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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

A corrupção das feras


A corrupção, no mundo e no Brasil, não é façanha de indivíduos e grupos isolados. Desde longa data ela é sistêmica, organizada de maneira burocrática e com formas abigarradas na sociedade civil ou no Estado. Na entrevista que concedi ao programa Roda Viva ( 4/6/ 2007) sobre o assunto, alertei os jornalistas sobre as dificuldades no exame do fenômeno. Como sempre insisto, inclusive neste periódico, a corrupção possui seu lado diacrônico –os escândalos surgem uns depois dos outros, a partir das investigações da polícia e do valoroso ministério público–  e sincrônico, visto que as máquinas do Estado e do mundo mercantil desenvolvem atividades ilícitas no país inteiro, ao mesmo tempo. Uma ladroagem é denunciada mas outras, no mesmo instante, passam desapercebidas. 

Combater o fato corrupto no mundo é tarefa insana. No Brasil, significa topar, a cada momento, com a forma de poder político aqui instalado. Com uma presidência imperial que abarca a maioria absoluta das políticas públicas e dos recursos, são fatais as brechas por onde passam os oportunistas. Dado o poder quase absoluto do Executivo temos a compra deslavada do venal Congresso. Nele, cargos são o prêmio de votações dúplices que resultam em liberação de emendas orçamentárias. No mais, a prática  da política torta se esconde no enorme cipoal de diretrizes e leis, cuja finalidade é criar obstáculos para vender apadrinhamentos de empresas ou indivíduos à cata de benesses com o dinheiro público.
O apadrinhamento de grupos e pessoas, bem como de empresas, conduzido pelos partidos políticos nacionais segue uma tendência histórica planetária, que vem pelo menos do século XIX. Inglaterra, França, Alemanha, EUA, Itália, e muitos outros países conheceram (alguns mantem intacta) a política de indicar para os cargos na administração e nas empresas estatais os “militantes”. Estes últimos têm como função aplicar ventosas nos cofres públicos (e de empresas) para levar dinheiro aos padrinhos, os oligarcas donos de partidos. Insisto aqui na citação de estudos estratégicos sobre o apadrinhamento político e partidário para fins corruptos. Das análises, as mais recentes são as de Jens Ivo Engels no volume coletivo intitulado Apadrinhamento e corrupção políticos na Europa contemporânea (Paris, Armand Colin, 214).  
Em 2009, a revista Época promoveu um debate interessante a partir da pergunta vital: a corrupção diminuiu ou aumentou no país ? Antes, permita o leitor que eu faça uma digressão sobre o comportamento público.
A grosseria no suposto debate político brasileiro beira as raias do linchamento. Alguém discorda de uma palavra de ordem? De imediato a tropa de choque dos militantes, de uma ou outra facção ideológica, procura destruir, não apenas suas teses, mas a sua pessoa, o seu conhecimento, a sua profissão. Surgem as aspas para marcar com ferro ardente o indigitado que desagradou determinadas seitas. Logo, o estudioso de economia, ciência política, filosofia, recebe aspas antes de seu nome. Ele seria, por exemplo, “filósofo”e não mais praticante da filosofia. Em artigo aqui publicado, descrevi tal procedimento fascista (A ideologia das Aspas, 10/03/2013) presente nos rosnados dos sem juízo próprio.
“Duas coisas a burguesia nos legou, e delas não podemos abrir mão: bom gosto e boas maneiras” (Vladimir Ulianov, conhecido como Lenine). No século XX,  surgiu nas ciências humanas o modelo estrutural de pesquisa. Conduzindo ao paradoxo teses como as de E. Durkheim, a subjetividade era reduzidas ao estado de ilusão pré-cientifica. Submetidos à ideologia as pessoas, ao contrário de pensar, seriam pensadas pelos coletivos. Em Louis Althusser, filósofo mais relevante do marxismo estruturalista,  quando não fala a ciência o locutor real é a ideologia, que deve ser suprimida. O ataque se dirigia contra Sartre e demais escritores que defendiam o privilégio da consciência como fontes da ação livre.
Quem pensa nos indivíduos? As classes sociais, a sociedade no seu todo, o partido... Um energúmeno é o indivíduo possuído pela mente e vontade de outros. Assim, o quartel ideológico é a república dos que não falam, são falados. O ideólogo cede seu nome ao Partido, Igreja ou seita. O filósofo recusa o chicote disciplinar dos coletivos. Daí o ódio dirigido contra ele pelos partidos, cujas diatribes são repetidas, empobrecidas e pioradas pelos “mediuns” que só conseguem transmitir  palavras de ordem.
Em muitos casos, covenhamos, é preciso dar crédito à tese sobre os militantes educados por ideólogos (na Grécia, os “sofistas”) que repetem vitupérios para “testemunhar a verdade”, monopólio de sua grei. Convidado pela revista Época (22/07/2009) para debater com o ministro Jorge Hage sobre se melhorara o combate à corrupção no Brasil, tive a temeridade de assumir a resposta negativa.
Apresentei a idéia de que o centralismo das políticas públicas gera corrupção. Desci a minúcias sobre o elo entre municípios e Brasília. Na réplica, o Dr. Hage escreveu: “Debater com o Professor Roberto Romano é um prazer e uma honra. É, acima de tudo, uma garantia de debate limpo, sério e de alto nível. Nesta réplica, na verdade, não tenho o que contestar na excelente análise da formação histórica da nossa “federação”, sobretudo da fragilidade dos nossos municípios”. O ministro, nas considerações finais, dirige “cumprimentos ao Professor Roberto Romano pela sua postura sempre elegante ao travar este debate de maneira franca, séria e leal. Comungo, como já tive oportunidade de afirmar, de várias das opiniões reveladas pelo Professor Romano. Essencialmente, divirjo apenas da sua insistência em não reconhecer os avanços ocorridos no Brasil nos últimos anos nessa área”. Palavras polidas. Mas repetidores de xingamentos rompem a cerca do decorum e tentam transformar o debate em assassinato moral. Dou a seguir como exemplo uma carta, entre muitas, mantendo os erros de digitação pois todos podem cometer tais deslizes, eu inclusive. “(...) Queria aproveitar a oportunidade e Parabenizar ao Sr. Ministro Jorge Hage, pelo texto muito bem escrito e com muita ética! E queria comuniar a equipe da ÉPOCA, que substituisem o prof°Roberto Romano, e colocassem alguém com mais competência e ética para debater,alguém com mais argumente e que tenha mínima noção de política (…) o Prof° Roberto não sabe o que escreve, motivo esse que atrapalha quem está em dúvida! Estude e leia mais, por gentileza, Roberto Romano!”. Por caridade, não cito o nome da autora, mas o leitor curioso o pode encontrar na internet, no site da revista.
Acredito terem boas razões os estruturalistas, para afirmar que os movidos pela ideologia ou pelas paixões subjetivas, não pensam, são pensados... O bom do final é que, apesar de não possuir a maioria das opiniões, os que defendem o governo federal e os oposicionistas, salvo as exceções mencionadas, redigiram textos racionais. O que traz esperanças de que no Brasil ainda existam pessoas inteligentes e capazes de conviver com as diferenças. Com bom gosto e boas maneiras.

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