Reflexões sobre a vida e a morte.
Spinoza.
Roberto Romano. IFCH/Unicamp.
O tema levanta questões filosóficas,
éticas e políticas cuja resposta é quase impossível. A diferença entre vida e
morte abre as portas para a reflexão sobre a eutanásia, o aborto, o Holocausto,
o assassinato frio de pessoas acusadas sem prova, as guerras que assolam países
e milhões de pessoas. Tais pontos são afastados das conversas e debates civis e
políticos. Inquieta sobremodo a invisibilidade da morte, algo comum na
sociedade moderna. Em vez de velar o cadáver na família, o post mortem ocorre em salas higiênicas, como se o falecido fosse
apenas “garbage” a ser descartado. Igor Caruso, no pungente A Separação dos Amantes mostra que,
sem o luto, o morto passa a “viver” na alma do sobrevivente. Afastada toda
manifestação ritual do sofrimento (ritos religiosos, civis, sociais) a morte
não se completa. Do ponto de vista antropológico é como se os mortos tomassem
nas mãos os entes que eles amavam (e por eles eram amados) e os levassem para o
Nada.
Tudo, em nosso quotidiano, confirma
o dito de Karl Marx no 18 Brumário: “A tradição de todas as gerações mortas
oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. Temo que a carência, por nós
sentida, do acatamento aos direitos humanos, reside no vazio entre vivos e mortos.
Sem as cerimônias e a sensiblidade dos que ainda habitam o planêta, fantasmas
encontram lugar na consciência humana invisível. A dor anônima não pranteada
gera ressentimentos, tristeza, vingança. Ela produz a sociedade que, no
pensamento de Spinoza, mais se assemelha a um hospício.
A Ética spinozana insiste sobre o elo
entre vida, morte, relações sociais. Não percebemos sempre, mas o trato com os
nossos semelhantes é garantia de vida, saúde, felicidade. Parece incrível, numa
ordem social capitalista e sem impulso piedoso
–piedade não é algo romântico e significa na era antiga o elo dos indivíduos
com o coletivo– constatar que a individualidade isolada segue rumo à morte.
Spinoza relembra o trato entre vida e morte entre humanos. No livro IV, 39,
escólio da Ética demonstrada geometricamente ele afirma que “o corpo
humano precisa de um grande número de outros corpos para se conservar”. A forma
do nosso corpo “consiste em que as suas partes se comunicam e seus movimentos
seguem determinada relação que o conserva”. Os indivíduos são afetados e afetam
de muitos modos. O movimento e o repouso permite que eles assumam uma outra
forma, o que pode causar sua destruição e os tornar inaptos para afetar e serem
afetados, o que é letal. A vida consiste em estar o indivíduo em pleno movimento
de expansão e conservação. Tal processo só pode ser experimentado em sociedade.
Quando um coletivo morre? O processo é
similar ao ocorrido com o corpo dos que o compõem. Diz Spinoza, “o corpo
humano, enquanto a circulação sangüínea continua, bem como as demais funções
pelas quais consideramos que um corpo vive, pode mudar sua natureza para uma
outra em tudo diferente”. Mudanças ocorrem sem o corpo se transformar em
cadáver. Em referência quase certa a Gongora, lemos no mesmo passo da Ética
que “às vezes um homem sofre mudanças tamanhas que hesitarei muito a dizer que
ele é o mesmo”. Gongora perdeu a memória um ano antes de falecer. “Embora
curado, esqueceu totalmente sua vida anterior e não acreditava serem seus os
romances e tragédias que havia composto. Poder-se-ia considerá-lo como uma
criança adulta se tivesse esquecido também a lingua materna. E se tal coisa
parece incrível, que diremos das crianças ? Um adulto acredita que a natureza
infantil é diferente da sua, e não pode
se persuadir de que um dia foi criança, se não conjeturasse sobre si mesmo a
partir dos outros”.
A última frase é capital: só temos
consciência do que somos e de quem somos porque os outros nos alertam para a
nossa singularidade. Um coletivo sem abertura ao outro é ausência de vida, obscura inconsciência, quase
um ajuntamento morto. A Substância (Deus ou Natureza) é infinita e possui
infinitos modos. Cada modo reúne infinitas relações. No caso dos seres humanos,
a quantidade de nexos por eles mantidos com a natureza e com os semelhantes os
enriquece ou empobrece, depende dos afetos assumidos. “Por afeto compreendo as
afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída,
estiumlada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções”. (Ética
3, Definição 3). Indivíduos que desejam o bem e o fazem aos demais alcançam
poder maior do que os presos ao ódio e à tristeza, paixões que diminuem a
potência de agir. Podemos dizer: os presos aos afetos negativos se aproximam do
estado por nós conhecido, o da morte. Quem amplia seus nexos positivos com os
outros se aproxima da vida.
É o que afirma a Ética no Livro IV,
escólio da proposição 18: “Se dois indivíduos de natureza inteiramente igual se
juntam, eles compõem um indivíduo duas vezes mais potente do que cada um deles
considerado separadamente. Portanto, nada é mais útil ao homem do que o próprio
homem. Quero com isso dizer que os homens não podem aspirar a nada que seja
mais vantajoso para conservar o seu ser do que estarem, todos, em concordância
em tudo, de maneira que as mentes e os corpos de todos componham como que uma
só mente e um só corpo, e seu ser, e que busquem, juntos, o que é de utilidade
comum para todos”.
A doutrina, embora ligeiramente
modificada, já tinha sido exposta por Spinoza nos Pensamentos Metafísicos,
capítulo VI : “Entendemos como vida a força que faz perseverar as coisas em seu
ser; e como tal força é distinta dos próprios seres, dizemos justamente que os
seres mesmos têm vida. Mas a força pela qual Deus persevera em seu ser nada
mais é que sua essência; falam bem, pois, os que dizem que Deus é a vida.”.
A vida, portanto, evidencia a essência
divina, ou a natureza. Tudo o que os homens fazem para conservar o força vital,
sua e de seus iguais, é positivo. Tudo o que os impede de liberar tal poder, é
negativo. Assim, segundo a Ética, V, proposição 10, escólio, “o
melhor que podemos fazer, enquanto não tivermos um conhecimento perfeito de
nossos afetos, é idear um método correto de vida, ou seja, princípios seguros e
gravá-los na memória e sempre os aplicar
às coisas particulares que se encontram facilmente na vida, de modo que a nossa
imaginação seja por eles amplamente afetada e que eles estejam sempre a nossa
disposição. (…) Se lembramos a razão de nosso verdadeiro interesse e do bem
advindo de uma amizade mútua e de uma sociedade comum, se recordamos que a
suprema satisfação da alma nasce do correto método de viver (…) e que os
homens, como as demais coisas, agem por necessidade de natureza, a ofensa, ou
seja, o ódio que dela brota ordinariamente, ocupará pouco a imaginação e será
facilmente superada”.
Vivemos, no século 21, uma crise
inédita no relacionamento dos indivíduos consigo mesmos e com os outros. Das
situações mais comuns às guerras que abalam o planêta, os afetos negativos
parecem vencer os positivos. As potências estatais hegemônicas retornam ao uso
irrestrito da violência, tal como ocorreu no episódio narrado por
Tucídides na Guerra do Peloponeso, sobre o cerco à ilha de Melos.
A colônia de
Esparta queria ser neutra na luta entre potências. Empurrada pelos atenienses
ela entra na guerra. No texto, os embaixadores de Atenas dão o ultimato: Melos
deve render-se e servir Atenas. “Não usaremos belas frases, não diremos
que nosso domínio é justo (…) sabemos e vocês sabem tanto quanto nós, que a
justiça só é levada em conta quando a necessidade é igual. Sempre que uns
possuem mais força e podem usá-la como puderem, os mais fracos arrumam-se (…)
como podem”. A tradução de Hobbes, em sua tradução de Tucídides, é mais radical: a necessidade exprime o estado
de natureza onde todos se enfrentam. Os mais fortes usam sua vantagem
momentânea de poderio. Aos mais fracos resta atingir aquele estado de império. É
de semelhante trecho, na obra de Tucídides, que brota o hobbesiano bellum
omnium contra omnes.
Spinoza
rompe com a razão de Estado e com a doutrina sobre o estado de natureza
defendida por Hobbes. É célebre o trecho da carta enviada por ele a Jarig
Jelles: : “O senhor me pergunta qual a diferença entre o pensamento de
Hobbes e o meu, no relativo à política: ela consiste em que sempre mantenho o
direito natural e só concedo, em
qualquer cidade , direito ao soberano sobre os cidadãos na
medida em que, pela potência, ele os sobrepuje; é a continuação do estado de natureza”. (2 de
junho de 1674). A natureza é um campo em que o “peixe grande tem o direito de
comer o pequeno”. Mas se os peixes pequenos se unem, formam um indivíduo
poderoso diante do qual todo peixe grande sente-se ameaçado. Segundo o Tratado Politico, “se dois homens
se ecncontram e unem suas forças , eles têm um poder maior sobre a natureza, e
por conseguinte maior direito, do que cada um deles em separado”(cap. II,
parágrafo 13). A democracia, união de muitos, é dita por Spinoza como o “regime
mais natural”. Ela não dispensa a força, mas exige, para se realizar
plenamente, a ciência e a razão. Tais atividades trazem vida aos humanos. Mas
se distorcidas pelas paixões, prometem
morte, loucura.
Talvez mais do que na Guerra Fria, o
planêta Terra está ameaçado de morte: armas nucleares nas mãos de meros
demagogos (Trump ou Putin), terrorismo de Estado e de movimentos fanáticos,
devastação do meio ambiente, usura dos seres humanos pelo chamado
neo-liberalismo. Como diz em livro recente um pesquisador do totalitarismo, “a
vida é sempre unida à morte, mas hoje é a morte que engloba a vida (destruição
da biodiversidade natural e cultural, aumento das poluições nucleares ,
químicas, etc). Acabo de citar Marc Weinstein, L ‘évolution totalitaire de l
‘Occident, 2015).
Talvez seja o momento de recordar os
enunciados de L. Wittgenstein sobre o místico e a vida: “o místico não está em
como é o mundo, mas no que é. A solução do problema da vida se entrevê no
desvanecer-se desse problema. Existe verdadeiramente o inexprimível. Ele se mostra;
é o místico. Minhas proposições são explicativas desta maneira: quem me
compreende, afinal as reconhece desprovidas de significado, quando subiu
através delas, sobre elas, para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora
a escada depois de ter subido por ela). Deve passar acima dessas proposições:
então verá o mundo do modo certo”. (Citado por Umberto Eco: Obra
aberta).
O amor intelectual de Deus, em Spinoza,
leva ao conhecimento maior. Nele, os humanos efetuam sua essência divina, a de
agir. “Mais uma coisa é perfeita, mais ela age e menos é passiva; inversamente,
mais ela age, mais é perfeita”(Ética, 5, proposição 40). Nosso mundo resulta de
infindáveis atos, positivos ou negativos. Um elemento negativo reside no culto
do sofrimento e da morte. Afinal, “um homem livre pensa o menos possível na
morte. Sua sabedoria consiste em meditar, não na morte, mas na vida”. Baseado
em que tal frase se sustenta? Numa certeza que poderia ser dita mística:
“Sentimos e experimentamos que somos eternos”. Sejamos claros: se a Substância
é infinita e reúne infinitos modos, destruída a Terra, Deus nada perde. Nós
tudo perdemos. É assim que devemos encarar a corrosão letífera do nosso mundo.
Mas, por outro lado, agir para conservar sua força e beleza é um jeito de afirmar
o poder divino em nós. A liberdade que não significa arbítrio nem capricho nos
faz valorizar o tempo e o espaço nos quais nos movemos e somos. Cada átimo
revela o Eterno e, assim, percebemos o valor da vida e da finitude. Para tal
feito, devemos valorizar a ciência e a prudência (aprendida por Spinoza de
Maquiavel). Afinal, se a salvação “pudesse ser encontrada sem maior esforço,
como explicar que ela seja negligenciada por quase todos ? Mas tudo o que é
precioso é tão difícil como raro”. Omnia praeclara tam difficilia quam rara
sunt. É assim que o filósofo
finaliza a sua estratégica e ainda hoje negligenciada ética da vida, contra os
afetos de morte.
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