09/05/2016
Jornal da Unicamp
09/05/2016
Jornal da Unicamp
Para Romano, acomodação da esquerda está na gênese da crise
Professor da Unicamp critica atuação do STF e prevê cenário político turbulento
Roberto Romano é graduado em Filosofia pela
Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Filosofia pela École des
hautes études en sciences sociales (EHESS-Paris). É professor titular do
Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da Unicamp. É autor de diversas obras, entre as quais Moral e
Ciência - AMonstruosidade do Século XVIII; O Caldeirão de Medéia, (São
Paulo, Imprensa Oficial); Cidadania – Verso e Reverso (Editora
Guanabara); Lux in Tenebris (Meditações sobre Filosofia e Cultura),
(Cortez Editora); Silêncio e Ruído (Editora da Unicamp); Brasil, Igreja
contra Estado (Editora Kayrós); e Conservadorismo Romântico (Editora
Brasiliense).
Doutor em filosofia e professor de Ética Política no Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Roberto Romano diz que,
em boa parte, a crise política atual é resultado de uma acomodação da
esquerda em relação ao esquema dominante do Estado brasileiro e suas
raízes absolutistas. “É estranho se falar, hoje, em golpe da direita
contra um sistema de esquerda. Boa parte dos ministros de Luiz Inácio
Lula da Silva e de Dilma Rousseff pertence à direita. E tais alianças
foram instituídas tendo em vista o realismo, a governabilidade”. E
arremata: “Quem se alia a notórios defensores de golpes e de governos
autoritários espera apoio fiel a políticas democráticas?”.
Leia também:
Em entrevista ao Jornal da Unicamp, o
filósofo examina o atual cenário político a partir de uma perspectiva
histórica. “Não tivemos, como povo, experiências duradouras de ordem
democrática”, observa. Romano também analisa a polarização política e
ideológica, a atuação da mídia, o papel do Supremo Tribunal Federal e a
Operação Lava Jato. E traça um quadro turbulento para o futuro: “O nosso
problema se localiza no Estado antidemocrático, na sociedade idem, na
ausência de qualquer accountability nos três poderes. O concreto mesmo é
que em pouco tempo estaremos às voltas com crises mais graves do que a
de hoje”.
Jornal da Unicamp – Desde a abertura do processo de impeachment contra a
presidente Dilma Rousseff, na Câmara e agora no Senado, a sociedade
convive com dois discursos antagônicos. Os contrários ao processo
afirmam que se trata de um “golpe”. Os que defendem a saída da
presidente garantem que se trata de um processo constitucional. Em sua
opinião, quem está com a razão?
Roberto Romano – É difícil encontrar alguma “razão” se a crise geral
bate à porta de todos. Erich Auerbach, ao analisar a propaganda política
no livro intitulado Mimesis, enuncia que o universo social é como um
palco onde muitas cenas se apresentam. O propagandista coloca o holofote
sobre algumas cenas, deixa as demais na penumbra. Assim, o público
testemunha atos verdadeiros, mas não totalmente imersos na verdade. Para
a verdade, diz ele, é preciso toda a verdade e nos momentos de luta e
crise não sobra tempo para inspeções amplas.
Sim, tem motivos certos quem afirma ser o impeachment algo legal. Mas
eles deixam nas sombras todo o jogo de interesses políticos, econômicos,
religiosos que também deveriam ser considerados. Desde que o governo
federal abriu as portas dos cofres para empresários, com juros baratos e
larga margem de manobra, os donos do capital julgaram que tudo lhes é
devido, sem riscos. Como disse um conhecedor do empresariado, este
último vive do alimento estatal. Ademais, a ética golpista integra o
universo de nossos supostos empreendedores. Sua presença foi essencial
em 1964 e ao longo da ditadura.
Como todos os presidentes posteriores ao regime autoritário lhes deram o
que puderam e não puderam, até o primeiro governo Dilma eles não
retornaram ao seu antigo sestro. Quando perceberam que os cofres estavam
vazios, para eles e para todos, iniciaram a campanha, de início
sigilosa e depois aberta, para derrubar a governante.
Também do lado político, muito se agiu no segredo nos últimos tempos.
Com a ameaça da Operação Lava Jato, surgiram no Congresso vários
projetos de lei que pretendem preservar a corrupção e penalizar seus
críticos. Eles poderão vigorar, como normas legais, com a mudança de
governo. Medidas para coibir ações do Ministério Público estão na Câmara
dos Deputados, e outras iniciativas que buscam preservar os
representantes da população, contra ela. O sigilo vigorou também em
reuniões preparatórias do impeachment.
JU – O sr. poderia exemplificar?
Roberto Romano – O parlamentar Heráclito Fortes (Arena, depois PFL,
agora socialista!) deu uma longa entrevista ao jornal O Estado de São
Paulo, na qual narra as reuniões reservadas a poucos com o alvo de
elaborar o impedimento da presidente. Os cenários jurídicos foram
idealizados e expostos pelo ex-presidente do STF, Nelson Jobim (ministro
de Luiz Inácio Lula da Silva), com a presença de outros juristas,
políticos e mesmo de integrantes do PT (Henrique Fontana, Arlindo
Chinaglia). Pergunto: quando parlamentares e juristas se reúnem
sigilosamente, por mais de um ano, discutindo estratégias para o
impeachment, inclusive com a presença de partidários do governo, não
estaríamos diante de uma estratégia preparatória? Some-se a atividade da
Fiesp a tal iniciativa, e teremos um quadro conspiratório efetivo, não
um fantasma de golpe.
Agora, chegam as perguntas incômodas: o governo e seu partido, tendo
nas mãos instrumentos de vigilância, foram tomados de surpresa ou
receberam advertências sobre o rumo das coisas? Como os partidários do
governo conviveram com tais atos visando a sua destituição? A resposta
está na jaula das alianças encetadas desde o primeiro governo Luiz
Inácio Lula da Silva.
O governo teve diante de si as tratativas para seu impedimento, boa
parte delas lideradas por aliados. É estranho se falar, hoje, em golpe
da direita contra um sistema de esquerda. Boa parte dos ministros de
Luis Inácio da Silva e de Dilma Roussef pertence à direita. E tais
alianças foram instituídas tendo em vista o realismo, a governabilidade.
Temos aí resultado da acomodação da esquerda ao esquema dominante no
Estado e na sociedade brasileira.
Quem se alia a notórios defensores de golpes e de governos autoritários
(ACM, José Sarney, Jader Barbalho, Gilberto Kassab, Katia Abreu, Romero
Jucá e outros, a lista é extensa) espera apoio fiel a políticas
democráticas? No caso da Fiesp, a fábula de La Fontaine sobre o lobo e o
cordeiro não foi lembrada: o lobo não se contenta com as concessões do
cordeiro, ele exige tudo. Finanças e poder tendem para o absoluto e o
convívio com poderosos nos dois campos é muito simples: tudo lhes é
devido. O partido do governo imaginou ser possível partilhar com
oligarcas regionais poderosos e com os suportes das finanças nacionais e
internacionais o mando e os recursos. No início do governo Luiz Inácio
Lula da Silva, José Genoino disse algo importante: “estamos no governo,
mas não temos o poder”. O esquecimento de tal realidade só poderia
terminar em fim melancólico. O resultado aí está.
O impeachment é constitucional, mas a Constituição ou é um sistema de
normas que regulam umas às outras, ou é apenas um ajuntamento de regras
desconexas e ineficazes. Por exemplo: a determinação do impeachment,
sobretudo por crime de responsabilidade, deve ser conectada ao
mandamento do Capítulo VII, artigo 37. “A administração pública direta e
indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”.
Vejamos as cenas escondidas com o processo de impeachment. Este é
contra um dos operadores do Estado, a presidente. Mas lancemos os olhos
sobre parlamentares que autorizaram o procedimento. Boa parte deles,
algo em torno de 135 deputados federais, estão na mira da Justiça ou já
respondem processo judicial, protegidos pela prerrogativa de foro.
Eduardo Cunha é réu estabelecido e alvo de vários processos por
improbidade.
O Senado não tem situação diferente, a partir do parlamentar que o
preside. Mesmo setores da oposição têm contra si investigações policiais
e do Ministério Público. Qual legitimidade resta ao Congresso Nacional
para impedir a dirigente do Executivo? Do ponto de vista estritamente
legal, pode ser enunciada a validade do procedimento. Mas no horizonte
da legitimidade – as cenas escondidas indicadas por Auerbach – que vai
muito além e aquém da norma, seria preciso destituir ao mesmo tempo os
que integram o Legislativo e, mesmo, setores do Judiciário. Talvez seja
tempo, não de convocar eleições gerais, mas uma Assembleia Nacional
Constituinte, dissolvendo-se o atual Congresso, eivado de vícios devidos
aos piores procedimentos partidários e corruptos.
JU – Outro argumento presente no discurso dos governistas é que o
processo de impeachment, tal como foi aprovado, implicaria num Estado de
Exceção e, portanto, num risco para a democracia. Afinal, nossa
democracia corre perigo?
Roberto Romano – Estranho que só agora tenha sido descoberta a lógica
que define a máquina estatal brasileira. A nossa forma política e
jurídica, desde o século 19, vive em perene estado de exceção. No
Império e nas Regências, a força física (um dos monopólios mais abusados
em nosso país pelos governos) e as normas legais não valiam para os
donos das regiões, os coronéis, e para os proprietários do poder
central. Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei.
No século 20, duas ditaduras sanguinárias impediram qualquer atividade
livre e democrática. No regime de 1964 mesmo decretos secretos foram
promulgados. Não tivemos, como povo, experiências duradouras de ordem
democrática. E o suposto protetor da Constituição, o cimo da Justiça, o
STF, sempre coonestou os piores abusos e arbítrios do Executivo, não
raro apoiado pelo Legislativo. Somos um Estado absolutista anacrônico e
ainda não chegamos à República. É bom recordar que governantes de
centro-esquerda e de esquerda, tendo em vista as alianças pela
governabilidade, ajudaram a manter o mando oligárquico e os privilégios
dos que operam o Estado.
Sinto muito recordar, agora, um fato marcante. Quando José Sarney usou
helicóptero público para passear em sua ilha da fantasia, e foi
denunciado, Luiz Inácio Lula da Silva decretou que “Sarney não é um
homem comum”. A República exige que todos sejam comuns. As exceções
jamais devem ser toleradas. Enquanto o realismo político, em leitura
tosca de Maquiavel, encobrir os oportunismos da hora, a democracia corre
perigo, como hoje. Quando chegou ao governo federal, a liderança de
esquerda deveria conhecer o modo de funcionamento da máquina repressora e
perenemente ditatorial do Brasil. Mas ela abraçou justamente os que
mantiveram ditaduras direitistas no século 20.
JU – O senhor se preocupa com o atual momento brasileiro no que diz respeito à segurança das instituições?
Roberto Romano – Um mantra repetido, sobretudo à direita, mas também
aceito pela esquerda, reza que “nossas instituições funcionam
normalmente”. É o mundo da fantasia que, uma hora ou outra, sofre a
resistência da realidade. Como pode funcionar normalmente um Legislativo
à beira das celas, e onde os seus presidentes são fortes candidatos à
cadeia? Como pode funcionar normalmente uma Justiça que ainda julga, no
STF, casos de roubo de doces (o último deles foi relatado pelo juiz Fux,
semanas atrás) e demora anos e anos para julgar políticos corruptos e
confessos? Se as instituições brasileiras funcionam segundo normas,
estas últimas devem ser abolidas incontinenti.
Sim, me preocupo porque as nossas instituições não servem aos
contribuintes e aos cidadãos. Nossa sociedade amadureceu bastante, se
urbanizou de modo célere desde os anos 60 do século 20, o que exige o
aporte de serviços públicos complexos (água, esgoto, escola, hospital,
lazer, etc) que não são atendidos pela enorme centralização das
políticas públicas. Sessenta por cento dos municípios brasileiros não
têm água e esgoto condignos. E nos demais setores, o descalabro é
similar. As manifestações de 2013 tiveram o condão de chamar à
consciência tais problemas.
Os operadores do Estado, em vez de seguirem para o rumo democrático,
apresentaram projetos restritivos de direitos e privatizantes. Uma
sociedade de 200 milhões de integrantes não recebe, do Estado, serviços
públicos eficazes. E no plano da segurança, temos o descalabro policial e
o elitismo autoritário dos juízes. Não por acaso somos campeões de
assassinatos no mundo. Só existe garantia institucional quando a maioria
do povo é assistida no cotidiano.
JU – Qual o efeito concreto que o eventual impeachment da presidente Dilma poderia ter nesse cenário?
Roberto Romano – Com o impeachment, teremos outro curativo no organismo
do Estado brasileiro, o que, evidentemente, não vai melhorar o todo
estatal formado sob o modelo absolutista, irresponsável, corrupto,
oligárquico. No plano imediato, haverá certa “melhora” na economia, dado
que os ditames do capital financeiro serão obedecidos e as empresas
terão novamente os cofres públicos ao seu dispor. Mas o nosso problema
se localiza no Estado antidemocrático, na sociedade idem, na ausência de
qualquer accountability nos três poderes. O concreto mesmo é que em
pouco tempo estaremos às voltas com crises mais graves do que a de hoje.
As crises resultam da estrutura não democrática do Estado e da
sociedade. Sem mudanças em ambos, o caos será sempre uma ameaça, mais
abrangente.
JU – É possível identificar, do ponto de vista histórico, os fatos que
deram início à atual crise política? Como o senhor vê essa crise sob uma
perspectiva histórica?
Roberto Romano – Dom João trouxe para cá todo o ressentimento
contrarrevolucionário, oposto às conquistas democráticas trazidas pelos
movimentos políticos que mudaram o Estado inglês (os puritanos e a
doutrina da accountability), ajudaram a instaurar o Estado
norte-americano, e destruíram a monarquia francesa. Aqui, o Estado foi
imposto como instrumento contrário às formas democráticas.
O princípio da irresponsabilidade do Chefe de Estado, na Constituição
de 1824, simboliza o “poder divino” ainda outorgado ao soberano. À
“gente ordinária de vestes”, o povo, restou muito pouco após o banquete
dos funcionários e oligarcas. Com a República, quase nada mudou. Ainda
subsiste entre nós a ambiguidade entre prerrogativas e privilégios dos
que operam os poderes. Entremos em qualquer prefeitura: atrás do balcão
existe sempre um cartaz enorme, avisando: “Insulto a funcionário, tantos
anos de cadeia”. Mas não existe, ao lado, um outro quadro “desrespeito
ao cidadão, tantos anos de cadeia”. Esta é a miniatura do que se passa
no Estado maior.
No Antigo Regime o rei comprava o clero e os nobres com isenções,
privilégios, empregos. Mas nunca foi registrado que o mesmo rei pagava
as carruagens do cardeal ou duque. Aqui, dos vereadores aos senadores,
passando pelos prefeitos, deputados estaduais, federais, secretários,
etc. todos têm carruagem pagas pelo povo soberano. São bilhões que
poderiam ser empregados em saúde, educação, etc.
E não falemos da excrecência, abençoada pelo STF, da prerrogativa de
foro. Tais marcas foram adquiridas em séculos de ampla dominação
política, econômica e social. Elas definem um modelo obsoleto e injusto.
Que, se não for removido, trará ainda muito sofrimento.
JU – Analistas políticos de diversas tendências costumam fazer
comparações históricas para tentar interpretar a crise atual. Alguns
comparam o atual momento à crise que resultou no suicídio do presidente
Vargas, em 1954. Outros evocam cenários internacionais, como o processo
que levou à instauração do Reich e a ascensão de Hitler. O senhor vê
paralelos?
Roberto Romano – Situações diversas exigem análises diversas, o truísmo
é apenas de superfície. Eu mesmo indiquei algo similar quando disse, em
data recente, que a ruptura beligerante entre o PT e o PSDB só tenderia
a beneficiar a direita nacional. Fui criticado acerbamente pelos
seguidores do PT, do PSDB e dos que seguem Olavo de Carvalho. Eu
lembrava justamente as crises da República de Weimar, quando os maiores
inimigos da social democracia eram os comunistas e vice-versa. O que
abriu a porta para a radicalização das direitas, com o corolário
nazista.
O certo é que as batalhas entre a centro-esquerda tucana e o PT,
levaram a primeira a se enfraquecer dentro do PSDB e ao reforço das
alianças entre os dirigentes do PT e setores à direita. Perdoem a
boutade, mas quem semeia Sarney, ACM, e quejandos, colhe Bolsonaro e
Feliciano.
JU – Crises recentes, como a do mensalão, não foram suficientes para
atingir a figura da presidente. Em que medida a corrupção na Petrobrás
acelerou os acontecimentos atuais?
Roberto Romano – É bom recordar o fato. Sim, a diferença entre as duas
crises reside nos bilhões a mais da segunda. E o sistema de
financiamento de parlamentares e empresários corruptos, desta feita,
ronda as portas do Palácio do Planalto. Mas insisto: a quem aproveitou o
saque, além dos empresários presos? Ele foi útil para boa parte dos
que, hoje no Parlamento, pensam impedir a presidente. Inabilidade dela,
pois Luiz Inácio Lula da Silva soube operar com os parlamentares de modo
diplomático e astuto. Dilma insistiu na política do choque com os reais
ou supostos representantes do povo. A chefia da Casa Civil, em seus
governos, foi liderada por pessoas sem tino diplomático, e que se
notabilizaram pelo estilo imperial de trato, o que trouxe muitos
ressentimentos contra a presidente.
JU – Como o senhor analisa a Operação Lava Jato?
Roberto Romano – Ainda estamos longe de conhecer todas as cenas ocultas
da Operação. O que vem à tona mostra um trato duro e tecnicamente
correto com acusados ou réus de corrupção. Mas é bom lembrar, como disse
acima, que leis de proteção aos corruptos estão sendo encaminhadas no
Congresso, à semelhança do que ocorreu após a Operação Mãos Limpas, por
iniciativa de Berlusconi.
JU – Os críticos à Operação Lava Jato acusam a Justiça e a PF de,
deliberadamente, serem seletivas para prejudicar o governo e o PT. O
senhor concorda?
Roberto Romano – Políticos cuja origem é exterior ao PT estão no
cárcere ou respondem a processo. Empresários que beneficiaram todos os
partidos, idem. Agora, uma pergunta: dizer que os “outros” também são
praticantes de ilícitos desculpa um partido?
JU – Como o senhor analisa a atuação do Supremo Tribunal Federal nesse episódio?
Roberto Romano – O STF continua sendo a mais elevada amostra de
arbítrio sob a capa do saber jurídico. Recordo uma entrevista que dei ao
Jornal da Unicamp quando ocorreu o apagão de FHC. Arguida a
constitucionalidade da multa, os magistrados decidiram que o povo não
colaboraria sem multa. O chicote foi aplicado, doutamente, nos ombros do
mais fraco. Joaquim Barbosa, ao julgar a reforma da Previdência
apresentada por Luiz Inácio Lula da Silva, afirmou em alto e bom tom que
“não existem direitos adquiridos, caso contrário ainda vigoraria a
escravidão”. Sofisma bisonho com o qual o juiz pagava sua indicação ao
presidente da República. Não se tratava de gente escrava, mas de
cidadãos trabalhadores que exigiam seus direitos. Hoje, o STF continua
sua tradição de um tribunal político, no pior sentido.
JU – Que papel a mídia de massa, de um lado, e as redes sociais, de outro, estão desempenhando nessa crise?
Roberto Romano – Existem setores da mídia que usam muito a técnica do
holofote, no sentido indicado por Auerbach. Eles iluminam uma cena ou
duas, e nelas insistem de maneira forte. Mas deixam na sombra outras
cenas. Neste sentido, têm motivos certos de queixa os que, apoiadores do
governo, mostram seletividade de boa parte da mídia. Quase nada
aparece, por exemplo, das ilicitudes praticadas por tucanos e políticos
da direita. É como se os únicos heterodoxos no trato das coisas públicas
estivessem na esquerda. Daí, vem a “indignação seletiva” que faz aquele
setor da mídia perder credibilidade. Não raro, jornais e televisões
estrangeiros trazem um quadro mais amplo, com mais cenas no sentido dado
por Auerbach, do que os nacionais.
JU – Em meio ao tiroteio verbal, com notas marcadamente passionais a
favor e contra o impeachment, como é possível ao cidadão comum discernir
os fatos do jogo político, para formar uma opinião mais próxima da
realidade?
Roberto Romano – Volto aos holofotes de Auerbach: para diminuir o
número de slogans e meias verdades, apenas pesquisando as cenas
escondidas pela propaganda. Neste sentido, a cidadania tem ao seu dispor
a internet, alguns setores da mídia e a própria honestidade
intelectual.
JU – Como o senhor analisa a atuação da população, em especial a
polarização política e ideológica verificada nas manifestações pró e
contra o impeachment?
Roberto Romano – Açulada pelos blogs fanáticos, de esquerda ou direita,
e por palavras de ordem truculentas, boa parte da classe média
brasileira tem se comportado com selvageria. O tom latrinário aparece,
de início, nos “comentários dos leitores” dos blogs, revistas, jornais.
Ali não se fala, mas são expelidos os mais baixos sentimentos de ódio.
Mas parte da população, sobretudo a mais jovem, mostra sinais
importantes de politização responsável, sem ataques pessoais, calúnias,
exclusões.
JU – Quais as principais diferenças entre a polarização atual e a verificada em outros momentos de crise política no País?
Roberto Romano – À diferença de 1964, agora as esquerdas têm um apoio
popular mais amplo, embora não organizado. Os anos de poder petista não
serão facilmente extirpados da opinião pública, como ocorreu após o
último golpe civil militar.
JU – Como explicar o atual nível de tensão verificado em ambos os
lados. Em muitas situações, o embate político ultrapassa, em muito, o
terreno das ideias. A corda não parece estar esticada demais?
Roberto Romano – A radicalização do preconceito é comum em crises
políticas, econômicas e sociais. Receio que se alguns limites forem
ultrapassados, passaremos às vias de fato, o que seria o fim da
política.
JU – Como o senhor analisa a atuação do ex-presidente Lula na atual crise política?
Roberto Romano – Luiz Inácio Lula da Silva é um dos poucos líderes
populares do Brasil. Com os fatos recentes da Operação Lava Jato, ele
está na defensiva, sem maiores condições de propor alternativas ao
possível governo Temer. Isto mostra um erro grave, interno ao PT: para
garantir a hegemonia de Lula, nenhuma outra liderança nacional surgiu na
sigla. O PT possui lideranças regionais (Tarso Genro, Jacques Wagner,
os Viana, etc), mas está tão carente quanto os demais partidos, de
lideranças nacionais.
JU – Em caso de impeachment, como deverá se definir o mapa das forças políticas no país?
Roberto Romano – O PMDB estará no comando, dividido como sempre. O
governo estará na dependência de bancadas parlamentares retrógradas e,
na sociedade civil, dos grandes proprietários. Os ruralistas já exigem a
mudança do estatuto das Forças Armadas, para colocá-las a serviço da
guerra contra os sem-terra. A turbulência de hoje será retomada em
breve.
JU – Corremos o risco de, com a crise econômica atual, perdermos os avanços sociais que tivemos nos últimos anos?
Roberto Romano – O vice-presidente Michel Temer afiança que não. Mas as
exigências dos conservadores, para não dizer truculentos, será no
sentido de abolir ou atenuar ao máximo os avanços sociais. A promessa de
privatização ampla e irrestrita, comum nos pronunciamentos dos que
apoiam Temer, indica tal senda.
JU – Como o senhor vislumbra o Brasil nos próximos seis meses?
Roberto Romano – Instabilidade, autoritarismo, intolerância vitoriosa, contestação virulenta. Nenhum clima ameno.
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