Luis Eduardo Soares detona chegada do exército às ruas do rio
20 Fevereiro 2017
“É como se o país declarasse a falência do Estado
democrático de direito e se entregasse às Forças Armadas, tornando a
democracia refém da força”.
Poucas pessoas — talvez nenhuma — tenha se debruçado tanto a estudar,
refletir e expressar a hecatombe da segurança pública brasileira nas
últimas duas décadas como o antropólogo, cientista social e escritor
Luiz Eduardo Soares, de 62 anos.
Nesta entrevista exclusiva à equipe do Mandato Coletivo David
Miranda, ele analisa as últimas movimentações no cenário da segurança
pública do Rio de Janeiro, que vive um momento especialmente tenso. Após
a mobilização de esposas de policiais militares copiar o que foi feito
no Espírito Santo, ao bloquear as saídas dos batalhões, o governo Pezão
chamou as Forças Armadas para se precaver de uma greve — ou um motim —
da tropa.
Logo no primeiro dia de patrulhamento dos fuzileiros navais, uma
morte, numa blitz na avenida Brasil. A escolha pelas Forças Armadas
deixou tenso tanto os moradores de comunidades que já sofreram com a
ocupação do Exército nos últimos anos, quanto os estudiosos da área de
segurança pública, como Soares: “Os militares estão sendo treinados para
a defesa do território e da soberania nacionais por métodos bélicos.
Nesse contexto, os “outros” são inimigos e devem ser eliminados. A
tendência, portanto, é que os militares ajam como se estivessem em
guerra e atuem com força extrema, identificando o “outro” como inimigo a
ser abatido”.
A entrevista é publicada por blog David Miranda, 15-02-2017.
Eis a entrevista.
As Forças Armadas, mais uma vez, chegam ao Rio de Janeiro
nesta semana, num período especialmente tenso por conta das
manifestações dos familiares dos policiais militares. Como você analisa
essa chegada? As Forças Armadas, enfim, podem ser uma resposta a uma
crise de segurança pública?
Não creio que alguém experiente e com formação razoável na área
possa, em sã consciência, considerar que as Forças Armadas possam
representar uma resposta adequada aos desafios da segurança pública.
Tenho certeza de que aos comandantes militares tampouco agrada esse
envolvimento. Afinal, eles sabem que seus comandados não foram treinados
para atuar como policiais, cujo papel constitucional é garantir
direitos dos cidadãos e das cidadãs, evitando sua violação inclusive com
o emprego do gradiente de uso da força, conforme a magnitude dos
riscos, em cada circunstância.
Os militares estão sendo treinados para a defesa do território e da
soberania nacionais por métodos bélicos. Nesse contexto, os “outros” são
inimigos e devem ser eliminados. A tendência, portanto, é que os
militares ajam como se estivessem em guerra e atuem com força extrema,
identificando o “outro” como inimigo a ser abatido. Alguém arguirá: mas
não é exatamente isso que tem ocorrido no Rio e no Brasil, com
lamentável frequência? Sim, mas é justamente pelo fato de as polícias
militares estarem atuando como réplicas do Exército, em desvio de
função, que nossa situação é tão dramática, é por isso que há mais de
seis mortes provocadas por ações policiais, no país, todos os dias, e é
também por esse motivo que tantos policiais são assassinados – em
números crescentes. No fundo, é como se o Brasil, e o Rio em particular,
estivessem abdicando de promover a segurança cidadã, tal como
determinado pela Constituição, e se rendessem à Força, exclusivamente,
em especial à força letal dos braços repressivos do Estado. É como se o
país declarasse a falência do Estado democrático de direito e se
entregasse às Forças Armadas, tornando a democracia refém da força.
Posto que a PM está cada vez mais copiando o Exército, parece que os
governos estão optando por recorrer direto à fonte. Chega de cópias.
Vamos ao original. Isso é trágico.
Além disso, há problemas legais muito graves e desafios bastante
sérios até mesmo para os soldados, nas ruas. Se eles matarem alguém, o
que acaba de ocorrer, quem julgará o homicida? Aplicando quais leis? A
que leis os militares, nas ruas, estão submetidos? E se algum deles for
morto? Quem julgará o homicida? Aplicando quais leis? Estamos caminhando
para transformar o estado de colapso financeiro em estado de
emergência, daí passando ao estado de sítio. O que acontece,
diariamente, nos territórios vulneráveis, vitimizando jovens pobres,
sobretudo jovens negros –onde a Constituição, na prática, é suspensa
para que as execuções extra-judiciais sejam autorizadas–, tende a se
espraiar pela cidade. Estamos diante da expansão da vulnerabilidade para
o conjunto do espaço urbano, resguardados os limites geopolíticos de
classe e cor, bem entendido.
(Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil)
O uso das Forças Armadas pode desequilibrar a democracia brasileira? O caso do México, onde o Exército ganhou um poder político enorme com a guerra aos cartéis, pode se repetir no Brasil?
Há essa preocupação na cúpula das Forças Armadas. Se elas metem os
pés no pântano, correm o risco de serem tragadas. Desde o soldado, na
esquina, até o oficial, no escritório, vários segmentos tornam-se
passíveis de cooptação por redes criminosas. E quando isso acontece, a
sociedade está perdida, porque não há mais a quem recorrer, em nome da
legalidade constitucional. Entretanto, há uma questão central por
esclarecer: por que o Exército está nas ruas do Rio de Janeiro, se o
governo diz que não há greve na PM?
Uma greve dos policiais militares do Rio de Janeiro parece
ser algo cada vez mais factível. Você acredita nesta hipótese? Há como
prever como as facções armadas reagiriam a uma eventual paralisação?
Luiz Eduardo Soares: Sob o dilema greve ou não, há um ponto chave
sempre esquecido: as indignas condições de trabalho a que são submetidos
os trabalhadores policiais militares. O nível de exploração chegou a
extremos inaceitáveis, mas a mídia cala-se, o governo desconversa.
Quando explosões ocorrerem, os culpados serão apenas os que se
rebelarem. A massa policial está farta dessa iniquidade, dessa
hipocrisia. Observem: esse grau de exploração da força de trabalho só é
possível porque esses trabalhadores são militares, isto é, estão
submetidos a um regimento disciplinar draconiano e inconstitucional. A
greve da PM é inconstitucional? Sim, hoje é. Mas não é inconstitucional o
regimento que rege sua vida todos os dias?
As esposas dos PMs apresentaram na sua carta de
reivindicações ao governo do Rio 26 pontos. Entre eles, o fim da UPP e
eleição direta para o Comando Geral da PM. O que chama atenção de você
nessas demandas?
Das 26 propostas, 22 me parecem legítimas, corretas e necessárias.
São até mesmo naturais e já deveriam estar sendo negociadas com o
governo há muito tempo. Contudo, há ali quatro que me parecem
equivocadas e ilegítimas, e que expressam o mal que faz a falta de um
sindicato, isto é, de uma representação corporativa orgânica com
experiência política e compromisso com a sociedade. Sem sindicato, sem
direito à organização, faltam lideranças enraizadas na categoria e nos
movimentos sociais, capazes de, em vez de isolar a categoria, ampliar o
apoio na sociedade. Esse apoio viria não só da justeza das demandas, mas
da mudança radical de comportamento dos policiais e da instituição
policial nas favelas, ante as camadas mais vulneráveis da população e,
em especial, ante os negros. Hoje, a PM tem sido fator de aprofundamento
das desigualdades sociais e de radicalização do racismo estrutural. Uma
liderança sindical madura e democrática faria aliança com os movimentos
sociais em defesa da vida e da integridade de todos, não só da
categoria, e isso envolveria respeito aos direitos humanos de todos,
inclusive dos policiais, evidentemente. Pautas exclusivamente
corporativas tendem a afastar a sociedade e isolar a categoria. Os
movimentos sociais se perguntam: vamos defender vocês para vocês nos
reprimirem de modo brutal, mais tarde? Vamos defender seus direitos para
vocês voltarem a invadir as favelas como o fazem, tratando a população
pobre como tratam, tratando os negros como o fazem?
As quatro demandas equivocadas, a meu juízo, são as seguintes:
1. Pela PEC 300 (porque uma PEC só pode ser aprovada pela maioria
absoluta das duas Casas do Congresso, em dupla votação, e envolve os
orçamentos públicos dos 26 estados e do Distrito Federal. Incluir este
item é dar um tiro no pé e mostrar falta de contato com a realidade).
2. Por eleições para o comando (essa reivindicação só faria sentido
se a categoria estivesse demandando a desmilitarização, o que, aliás,
deveria estar sendo feito. Mesmo assim, o pleito só teria legitimidade
se fosse colocado após a refundação da arquitetura institucional da
segurança pública, no Brasil, o que envolveria a mudança do modelo
policial. Esta é a luta mais ampla e decisiva. Hoje, mesmo na polícia
civil, entregar o comando à corporação significa trancar qualquer
mudança estrutural e jogar no mar a chave do cofre. Estaríamos
consagrando definitivamente nosso modelo policial e cortaríamos o
vínculo das instituições policiais com o voto popular, via eleição do
Poder executivo. O voto mais importante é o voto popular).
3. Pelo fim das UPPs (ainda que hoje elas estejam sendo fator de
elevação da taxa de risco e de exploração do trabalho policial, trata-se
de projeto inscrito em determinada política de segurança. Se a
categoria quer discutir política de segurança, e deve fazê-lo, deveria
começar exigindo a suspensão de ações belicistas e do tratamento dos
suspeitos como inimigos, e o fim da repressão aos movimentos sociais.
Nesse contexto, sim, seria razoável discutir as UPPs e todas as outras
decisões do poder público em matéria de segurança pública).
4. Pelo direito à aquisição de armas e ao porte, ilimitadamente (é
preciso respeitar o debate na sociedade sobre as armas, inclusive dos
policiais. Para defender-se, o porte de armas não é o melhor caminho.
Muito mais efetivo e correto seria a mudança de comportamento ante os
pobres e ante os negros, até porque os policiais militares da base são
pobres e muitos deles são negros, o que torna a guerra da PM contra os
pobres um enfrentamento fratricida).
Em resumo, falta política, com P maiúsculo. Os policiais militares e
seus familiares ganhariam se trocassem o apoio a Bolsonaro e a suas
visões anti-democráticas e desumanas pelo apoio aos segmentos sociais
que lutam por direitos, contra o racismo e contra a violência do Estado
(inclusive, policial). Companheiros e companheiras policiais, agora me
dirijo a vocês: várias de suas bandeiras são muito boas, mas vocês
parecem colocar-se do lado político-ideológico errado. Se a PM trata
negros e pobres como inimigos, como pensa em conquistar o apoio popular
para suas reivindicações? Por falar nisso, por onde anda Bolsonaro? O
que ele tem a dizer sobre as greves das PMs?
Em Vitória, a Guarda Municipal (armada) foi uma das respostas
do poder público à greve (ou ao motim) dos PMs. Essa é uma tendência
nacional? Estamos próximos de ver o surgimento de uma polícias
municipais, como gosta de ventilar o secretário de Ordem Pública do Rio,
Paulo Cezar Amendola?
Nosso país está perdendo a oportunidade de reinventar as instituições
policiais, ao permitir que, sem amparo constitucional, os executivos
municipais criem Guardas Municipais à imagem e semelhança das Polícias
Militares, como se fossem pequenas PMs em desvio de função. Tanto que os
comandantes, não raro, são oficiais reformados das PMs. Esse fenômeno
tem ocorrido com muita frequência, país afora. E tudo isso porque faltam
mudanças na arquitetura institucional da segurança pública, que
autorizassem e estimulassem a construção de polícias municipais de novo
tipo, de ciclo completo e carreira única, desmilitarizadas, orientadas
para o policiamento comunitário e a resolução de problemas, dotadas de
estruturas organizacionais descentralizadas, valorizando os policiais na
ponta, que assumiriam responsabilidades como gestores locais da
segurança, formados na interdisciplinaridade compatível com a
complexidade multidimensional das questões a serem enfrentadas no
cotidiano. Colhendo o respeito e a admiração da comunidade, o policial
estará definitivamente vacinado contra a corrupção e a brutalidade,
porque não há maior óbice a ambos os comportamentos do que o
reconhecimento social. Há Guardas que fogem à tendência dominante, mas,
infelizmente, constituem a minoria. Poderíamos ter nos municípios
embriões das novas polícias, forjadas para a democracia e o respeito aos
direitos humanos. Lamentavelmente, no Rio, a reestruturação da Guarda
parece seguir na contramão desse ideal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.