Indecoro
Se as mãos de muitos políticos estão sujas, ao menos limpem a língua. Com muito sabão!
*Roberto Romano
23 Fevereiro 2017 | 03h03
Quando a realidade política e social se degrada e atinge o
insuportável, o discurso apodrece, evidencia sinais de morte. As formas
administrativas do Brasil agonizam. Contra o que dizem muitos colegas da
universidade, seguidos por inúmeros jornalistas, discordo da tese
segundo a qual as nossas instituições “funcionam normalmente”. A menos,
claro, que o critério da normalidade seja o hábito de formar quadrilhas
para o roubo das riquezas físicas ou espirituais de um povo.
Mesmo em situações de crise a instituição e os indivíduos que a
manejam devem manter o decoro. Esse é um cálculo difícil. Um gramático
inglês do século 16 exemplifica: se a duquesa vai à corte, ela não pode
usar roupas mais brilhantes do que a rainha. Mas se a mesma pessoa usa
vestimentas inferiores às de suas iguais, é indecorosa. No cálculo do
aceitável em sociedade, consideram-se o corpo próprio e os demais. E
cada um merece tratamento relativo à sua dignidade.
O decoro surgiu na Grécia e recebeu um nome: Aidós. Trata-se da
vergonha imposta a quem não se comporta em público. Penas severas eram
aplicadas aos que, por educação falha ou vício de caráter,
desrespeitavam os cidadãos de Atenas. Sem a vergonha os valores
democráticos empalidecem porque o corpo e a língua indecorosos mostram
que a lei foi corroída pela selvageria.
Na Idade Média o decoro foi retomado pelos monges. A roupa e os
gestos não poderiam depor contra um religioso que, supostamente, tinha
optado pela pobreza. Frades vestidos como barões eram a prova de que os
votos sagrados haviam sido desobedecidos. Daí o uniforme das ordens, sem
enfeites de prata, ouro, pedras preciosas. A “dama pobreza”, segundo
Francisco de Assis, exige que seus pretendentes vivam como ela, vestida
apenas pela graça divina. A língua deveria seguir a mesma regra.
Da Renascença em diante, o decoro passou a nortear as palavras,
as roupas, os gestos dos reis, dos nobres, dos burgueses. Ele é um
exercício de respeito aos outros e meio de garantir o respeito a si
mesmo. Quem não tem prerrogativas, mas quer exercê-las, é indecoroso. Um
hóspede que toma o papel da dona da casa, indicando aos demais o lugar
onde devem tomar assento, é indecoroso. E se a anfitriã deixa o
indiscreto fazer o gesto inconveniente, ela é indecorosa. Sua
prerrogativa não deve ser negada sequer pelo marido, pelos filhos, pais,
etc. Se um bispo comum, numa visita papal, ousa dar a bênção Urbi et
Orbi... ele não apenas enlouqueceu, mas seu ato é indecoroso.
Uma regra que ajuda a decidir as inclinações à moda chinesa,
quando pessoas estão diante da porta: não é a mais jovem, mais bonita,
mais velha a ceder a passagem. Dá o lugar quem o possui. Se o mais jovem
é presidente da República, ele cede a passagem, primeiro aos velhos,
depois às mulheres, depois aos demais. Não é falta de respeito um
inferior na escala governamental passar primeiro. É indecoro do que
detém o mais alto cargo não ceder a passagem, mostra que ele ignora a
etiqueta e as verdadeiras prerrogativas do seu posto.
Assim, na escrita, diz o citado gramático inglês do século 16: se
um autor não usa imagens no texto, é indecoroso por desprezar a
fantasia e o gosto do leitor. Se as usa aos borbotões, é indecoroso,
pois despreza inteligências e culturas. O poeta decoroso jamais dirá
algo como “a face rosada e fina do general”. É indecente um general ter
faces que só cabem às crianças e às raparigas em flor.
Se uma autoridade quer ser respeitada, deve respeitar o povo (que
fica chocado com palavrões e outras marcas de indecoro). Certas falas
devem ser evitadas. Não por causa do hipócrita “politicamente correto”.
Trata-se de algo sério. Os reitores são “magníficos”, mesmo se não
ostentam magnificência. A comunidade acadêmica é a proprietária do
título, usado em seu nome. Deputados, senadores, edis são
“excelentíssimos” não porque sejam dotados de excelência. O título
pertence ao soberano, o que possui a maiestas, termo latino para designar o ente mais elevado no coletivo. Na monarquia, a maiestas é
apanágio do rei, que usa o título em nome do povo. Na democracia é o
próprio povo que a empresta, a cada eleição, aos representantes. É assim
que o decorum exige tratar o povo com respeito. Não por
“boa educação”, mas por subordinação da “autoridade” diante de quem a
“autoriza”. E a regra funciona para todos os Poderes, incluindo o
Judiciário e o militar. Sem tal respeito, temos larápios da soberania,
não representantes.
A expressão “soberania popular” e o termo “majestade” incomodam
ouvidos indecentes. Mas eles permitem reconhecer a força das normas
democráticas. Somos herdeiros do mundo grego e latino em práticas e
valores. O Direito e a política não fogem à regra. No Estado moderno as
ideias de soberania e majestade, contra o exercício ditatorial ou
aristocrático do mando, aplicam-se à totalidade dos cidadãos (Thomas,
Y., L’Institution de la Majesté, em Revue de Synthèse, julho/dezembro de 1991).
Faltar com o decoro diante da maiestas é destruir a fé pública. Um político não tem o direito de ser leviano. Seu ofício exige ponderação, a gravitas. Para os romanos, a gravitas comanda uma atitude “que não se curva em proveito do sucesso político passageiro" (Yavetz, Z., La Plèbe et le Prince).
O representante não pode tratar os cidadãos como crianças. Ele deve ser o portador de uma gravitas dicendi.
“Suruba”, “canalha” e quejandos são termos levianos. A boca suja pode
ser aceita entre malandros, na sua vida íntima. Mas na língua de quem
decide sobre os bens públicos, com repercussões vitais sobre o País,
semelhantes vocábulos indicam apenas... levitas indigna de qualquer democracia.
Se as mãos de muitos políticos brasileiros estão sujas, que eles pelo menos limpem a língua. De preferência com muito sabão.
*Autor de 'Razão de Estado e outros estados da Razão', editora perspectiva
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