavam o pagamento das suas despesas. É um ponto fundamental: para ter autonomia espiritual, você precisa ter autonomia material. As outras universidades, como é o caso da Universidade de Paris, das inglesas etc.., ou estavam sob o protetorado do rei, ou protetorado do papa, e recebiam desses poderes, que na época inclusive se digladiavam, junto com as verbas o verbo. Recebiam a raça estudiosa, recebiam aquilo que era permitido e aquilo que não era permitido. Mesmo assim, conservaram um poder muito forte. Um outro elemento, que o professor Jacques Le Golf lembra, é que "na Idade Média não existiam a universidade e o poder, existiam a universidade e os poderes".. Poder do rei, poder do papa, poder da burguesia mercantil emergente. No caso, os mercadores queriam determinadas coisas da universidade e não queriam outras. Segundo Le Golf, essa situação piorou no século 16, quando você tem o estabelecimento do absolutismo monárquico, tem essa hegemonia do poder real e a universidade se adapta perfeitamente à função que o Estado queria dela. E Le Golf cita um discurso do reitor Gerson que diz: "A universidade não tem de ficar criticando tiranos nem coisa nenhuma. O que ela tem de cuidar é que haja um governante, e que os donos das galinhas durmam tranqüilos". Quer dizer, a propriedade tem de ser preservada. Bom, essa situação foi marginalizando a universidade, que por exemplo esteve afastada do Renascimento. Praticamente todos os grandes criadores da ciência, da cultura etc. passaram pela universidade, mas não eram universitários. A começar com Bacon, Descartes no século 17, Espinosa, todos esses grandes pensadores estiveram fora e contra a universidade. Descartes andou correndo pela Europa perseguido pela Faculdade de Teologia de Paris. A tal ponto, que o acusavam de ser rosa-cruz. E, como existia a lenda de que os rosa-cruzes ficavam invisíveis, quando foi para Paris fez questão de aparecer em todas as rodas, para ficar claro que ele não era rosa-cruz. (risos) Então, a universidade ficou fora do Renascimento, e fora do engendramento das ciências e das técnicas modernas. E quem ficava dentro da universidade tentando modificar era perseguido. Nos séculos 17 e 18, as Luzes não foram instaladas dentro da universidade. Diderot faz o projeto da Enciclopédia para atingir um público – veio até parar no Brasil, em Minas Gerais tem lugares onde se encontram exemplares Enciclopédia até hoje –, para formar um público numa perspectiva muito mais ampla do que era feito dentro da universidade. Na Enciclopédia, você tem saberes que a universidade desprezava absolutamente, por exemplo as artes mecânicas. Um dos elementos fundamentais da Enciclopédia é a tábua, é o caderno de instrumentos, porque ele ia lá, chegava no artesão e perguntava: "Olha, como é que se faz esse instrumento, para que se usa esse instrumento?"
Leo Gilson Ribeiro - O torno, por exemplo.
Roberto Romano - Exato. Bom, então a universidade não chegou a assumir a perspectiva total do Renascimento, não chegou a assumir a definição total das Luzes, mas sofreu, como no Brasil, a contra-revolução. Quer dizer, quando veio o Termidor, no Estado napoleônico, ela se instalou perfeitamente na função desejada pelo poder executivo do imperador. E foi esse modelo de universidade que passava aqui na cabeça de muita gente. Quando se diz que a universidade está hoje, de certo modo, já privatizada, a cabeça desse estrato sempre, me perdoem a generalização, sempre esteve voltada para produzir elites para a Igreja e para o Estado, produzir pessoas que sirvam bem a um quesito. Essa é a função. E esse elemento foi reforçado com Napoleão. Esse modelo napoleônico persiste nessa visão, a de que o executivo define todas as declinações da universidade.
Wagner Nabuco - Voltando à minha pergunta: como se apropriar do que é produzido na universidade, com todos esses defeitos? Como se apropriar de fato para o público que sustenta essa universidade? De que maneira isso está sendo pensado dentro dela? Falei da quarentena, o diplomado vai trabalhar no instituto para produzir coisas para a população antes de ganhar dinheiro igual um louco na iniciativa privada. O dinheiro é do imposto do povo, como é isso?
Roberto Romano - Mas aí você precisa também combater essa ideologia do mercado, que é passada pelos organismos dirigentes. Quando um pró-reitor diz "olhem a maravilha que fiz – transformar a graduação adequada ao mercado", na verdade ele está correspondendo a uma exigência que é anterior, que vem do ministério, e das secretarias: as famosas parcerias com a iniciativa privada. No fundo, o que os governantes disseram é o seguinte: "Vocês, professores, que têm saberes, virem-se e procurem financiamento da iniciativa privada". Não sei como isso é possível num país de recessão. Que iniciativa privada é essa? Primeiro, a iniciativa privada brasileira não é conhecida por aplicar em ciência e tecnologia, e saberes.
Leo Gilson Ribeiro - Há outra nuance também, que é a famosa fuga de cérebros, principalmente rumo aos Estados Unidos. Havia uma lei na União Soviética, antes de ela se dissolver, em que a pessoa que quisesse se transferir para outro país teria de ressarcir o Estado pela quantia despendida com ela. O Brasil é um supridor gratuito.
Roberto Romano - A Unicamp tem uma regra estabelecida: todo professor que tenha ido para o estrangeiro e que tenha rompido o seu contrato precisa ressarcir a universidade com o salário daquele período de rompimento. Só que isso vai para a Justiça, e cai. A universidade perde, porque existem os direitos Por isso sempre defendi, no caso de defesa da universidade: vamos deixar de colocar apenas como dialogante o Poder Executivo. Vamos procurar, enquanto comunidade, o Legislativo, o Judiciário. Porque muita coisa se decide na universidade passando pelo Judiciário e a gente nem tem consciência disso. Vamos discutir com o Judiciário, vamos dialogar com o Judiciário. Mas o uso do cachimbo entorta a boca, as pessoas não pensam, quer dizer, elas não querem, começando do próprio Legislativo. Muitas vezes você vai conversar com o deputado... O professor Fava, na época em que foi diretor científico da FAPESP, contava uma história que, quando a FAPESP precisava aumentar o seu quinhão no orçamento do Estado, ele foi procurar a Assembléia Legislativa. Pensou: "Bom, lá terei aliados certos, os professores universitários que são deputados, e vou ter problemas com as outras pessoas". Foi exatamente o contrário. Diz ele que Wadih Helu disse: "Mas a ciência é fundamental", e tal. Já os professores universitários: "Não precisa desse negócio, já tem dinheiro demais". E é isso. (risos) É um ponto complicado. Há uma teoria sobre o auto-ódio, o judeu que tem ódio de judeu, o homossexual que tem ódio de homossexual, e um dos elementos fundamentais dessa casta ou dessa raça, ou dessa gente que vira burocrata da universidade é que eles têm ódio de intelectual. Nunca vi tanto ódio ao pensamento intelectual. Nunca vi tanto ódio ao pensamento intelectual. Intelectuais que viraram deputados, que viraram assessores, pessoas que um dia estavam fazendo crítica, e no dia seguinte tomam uma atitude composta. Até o jeito meio hierático – já vira assim, já fala assim... (risos) São assessores. Acho que outra profissão horrível é essa tal de assessores. O meu instituto da Unicamp tem agora no Palácio do Planalto mais de dez assessores. Eles não estão dando aula e estão recebendo.
Sérgio Pinto de Almeida - Como assessor, fazendo o que lá?
Roberto Romano - Assessorando, dando conselho, dando opiniões geniais.
Sérgio de Souza - Assessorando a quem?
Roberto Romano - Ah, sei lá. São funcionários da Unicamp, professores da Unicamp, e estão lá "assessorando".
Wagner Nabuco - Vai trabalhar no gabinete do ministro...
Roberto Romano - Na presidência da República.
Sérgio Pinto de Almeida - Entendi que estavam a serviço da escola enviados a Brasília.
Roberto Romano - Não. Eles estão afastados, recebendo o seu salário. Isso que é o negócio, essa coisa de classe média. Você vende a assessoria, e na venda da assessoria vende também a sua ideologia, a sua posição política. Por isso, o caso Weffort também não foi nenhum escândalo – é muito comum. São coisas assim, mas é difícil você ter o relacionamento da universidade mesmo com esses políticos. Por exemplo, o ex-secretário de Justiça, o Belisário, tem um programa que acho muito interessante, que é o programa dos cortiços de São Paulo, defender os cortiços. E uma das fases do programa é oferecer assistência jurídica para aquelas pessoas que estão no cortiço, para que elas saibam a que têm direito etc. Ele procurou a Faculdade de Direito da USP, pedindo um convênio. A faculdade pediu um ano para estudar, e mais um ano para encaminhar. Ele disse: "Bom, quando a Faculdade de Direito aceitar, o governador do Estado pode ser o Paulo Salim Maluf, e aí não tem direito de cortiço, não tem direito de coisa nenhuma". Quer dizer, essa questão do timing, do tempo. Porque tudo isso supõe uma sensibilidade ao tempo, ao Kairós, ao tempo da sociedade. Você precisa estar aberto àquilo que as pessoas estão vivendo. Não adianta nada chegar cinco anos depois como uma coisa quando é preciso fazer naquele momento. Agora, pergunto: quantos professores da Faculdade de Direito da USP estão empenhados na luta pela cidadania pelos cortiços, seja lá o que for? Não vamos "mascar as palavras", como dizem os franceses. Quer dizer, conheço professor da USP que é ministro do Desenvolvimento, conheço professor da USP que é etc. etc., mas com esse empenho conheço o professor Fábio Konder Comparato – e o professor Fábio Konder Comparato... (risos) e talvez o professor Fábio Konder Comparato... talvez alguma outra pessoa, para não estar fazendo uma injustiça muito grande. É complicado, mas não contraditório.
Sérgio de Souza - Professor, fiquei preocupado com aquela história da corrupção, do CNPp, do ex-reitor. O senhor disse que por um dever de ética não se pode denunciar os corruptos?
Roberto Romano - É, por uma norma ética.
Sérgio de Souza - Mas quem denunciaria? Além dessa crítica do ensino, há corrupção mesmo, assim escancarada?
Roberto Romano - Olha, fiz proposta às associações docentes. Mandei-a também para as associações docentes da USP, da Unesp e da Unicamp, dizendo o seguinte: que se fizesse um movimento pedindo ou exigindo o fim do sigilo dessas fundações. Tenho as cartas, tenho uma caixa negra. E não recebi nenhuma resposta.
Wagner Nabuco - E alguém do Legislativo não podia buscar uma coisa desse tipo?
Milton Santos - É que está na Constituição, ela proíbe. Mas também está nos hábitos arraigados da nossa categoria.
Roberto Romano - Claro. Quanto ao Legislativo, uns cinco anos atrás vi que a situação da universidade paulista estava ficando uma coisa muito complicada, porque as reitorias têm uma opção preferencial pelo Executivo, e bom...aí, eu falei: "Mas sou professor titular da universidade". Professor titular nas universidades paulistas é um cargo criado pela Assembléia Legislativa, e as reitorias têm um lote determinado de cargos de professores titulares. Para aumentar esse número, é preciso ter autorização, é um cargo de Estado. Pensei: "Se tenho esta responsabilidade, vou até a Assembléia Legislativa e digo que quero discutir com os deputados as verbas das universidades públicas". Até em gabinete de pessoas de esquerda muitas vezes eu ouvi o seguinte: "Professor, está tudo certo, é isso mesmo".. Daí tiravam um dossiê e perguntavam: "E o que o senhor diz disso dessa fundação? O que o senhor me conta disso aqui? Como vamos defender mais verba para a universidade se tem isso aqui?" Vocês já ouviram falar das "Termas Manuelinas"? É um hotel feito pela Faculdade de Economia da Unicamp, na cidade de Campinas, um hotel de muito boa qualidade, supostamente para acolher pesquisadores estrangeiros, mas que é uma colônia de férias muito interessante para os professores da Faculdade de Economia. E vai dinheiro lá o tempo todo. "Termas Manuelinas", porque criada pelo bom e simpático João Manuel Cardoso de Mello. Isso foi denunciado pela associação docente etc. etc., mas agora silenciou. Silenciou por quê? Porque agora está em curso a instalação na Unicamp de um Instituto Superior de Administração, que tem como patrocinadores o professor João Manuel Cardoso de Mello, o professor Delfim Netto e outros professores. O problema é que tipo de promiscuidade está ocorrendo, que você não pode nem sequer discriminar o que é dinheiro público e o que é dinheiro privado. Se você, como conselheiro da Unicamp, for no conselho da Unicamp dizer "eu exijo que o reitor coloque as contas da Funcamp para exame de conselho", ele vai dizer "não".
Wagner Nabuco - E o estatuto permite a ele dizer isso?
Roberto Romano - Aí é que está, permite e não permite. Sempre lembro de Marx, no Capital, quando ele está discutindo o tempo do trabalho, sempre chega uma hora em que a classe trabalhadora entra em confronto com o capitalista, então um está vendendo mercadoria e o outro está comprando. E nessa hora é direito contra direito e, quando é direito contra direito, decide a força. (risos) Agora, que força? Aí que chega o ponto. Onde vamos encontrar pessoas para quem o elemento público seja um valor tão grande que lhe permita enfrentar esse tipo de ação, sabendo das represálias que ocorrerão naturalmente.
Leo Gilson Ribeiro - A imprensa não poderia?
Roberto Romano - Fiz o máximo que pude. Teve um caso famoso, de um diretor do CNPq, com a mulher do diretor do CNPq com o irmão do diretor do CNPq, que importou areia e instrumentos para a pesquisa física. Isso está até no jornal. Requisitei a documentação e eles mandaram. E o que foi importado foram arruelas enferrujadas e etc. E com isso o CNPq foi bigodeado em 40 milhões de uma vez, algo assim. E não aconteceu nada. Como a operação foi feita nos Estados Unidos, o CNPq teve de entrar na Justiça americana e a Justiça americana condenou os ex-diretores do CNPq. Pergunto eu: como alguém pode chegar a ser diretor de uma instituição científica com esse qualificativo? E mais: é só ele que faz isso?
Wagner Nabuco - Com esse quadro todo, qual a perspectiva?
Roberto Romano - Não venham os privatistas com a universidade privada. Porque aí a coisa é muito pior. O Conselho Federal de Educação foi fechado por corrupção explícita dos donos das universidades privadas. Fiz parte de uma comissão de reconhecimento de uma universidade pública do Paraná, a Unicentro. E nós, a comissão, nos demos três anos para fazer o parecer inicial. E vimos coisas espantosas. Por exemplo, havia um curso de informática. E só existiam dois computadores. (risos) O professor de matemática da Unicamp disse: "Não posso aprovar um curso de informática com dois computadores". Aí o reitor pro tempore, porque não podia ser reitor ainda, nos chamou e disse: "Tem um problema sério aqui. É que o Requião (que era governador do Estado) brigou com a Xerox e brigou com a IBM. Como ele não pode proibir este negócio, ele baixou uma norma interna, de boca a boca, que todos os órgãos públicos não irão utilizar produtos da IBM e da Xerox. Então, os dois computadores que estão aí foram comprados com o dinheiro da CAPES, que é federal, e isso vai nos dar um tempo. Esperem, por favor, porque ele está saindo para ser candidato e o vice-governador já nos disse que vai nos oferecer isso". Então esperamos mais seis meses, e o curso de informática teve os seus cinqüenta computadores necessários para funcionar. Quer dizer, é esse tipo de coisa que o Executivo nacional faz. Eu disse o Requião, mas podíamos colocar qualquer nome. Então, nessa linha levamos três anos para fazer o reconhecimento dessa universidade e, quando fizemos, sabíamos que ela tinha defeitos terríveis. Por exemplo, fiquei encarregado da biblioteca. Eles listavam como obra fundamental de teoria as obras do general Emílio Garrastazu Medici. Precisei explicar longamente que como documento talvez, mas como base teórica..., coisa nessa linha. Nesse ínterim, pipocou reconhecimento de universidades privadas no Estado do Paraná que era uma maravilha. Cursos de medicina, então, era um em cada esquina. Isso se faz à custa de dinheiro, dada essa corrupção na universidade privada, dada essa ideologia de privatização, essa pronunciada preferência da grande imprensa em relação a isso. O fato de o Roberto Lobo ter saído da USP e ido para Mogi da Cruzes deu esse charme, mas que pesquisa aquilo lá está fazendo? Que ensino? Eu estava numa mesa da SBPC, estava presente a doutora Eunice Durham (risos), e eu disse: "As universidades privadas de São Paulo funcionam ao ritmo de ‘O mundo gira e a Lusitana roda’, porque, quando vem uma inspeção do MEC, as bibliotecas são emprestadas umas para as outras". Aí a professora Eunice disse que eu estava fazendo uma caricatura. Mas, na Universidade Tibiriçá, a biblioteca fica atrás do caixa! E a biblioteca da faculdade tem isto aqui, (mostra um espaço mínimo) entre a Enciclopédia Barsa e não sei o que mais. Você só pega o livro se estiver em dia com o caixa, e a biblioteca é ridícula, não existe, aquilo não é laboratório coisa nenhuma! Então, não há motivo para ter medo de fazer crítica à universidade pública, porque efetivamente a privada tem coisas terríveis.
Marina Amaral - São duas coisas diferentes a universidade privada e a pública?
Roberto Romano - Por definição, o que é privado tende a formar elementos para, no caso da luta social, garantir os interesses de quem é privado. Agora, tem uma coisa também, que venho dizendo há bom tempo e que as pessoas não levam muito em conta. É um pouco falácia dizer que a universidade brasileira forma as grandes elites econômicas. Filho de rico, mesmo, não de classe média, estuda na GV ou estuda em Harvard, Cambridge etc. Não estuda na USP. Existem levantamentos na própria USP dizendo que o nível salarial de boa parte dos pais dos estudantes não é lá muito elevado. Tem esse aspecto. É preciso tomar um pouco de cuidado, o mal, no meu entender, não é tanto o fato de existir gente rica nas escolas públicas, porque o problema é anterior, data da luta social e da luta econômica. O problema é que a universidade está financiando sistematicamente essa classe média que tem como horizonte a si mesma, a sua pequena propriedade. Nessa linha, não vejo saída, sou um pouco religioso, e digo: "É necessário que haja uma metanóia por boa parte da universidade". Quer dizer, uma conversão da mente. Porque, se continuarmos pensando dessa maneira, a defesa da universidade pública gratuita etc., sem outros bemóis no seu interior, vamos caminhar para o suicídio, porque a classe média vai procurar a sua saída, não existe nenhum mecanismo possível nessa linha, não vejo uma forma de obrigar a pessoa a devolver o dinheiro que foi aplicado nela. Se os professores não se sentem compromissados, se se aposentam com 47 anos de idade, é um escândalo, se os próprios professores fazem isso...
Sérgio de Souza - Ou vão fazer assessoria.
Roberto Romano - Vão fazer assessoria, vão ganhar dinheiro, vão fazer parceria com a iniciativa privada. E agora, nesse projeto de reforma da universidade, esse negócio das organizações sociais que estão planejando, as universidades seriam transformadas em organizações que não seriam do Estado e também não seriam propriamente empresas, seriam "organizações sociais". Mais ou menos isso, o picaretol sempre começa por aí. E essas organizações sociais teriam determinada quantidade de dinheiro, básica, e procurariam junto ao próprio Estado ou à iniciativa privada os meios que faltam.
Marina Amaral - Essa é ruim.
Roberto Romano - Já há várias. O CNPq é uma organização social. Essas coisas estão sendo feitas.
Roberto Freire - Mas o dinheiro vem do Estado, não é? Do CNPq, por exemplo?
Roberto Romano - O elemento básico é o seguinte: o Estado coloca o dinheiro, e aí teremos a parceria com a iniciativa privada.
Wagner Nabuco - Eleva a produção...
Roberto Romano - Eleva a produção, tira a universidade da crise – são receitas miraculosas, fantásticas!!
Milton Santos - Poder pagar corretamente...
Roberto Romano - Pagar bem seus professores... professor Milton, já existe uma coisa que é monstruosa: foram reunidas as nove universidades ditas de pesquisa do país.
Sérgio Pinto de Almeida - Quais são, professor?
Roberto Romano - Unicamp, USP, UFRGS, Unesp, UFMG, UFRJ, UnB, Unicesp (federal de São Paulo), PUC-RJ. Elas já se reuniram mais de dez vezes, reitores, pró-reitores, todos, e já definiram um plano de salvação delas. E dentro desse plano você tem a terceirização de serviços, tem a privatização de serviços etc. etc., e o que os reitores dizem quando são criticados é: "Bom, mas preciso pagar melhor os meus professores, senão os perco, eles vão para o exterior". Até quando? Sempre digo, não é o corpo docente inteiro da UFMG ou da USP etc., mas a sua direção decretou que essas nove são mais excelentes que todas as outras. E que, se as outras forem destruídas, tudo bem, porque elas estão salvas. Isso é uma coisa horrorosa. E essas universidades não terão os entraves burocráticos das outras. Que de fato são entraves e são burocráticos. Agora, você não vai resolver isso colocando a universidade na beira da esquina do mercado. Se você acha que é isso, você está perdido.
Entrevistadores: Marina Amaral, professor Milton Santos, Leo Gilson Ribeiro, José Arbex Jr., Roberto Freire, Sérgio Pinto de Almeida, Wagner Nabuco, Marco Frenette, Sérgio de Souza.
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