Flores

Flores
Flores

sábado, 25 de fevereiro de 2017

09/05/2016 Jornal da Unicamp Para Romano, acomodação da esquerda está na gênese da crise

09/05/2016

Jornal da Unicamp

09/05/2016

Jornal da Unicamp

Para Romano, acomodação da esquerda está na gênese da crise

Professor da Unicamp critica atuação do STF e prevê cenário político turbulento

Roberto Romano é graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Filosofia pela École des hautes études en sciences sociales (EHESS-Paris). É professor titular do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É autor de diversas obras, entre as quais Moral e Ciência - AMonstruosidade do Século XVIII; O Caldeirão de Medéia, (São Paulo, Imprensa Oficial); Cidadania – Verso e Reverso (Editora Guanabara); Lux in Tenebris (Meditações sobre Filosofia e Cultura), (Cortez Editora); Silêncio e Ruído (Editora da Unicamp); Brasil, Igreja contra Estado (Editora Kayrós); e Conservadorismo Romântico (Editora Brasiliense).
Doutor em filosofia e professor de Ética Política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Roberto Romano diz que, em boa parte, a crise política atual é resultado de uma acomodação da esquerda em relação ao esquema dominante do Estado brasileiro e suas raízes absolutistas. “É estranho se falar, hoje, em golpe da direita contra um sistema de esquerda. Boa parte dos ministros de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff pertence à direita. E tais alianças foram instituídas tendo em vista o realismo, a governabilidade”. E arremata: “Quem se alia a notórios defensores de golpes e de governos autoritários espera apoio fiel a políticas democráticas?”.
Leia também:
Em entrevista ao Jornal da Unicamp, o filósofo examina o atual cenário político a partir de uma perspectiva histórica. “Não tivemos, como povo, experiências duradouras de ordem democrática”, observa. Romano também analisa a polarização política e ideológica, a atuação da mídia, o papel do Supremo Tribunal Federal e a Operação Lava Jato. E traça um quadro turbulento para o futuro: “O nosso problema se localiza no Estado antidemocrático, na sociedade idem, na ausência de qualquer accountability nos três poderes. O concreto mesmo é que em pouco tempo estaremos às voltas com crises mais graves do que a de hoje”.
Jornal da Unicamp – Desde a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, na Câmara e agora no Senado, a sociedade convive com dois discursos antagônicos. Os contrários ao processo afirmam que se trata de um “golpe”. Os que defendem a saída da presidente garantem que se trata de um processo constitucional. Em sua opinião, quem está com a razão?
Roberto Romano – É difícil encontrar alguma “razão” se a crise geral bate à porta de todos. Erich Auerbach, ao analisar a propaganda política no livro intitulado Mimesis, enuncia que o universo social é como um palco onde muitas cenas se apresentam. O propagandista coloca o holofote sobre algumas cenas, deixa as demais na penumbra. Assim, o público testemunha atos verdadeiros, mas não totalmente imersos na verdade. Para a verdade, diz ele, é preciso toda a verdade e nos momentos de luta e crise não sobra tempo para inspeções amplas.
Sim, tem motivos certos quem afirma ser o impeachment algo legal. Mas eles deixam nas sombras todo o jogo de interesses políticos, econômicos, religiosos que também deveriam ser considerados. Desde que o governo federal abriu as portas dos cofres para empresários, com juros baratos e larga margem de manobra, os donos do capital julgaram que tudo lhes é devido, sem riscos. Como disse um conhecedor do empresariado, este último vive do alimento estatal. Ademais, a ética golpista integra o universo de nossos supostos empreendedores. Sua presença foi essencial em 1964 e ao longo da ditadura.
Como todos os presidentes posteriores ao regime autoritário lhes deram o que puderam e não puderam, até o primeiro governo Dilma eles não retornaram ao seu antigo sestro. Quando perceberam que os cofres estavam vazios, para eles e para todos, iniciaram a campanha, de início sigilosa e depois aberta, para derrubar a governante.
Também do lado político, muito se agiu no segredo nos últimos tempos. Com a ameaça da Operação Lava Jato, surgiram no Congresso vários projetos de lei que pretendem preservar a corrupção e penalizar seus críticos. Eles poderão vigorar, como normas legais, com a mudança de governo. Medidas para coibir ações do Ministério Público estão na Câmara dos Deputados, e outras iniciativas que buscam preservar os representantes da população, contra ela. O sigilo vigorou também em reuniões preparatórias do impeachment.
JU – O sr. poderia exemplificar?
Roberto Romano – O parlamentar Heráclito Fortes (Arena, depois PFL, agora socialista!) deu uma longa entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, na qual narra as reuniões reservadas a poucos com o alvo de elaborar o impedimento da presidente. Os cenários jurídicos foram idealizados e expostos pelo ex-presidente do STF, Nelson Jobim (ministro de Luiz Inácio Lula da Silva), com a presença de outros juristas, políticos e mesmo de integrantes do PT (Henrique Fontana, Arlindo Chinaglia). Pergunto: quando parlamentares e juristas se reúnem sigilosamente, por mais de um ano, discutindo estratégias para o impeachment, inclusive com a presença de partidários do governo, não estaríamos diante de uma estratégia preparatória? Some-se a atividade da Fiesp a tal iniciativa, e teremos um quadro conspiratório efetivo, não um fantasma de golpe.
Agora, chegam as perguntas incômodas: o governo e seu partido, tendo nas mãos instrumentos de vigilância, foram tomados de surpresa ou receberam advertências sobre o rumo das coisas? Como os partidários do governo conviveram com tais atos visando a sua destituição? A resposta está na jaula das alianças encetadas desde o primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva.
O governo teve diante de si as tratativas para seu impedimento, boa parte delas lideradas por aliados. É estranho se falar, hoje, em golpe da direita contra um sistema de esquerda. Boa parte dos ministros de Luis Inácio da Silva e de Dilma Roussef pertence à direita. E tais alianças foram instituídas tendo em vista o realismo, a governabilidade. Temos aí resultado da acomodação da esquerda ao esquema dominante no Estado e na sociedade brasileira.
Quem se alia a notórios defensores de golpes e de governos autoritários (ACM, José Sarney, Jader Barbalho, Gilberto Kassab, Katia Abreu, Romero Jucá e outros, a lista é extensa) espera apoio fiel a políticas democráticas? No caso da Fiesp, a fábula de La Fontaine sobre o lobo e o cordeiro não foi lembrada: o lobo não se contenta com as concessões do cordeiro, ele exige tudo. Finanças e poder tendem para o absoluto e o convívio com poderosos nos dois campos é muito simples: tudo lhes é devido. O partido do governo imaginou ser possível partilhar com oligarcas regionais poderosos e com os suportes das finanças nacionais e internacionais o mando e os recursos. No início do governo Luiz Inácio Lula da Silva, José Genoino disse algo importante: “estamos no governo, mas não temos o poder”. O esquecimento de tal realidade só poderia terminar em fim melancólico. O resultado aí está.
O impeachment é constitucional, mas a Constituição ou é um sistema de normas que regulam umas às outras, ou é apenas um ajuntamento de regras desconexas e ineficazes. Por exemplo: a determinação do impeachment, sobretudo por crime de responsabilidade, deve ser conectada ao mandamento do Capítulo VII, artigo 37. “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”.
Vejamos as cenas escondidas com o processo de impeachment. Este é contra um dos operadores do Estado, a presidente. Mas lancemos os olhos sobre parlamentares que autorizaram o procedimento. Boa parte deles, algo em torno de 135 deputados federais, estão na mira da Justiça ou já respondem processo judicial, protegidos pela prerrogativa de foro. Eduardo Cunha é réu estabelecido e alvo de vários processos por improbidade.
O Senado não tem situação diferente, a partir do parlamentar que o preside. Mesmo setores da oposição têm contra si investigações policiais e do Ministério Público. Qual legitimidade resta ao Congresso Nacional para impedir a dirigente do Executivo? Do ponto de vista estritamente legal, pode ser enunciada a validade do procedimento. Mas no horizonte da legitimidade – as cenas escondidas indicadas por Auerbach – que vai muito além e aquém da norma, seria preciso destituir ao mesmo tempo os que integram o Legislativo e, mesmo, setores do Judiciário. Talvez seja tempo, não de convocar eleições gerais, mas uma Assembleia Nacional Constituinte, dissolvendo-se o atual Congresso, eivado de vícios devidos aos piores procedimentos partidários e corruptos.
JU – Outro argumento presente no discurso dos governistas é que o processo de impeachment, tal como foi aprovado, implicaria num Estado de Exceção e, portanto, num risco para a democracia. Afinal, nossa democracia corre perigo?
Roberto Romano – Estranho que só agora tenha sido descoberta a lógica que define a máquina estatal brasileira. A nossa forma política e jurídica, desde o século 19, vive em perene estado de exceção. No Império e nas Regências, a força física (um dos monopólios mais abusados em nosso país pelos governos) e as normas legais não valiam para os donos das regiões, os coronéis, e para os proprietários do poder central. Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei.
No século 20, duas ditaduras sanguinárias impediram qualquer atividade livre e democrática. No regime de 1964 mesmo decretos secretos foram promulgados. Não tivemos, como povo, experiências duradouras de ordem democrática. E o suposto protetor da Constituição, o cimo da Justiça, o STF, sempre coonestou os piores abusos e arbítrios do Executivo, não raro apoiado pelo Legislativo. Somos um Estado absolutista anacrônico e ainda não chegamos à República. É bom recordar que governantes de centro-esquerda e de esquerda, tendo em vista as alianças pela governabilidade, ajudaram a manter o mando oligárquico e os privilégios dos que operam o Estado.
Sinto muito recordar, agora, um fato marcante. Quando José Sarney usou helicóptero público para passear em sua ilha da fantasia, e foi denunciado, Luiz Inácio Lula da Silva decretou que “Sarney não é um homem comum”. A República exige que todos sejam comuns. As exceções jamais devem ser toleradas. Enquanto o realismo político, em leitura tosca de Maquiavel, encobrir os oportunismos da hora, a democracia corre perigo, como hoje. Quando chegou ao governo federal, a liderança de esquerda deveria conhecer o modo de funcionamento da máquina repressora e perenemente ditatorial do Brasil. Mas ela abraçou justamente os que mantiveram ditaduras direitistas no século 20.
JU – O senhor se preocupa com o atual momento brasileiro no que diz respeito à segurança das instituições?
Roberto Romano – Um mantra repetido, sobretudo à direita, mas também aceito pela esquerda, reza que “nossas instituições funcionam normalmente”. É o mundo da fantasia que, uma hora ou outra, sofre a resistência da realidade. Como pode funcionar normalmente um Legislativo à beira das celas, e onde os seus presidentes são fortes candidatos à cadeia? Como pode funcionar normalmente uma Justiça que ainda julga, no STF, casos de roubo de doces (o último deles foi relatado pelo juiz Fux, semanas atrás) e demora anos e anos para julgar políticos corruptos e confessos? Se as instituições brasileiras funcionam segundo normas, estas últimas devem ser abolidas incontinenti.
Sim, me preocupo porque as nossas instituições não servem aos contribuintes e aos cidadãos. Nossa sociedade amadureceu bastante, se urbanizou de modo célere desde os anos 60 do século 20, o que exige o aporte de serviços públicos complexos (água, esgoto, escola, hospital, lazer, etc) que não são atendidos pela enorme centralização das políticas públicas. Sessenta por cento dos municípios brasileiros não têm água e esgoto condignos. E nos demais setores, o descalabro é similar. As manifestações de 2013 tiveram o condão de chamar à consciência tais problemas.
Os operadores do Estado, em vez de seguirem para o rumo democrático, apresentaram projetos restritivos de direitos e privatizantes. Uma sociedade de 200 milhões de integrantes não recebe, do Estado, serviços públicos eficazes. E no plano da segurança, temos o descalabro policial e o elitismo autoritário dos juízes. Não por acaso somos campeões de assassinatos no mundo. Só existe garantia institucional quando a maioria do povo é assistida no cotidiano.
JU – Qual o efeito concreto que o eventual impeachment da presidente Dilma poderia ter nesse cenário?
Roberto Romano – Com o impeachment, teremos outro curativo no organismo do Estado brasileiro, o que, evidentemente, não vai melhorar o todo estatal formado sob o modelo absolutista, irresponsável, corrupto, oligárquico. No plano imediato, haverá certa “melhora” na economia, dado que os ditames do capital financeiro serão obedecidos e as empresas terão novamente os cofres públicos ao seu dispor. Mas o nosso problema se localiza no Estado antidemocrático, na sociedade idem, na ausência de qualquer accountability nos três poderes. O concreto mesmo é que em pouco tempo estaremos às voltas com crises mais graves do que a de hoje. As crises resultam da estrutura não democrática do Estado e da sociedade. Sem mudanças em ambos, o caos será sempre uma ameaça, mais abrangente.
JU – É possível identificar, do ponto de vista histórico, os fatos que deram início à atual crise política? Como o senhor vê essa crise sob uma perspectiva histórica?
Roberto Romano – Dom João trouxe para cá todo o ressentimento contrarrevolucionário, oposto às conquistas democráticas trazidas pelos movimentos políticos que mudaram o Estado inglês (os puritanos e a doutrina da accountability), ajudaram a instaurar o Estado norte-americano, e destruíram a monarquia francesa. Aqui, o Estado foi imposto como instrumento contrário às formas democráticas.
O princípio da irresponsabilidade do Chefe de Estado, na Constituição de 1824, simboliza o “poder divino” ainda outorgado ao soberano. À “gente ordinária de vestes”, o povo, restou muito pouco após o banquete dos funcionários e oligarcas. Com a República, quase nada mudou. Ainda subsiste entre nós a ambiguidade entre prerrogativas e privilégios dos que operam os poderes. Entremos em qualquer prefeitura: atrás do balcão existe sempre um cartaz enorme, avisando: “Insulto a funcionário, tantos anos de cadeia”. Mas não existe, ao lado, um outro quadro “desrespeito ao cidadão, tantos anos de cadeia”. Esta é a miniatura do que se passa no Estado maior.
No Antigo Regime o rei comprava o clero e os nobres com isenções, privilégios, empregos. Mas nunca foi registrado que o mesmo rei pagava as carruagens do cardeal ou duque. Aqui, dos vereadores aos senadores, passando pelos prefeitos, deputados estaduais, federais, secretários, etc. todos têm carruagem pagas pelo povo soberano. São bilhões que poderiam ser empregados em saúde, educação, etc.
E não falemos da excrecência, abençoada pelo STF, da prerrogativa de foro. Tais marcas foram adquiridas em séculos de ampla dominação política, econômica e social. Elas definem um modelo obsoleto e injusto. Que, se não for removido, trará ainda muito sofrimento.
JU – Analistas políticos de diversas tendências costumam fazer comparações históricas para tentar interpretar a crise atual. Alguns comparam o atual momento à crise que resultou no suicídio do presidente Vargas, em 1954. Outros evocam cenários internacionais, como o processo que levou à instauração do Reich e a ascensão de Hitler. O senhor vê paralelos?
Roberto Romano – Situações diversas exigem análises diversas, o truísmo é apenas de superfície. Eu mesmo indiquei algo similar quando disse, em data recente, que a ruptura beligerante entre o PT e o PSDB só tenderia a beneficiar a direita nacional. Fui criticado acerbamente pelos seguidores do PT, do PSDB e dos que seguem Olavo de Carvalho. Eu lembrava justamente as crises da República de Weimar, quando os maiores inimigos da social democracia eram os comunistas e vice-versa. O que abriu a porta para a radicalização das direitas, com o corolário nazista.
O certo é que as batalhas entre a centro-esquerda tucana e o PT, levaram a primeira a se enfraquecer dentro do PSDB e ao reforço das alianças entre os dirigentes do PT e setores à direita. Perdoem a boutade, mas quem semeia Sarney, ACM, e quejandos, colhe Bolsonaro e Feliciano.
JU – Crises recentes, como a do mensalão, não foram suficientes para atingir a figura da presidente. Em que medida a corrupção na Petrobrás acelerou os acontecimentos atuais?
Roberto Romano – É bom recordar o fato. Sim, a diferença entre as duas crises reside nos bilhões a mais da segunda. E o sistema de financiamento de parlamentares e empresários corruptos, desta feita, ronda as portas do Palácio do Planalto. Mas insisto: a quem aproveitou o saque, além dos empresários presos? Ele foi útil para boa parte dos que, hoje no Parlamento, pensam impedir a presidente. Inabilidade dela, pois Luiz Inácio Lula da Silva soube operar com os parlamentares de modo diplomático e astuto. Dilma insistiu na política do choque com os reais ou supostos representantes do povo. A chefia da Casa Civil, em seus governos, foi liderada por pessoas sem tino diplomático, e que se notabilizaram pelo estilo imperial de trato, o que trouxe muitos ressentimentos contra a presidente.
JU – Como o senhor analisa a Operação Lava Jato?
Roberto Romano – Ainda estamos longe de conhecer todas as cenas ocultas da Operação. O que vem à tona mostra um trato duro e tecnicamente correto com acusados ou réus de corrupção. Mas é bom lembrar, como disse acima, que leis de proteção aos corruptos estão sendo encaminhadas no Congresso, à semelhança do que ocorreu após a Operação Mãos Limpas, por iniciativa de Berlusconi.
JU – Os críticos à Operação Lava Jato acusam a Justiça e a PF de, deliberadamente, serem seletivas para prejudicar o governo e o PT. O senhor concorda?
Roberto Romano – Políticos cuja origem é exterior ao PT estão no cárcere ou respondem a processo. Empresários que beneficiaram todos os partidos, idem. Agora, uma pergunta: dizer que os “outros” também são praticantes de ilícitos desculpa um partido?
JU – Como o senhor analisa a atuação do Supremo Tribunal Federal nesse episódio?
Roberto Romano – O STF continua sendo a mais elevada amostra de arbítrio sob a capa do saber jurídico. Recordo uma entrevista que dei ao Jornal da Unicamp quando ocorreu o apagão de FHC. Arguida a constitucionalidade da multa, os magistrados decidiram que o povo não colaboraria sem multa. O chicote foi aplicado, doutamente, nos ombros do mais fraco. Joaquim Barbosa, ao julgar a reforma da Previdência apresentada por Luiz Inácio Lula da Silva, afirmou em alto e bom tom que “não existem direitos adquiridos, caso contrário ainda vigoraria a escravidão”. Sofisma bisonho com o qual o juiz pagava sua indicação ao presidente da República. Não se tratava de gente escrava, mas de cidadãos trabalhadores que exigiam seus direitos. Hoje, o STF continua sua tradição de um tribunal político, no pior sentido.
JU – Que papel a mídia de massa, de um lado, e as redes sociais, de outro, estão desempenhando nessa crise?
Roberto Romano – Existem setores da mídia que usam muito a técnica do holofote, no sentido indicado por Auerbach. Eles iluminam uma cena ou duas, e nelas insistem de maneira forte. Mas deixam na sombra outras cenas. Neste sentido, têm motivos certos de queixa os que, apoiadores do governo, mostram seletividade de boa parte da mídia. Quase nada aparece, por exemplo, das ilicitudes praticadas por tucanos e políticos da direita. É como se os únicos heterodoxos no trato das coisas públicas estivessem na esquerda. Daí, vem a “indignação seletiva” que faz aquele setor da mídia perder credibilidade. Não raro, jornais e televisões estrangeiros trazem um quadro mais amplo, com mais cenas no sentido dado por Auerbach, do que os nacionais.
JU – Em meio ao tiroteio verbal, com notas marcadamente passionais a favor e contra o impeachment, como é possível ao cidadão comum discernir os fatos do jogo político, para formar uma opinião mais próxima da realidade?
Roberto Romano – Volto aos holofotes de Auerbach: para diminuir o número de slogans e meias verdades, apenas pesquisando as cenas escondidas pela propaganda. Neste sentido, a cidadania tem ao seu dispor a internet, alguns setores da mídia e a própria honestidade intelectual.
JU – Como o senhor analisa a atuação da população, em especial a polarização política e ideológica verificada nas manifestações pró e contra o impeachment?
Roberto Romano – Açulada pelos blogs fanáticos, de esquerda ou direita, e por palavras de ordem truculentas, boa parte da classe média brasileira tem se comportado com selvageria. O tom latrinário aparece, de início, nos “comentários dos leitores” dos blogs, revistas, jornais. Ali não se fala, mas são expelidos os mais baixos sentimentos de ódio. Mas parte da população, sobretudo a mais jovem, mostra sinais importantes de politização responsável, sem ataques pessoais, calúnias, exclusões.
JU – Quais as principais diferenças entre a polarização atual e a verificada em outros momentos de crise política no País?
Roberto Romano – À diferença de 1964, agora as esquerdas têm um apoio popular mais amplo, embora não organizado. Os anos de poder petista não serão facilmente extirpados da opinião pública, como ocorreu após o último golpe civil militar.
JU – Como explicar o atual nível de tensão verificado em ambos os lados. Em muitas situações, o embate político ultrapassa, em muito, o terreno das ideias. A corda não parece estar esticada demais?
Roberto Romano – A radicalização do preconceito é comum em crises políticas, econômicas e sociais. Receio que se alguns limites forem ultrapassados, passaremos às vias de fato, o que seria o fim da política.
JU – Como o senhor analisa a atuação do ex-presidente Lula na atual crise política?
Roberto Romano – Luiz Inácio Lula da Silva é um dos poucos líderes populares do Brasil. Com os fatos recentes da Operação Lava Jato, ele está na defensiva, sem maiores condições de propor alternativas ao possível governo Temer. Isto mostra um erro grave, interno ao PT: para garantir a hegemonia de Lula, nenhuma outra liderança nacional surgiu na sigla. O PT possui lideranças regionais (Tarso Genro, Jacques Wagner, os Viana, etc), mas está tão carente quanto os demais partidos, de lideranças nacionais.
JU – Em caso de impeachment, como deverá se definir o mapa das forças políticas no país?
Roberto Romano – O PMDB estará no comando, dividido como sempre. O governo estará na dependência de bancadas parlamentares retrógradas e, na sociedade civil, dos grandes proprietários. Os ruralistas já exigem a mudança do estatuto das Forças Armadas, para colocá-las a serviço da guerra contra os sem-terra. A turbulência de hoje será retomada em breve.
JU – Corremos o risco de, com a crise econômica atual, perdermos os avanços sociais que tivemos nos últimos anos?
Roberto Romano – O vice-presidente Michel Temer afiança que não. Mas as exigências dos conservadores, para não dizer truculentos, será no sentido de abolir ou atenuar ao máximo os avanços sociais. A promessa de privatização ampla e irrestrita, comum nos pronunciamentos dos que apoiam Temer, indica tal senda.
JU – Como o senhor vislumbra o Brasil nos próximos seis meses?
Roberto Romano – Instabilidade, autoritarismo, intolerância vitoriosa, contestação virulenta. Nenhum clima ameno.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.