Flores

Flores
Flores

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Reflexões sobre a vida e a morte. Spinoza.

Reflexões sobre a vida e a morte. Spinoza.
Roberto Romano. IFCH/Unicamp.



O tema levanta questões filosóficas, éticas e políticas cuja resposta é quase impossível. A diferença entre vida e morte abre as portas para a reflexão sobre a eutanásia, o aborto, o Holocausto, o assassinato frio de pessoas acusadas sem prova, as guerras que assolam países e milhões de pessoas. Tais pontos são afastados das conversas e debates civis e políticos. Inquieta sobremodo a invisibilidade da morte, algo comum na sociedade moderna. Em vez de velar o cadáver na família, o post mortem ocorre em salas higiênicas, como se o falecido fosse apenas “garbage” a ser descartado. Igor Caruso, no pungente  A Separação dos Amantes mostra que, sem o luto, o morto passa a “viver” na alma do sobrevivente. Afastada toda manifestação ritual do sofrimento (ritos religiosos, civis, sociais) a morte não se completa. Do ponto de vista antropológico é como se os mortos tomassem nas mãos os entes que eles amavam (e por eles eram amados) e os levassem para o Nada.

Tudo, em nosso quotidiano, confirma o dito de Karl Marx no 18 Brumário: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. Temo que a carência, por nós sentida, do acatamento aos direitos humanos, reside no vazio entre vivos e mortos. Sem as cerimônias e a sensiblidade dos que ainda habitam o planêta, fantasmas encontram lugar na consciência humana invisível. A dor anônima não pranteada gera ressentimentos, tristeza, vingança. Ela produz a sociedade que, no pensamento de Spinoza, mais se assemelha a um hospício.

A Ética spinozana insiste sobre o elo entre vida, morte, relações sociais. Não percebemos sempre, mas o trato com os nossos semelhantes é garantia de vida, saúde, felicidade. Parece incrível, numa ordem social capitalista e sem  impulso piedoso –piedade não é algo romântico e significa na era antiga o elo dos indivíduos com o coletivo– constatar que a individualidade isolada segue rumo à morte. Spinoza relembra o trato entre vida e morte entre humanos. No livro IV, 39, escólio da Ética demonstrada geometricamente ele afirma que “o corpo humano precisa de um grande número de outros corpos para se conservar”. A forma do nosso corpo “consiste em que as suas partes se comunicam e seus movimentos seguem determinada relação que o conserva”. Os indivíduos são afetados e afetam de muitos modos. O movimento e o repouso permite que eles assumam uma outra forma, o que pode causar sua destruição e os tornar inaptos para afetar e serem afetados, o que é letal. A vida consiste em estar o indivíduo em pleno movimento de expansão e conservação. Tal processo só pode ser experimentado em sociedade.

Quando um coletivo morre? O processo é similar ao ocorrido com o corpo dos que o compõem. Diz Spinoza, “o corpo humano, enquanto a circulação sangüínea continua, bem como as demais funções pelas quais consideramos que um corpo vive, pode mudar sua natureza para uma outra em tudo diferente”. Mudanças ocorrem sem o corpo se transformar em cadáver. Em referência quase certa a Gongora, lemos no mesmo passo da Ética que “às vezes um homem sofre mudanças tamanhas que hesitarei muito a dizer que ele é o mesmo”. Gongora perdeu a memória um ano antes de falecer. “Embora curado, esqueceu totalmente sua vida anterior e não acreditava serem seus os romances e tragédias que havia composto. Poder-se-ia considerá-lo como uma criança adulta se tivesse esquecido também a lingua materna. E se tal coisa parece incrível, que diremos das crianças ? Um adulto acredita que a natureza infantil  é diferente da sua, e não pode se persuadir de que um dia foi criança, se não conjeturasse sobre si mesmo a partir dos outros”.

A última frase é capital: só temos consciência do que somos e de quem somos porque os outros nos alertam para a nossa singularidade. Um coletivo sem abertura ao outro é  ausência de vida, obscura inconsciência, quase um ajuntamento morto. A Substância (Deus ou Natureza) é infinita e possui infinitos modos. Cada modo reúne infinitas relações. No caso dos seres humanos, a quantidade de nexos por eles mantidos com a natureza e com os semelhantes os enriquece ou empobrece, depende dos afetos assumidos. “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estiumlada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as idéias dessas afecções”. (Ética 3, Definição 3). Indivíduos que desejam o bem e o fazem aos demais alcançam poder maior do que os presos ao ódio e à tristeza, paixões que diminuem a potência de agir. Podemos dizer: os presos aos afetos negativos se aproximam do estado por nós conhecido, o da morte. Quem amplia seus nexos positivos com os outros se aproxima da vida.

É o que afirma a Ética no Livro IV, escólio da proposição 18: “Se dois indivíduos de natureza inteiramente igual se juntam, eles compõem um indivíduo duas vezes mais potente do que cada um deles considerado separadamente. Portanto, nada é mais útil ao homem do que o próprio homem. Quero com isso dizer que os homens não podem aspirar a nada que seja mais vantajoso para conservar o seu ser do que estarem, todos, em concordância em tudo, de maneira que as mentes e os corpos de todos componham como que uma só mente e um só corpo, e seu ser, e que busquem, juntos, o que é de utilidade comum para todos”.

A doutrina, embora ligeiramente modificada, já tinha sido exposta por Spinoza nos Pensamentos Metafísicos, capítulo VI : “Entendemos como vida a força que faz perseverar as coisas em seu ser; e como tal força é distinta dos próprios seres, dizemos justamente que os seres mesmos têm vida. Mas a força pela qual Deus persevera em seu ser nada mais é que sua essência; falam bem, pois, os que dizem que Deus é a vida.”.

A vida, portanto, evidencia a essência divina, ou a natureza. Tudo o que os homens fazem para conservar o força vital, sua e de seus iguais, é positivo. Tudo o que os impede de liberar tal poder, é negativo. Assim, segundo a Ética, V, proposição 10, escólio, “o melhor que podemos fazer, enquanto não tivermos um conhecimento perfeito de nossos afetos, é idear um método correto de vida, ou seja, princípios seguros e gravá-los na memória e  sempre os aplicar às coisas particulares que se encontram facilmente na vida, de modo que a nossa imaginação seja por eles amplamente afetada e que eles estejam sempre a nossa disposição. (…) Se lembramos a razão de nosso verdadeiro interesse e do bem advindo de uma amizade mútua e de uma sociedade comum, se recordamos que a suprema satisfação da alma nasce do correto método de viver (…) e que os homens, como as demais coisas, agem por necessidade de natureza, a ofensa, ou seja, o ódio que dela brota ordinariamente, ocupará pouco a imaginação e será facilmente superada”. 

Vivemos, no século 21, uma crise inédita no relacionamento dos indivíduos consigo mesmos e com os outros. Das situações mais comuns às guerras que abalam o planêta, os afetos negativos parecem vencer os positivos. As potências estatais hegemônicas retornam ao uso irrestrito da violência, tal como ocorreu no episódio narrado por Tucídides na Guerra do Peloponeso, sobre o cerco à ilha de Melos.

A colônia de Esparta queria ser neutra na luta entre potências. Empurrada pelos atenienses ela entra na guerra. No texto, os embaixadores de Atenas dão o ultimato: Melos deve render-se e servir Atenas.  “Não usaremos belas frases, não diremos que nosso domínio é justo (…) sabemos e vocês sabem tanto quanto nós, que a justiça só é levada em conta quando a necessidade é igual. Sempre que uns possuem mais força e podem usá-la como puderem, os mais fracos arrumam-se (…) como podem”. A tradução de Hobbes, em sua tradução de Tucídides,  é mais radical: a necessidade exprime o estado de natureza onde todos se enfrentam. Os mais fortes usam sua vantagem momentânea de poderio. Aos mais fracos resta atingir aquele estado de império. É de semelhante trecho, na obra de Tucídides, que brota o hobbesiano bellum omnium contra omnes.

Spinoza rompe com a razão de Estado e com a doutrina sobre o estado de natureza defendida por Hobbes. É célebre o trecho da carta enviada por ele a Jarig Jelles: : O senhor me pergunta qual a diferença entre o pensamento de Hobbes e o meu, no relativo à política: ela consiste em que sempre mantenho o direito natural e só concedo, em  qualquer cidade , direito ao soberano sobre os  cidadãos na  medida em que, pela potência, ele os sobrepuje; é a  continuação do estado de natureza”. (2 de junho de 1674). A natureza é um campo em que o “peixe grande tem o direito de comer o pequeno”. Mas se os peixes pequenos se unem, formam um indivíduo poderoso diante do qual todo peixe grande sente-se ameaçado.  Segundo o Tratado Politico, “se dois homens se ecncontram e unem suas forças , eles têm um poder maior sobre a natureza, e por conseguinte maior direito, do que cada um deles em separado”(cap. II, parágrafo 13). A democracia, união de muitos, é dita por Spinoza como o “regime mais natural”. Ela não dispensa a força, mas exige, para se realizar plenamente, a ciência e a razão. Tais atividades trazem vida aos humanos. Mas se distorcidas pelas paixões,  prometem morte, loucura.

Talvez mais do que na Guerra Fria, o planêta Terra está ameaçado de morte: armas nucleares nas mãos de meros demagogos (Trump ou Putin), terrorismo de Estado e de movimentos fanáticos, devastação do meio ambiente, usura dos seres humanos pelo chamado neo-liberalismo. Como diz em livro recente um pesquisador do totalitarismo, “a vida é sempre unida à morte, mas hoje é a morte que engloba a vida (destruição da biodiversidade natural e cultural, aumento das poluições nucleares , químicas, etc). Acabo de citar Marc Weinstein, L ‘évolution totalitaire de l ‘Occident, 2015).

Talvez seja o momento de recordar os enunciados de L. Wittgenstein sobre o místico e a vida: “o místico não está em como é o mundo, mas no que é. A solução do problema da vida se entrevê no desvanecer-se desse problema. Existe verdadeiramente o inexprimível. Ele se mostra; é o místico. Minhas proposições são explicativas desta maneira: quem me compreende, afinal as reconhece desprovidas de significado, quando subiu através delas, sobre elas, para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora a escada depois de ter subido por ela). Deve passar acima dessas proposições: então verá o mundo do modo certo”. (Citado por Umberto Eco: Obra aberta).    

O amor intelectual de Deus, em Spinoza, leva ao conhecimento maior. Nele, os humanos efetuam sua essência divina, a de agir. “Mais uma coisa é perfeita, mais ela age e menos é passiva; inversamente, mais ela age, mais é perfeita”(Ética, 5, proposição 40). Nosso mundo resulta de infindáveis atos, positivos ou negativos. Um elemento negativo reside no culto do sofrimento e da morte. Afinal, “um homem livre pensa o menos possível na morte. Sua sabedoria consiste em meditar, não na morte, mas na vida”. Baseado em que tal frase se sustenta? Numa certeza que poderia ser dita mística: “Sentimos e experimentamos que somos eternos”. Sejamos claros: se a Substância é infinita e reúne infinitos modos, destruída a Terra, Deus nada perde. Nós tudo perdemos. É assim que devemos encarar a corrosão letífera do nosso mundo. Mas, por outro lado, agir para conservar sua força e beleza é um jeito de afirmar o poder divino em nós. A liberdade que não significa arbítrio nem capricho nos faz valorizar o tempo e o espaço nos quais nos movemos e somos. Cada átimo revela o Eterno e, assim, percebemos o valor da vida e da finitude. Para tal feito, devemos valorizar a ciência e a prudência (aprendida por Spinoza de Maquiavel). Afinal, se a salvação “pudesse ser encontrada sem maior esforço, como explicar que ela seja negligenciada por quase todos ? Mas tudo o que é precioso é tão difícil como raro”. Omnia praeclara tam difficilia quam rara sunt. É assim que o filósofo finaliza a sua estratégica e ainda hoje negligenciada ética da vida, contra os afetos de morte.





Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.