SAUDADES DA ESQUERDA
Que esquerda chata! Por que não se mirar na outra, que não se levava tão a sério, que gostava de viver e de ser feliz?
RICARDO RANGEL
RICARDO RANGEL
Apalavra
“esquerda” surgiu na Revolução Francesa para identificar quem lutava
pelos interesses do povo e contra os privilégios da aristocracia (e,
depois, da burguesia industrial). A partir de então, a esquerda esteve
sempre ao lado das causas progressistas: da República e da democracia;
do fim da escravatura nas colônias; contra o racismo (incluindo o
antissemitismo); pela limitação da jornada de trabalho; pela semana
inglesa; pelo direito de greve; pela emancipação feminina; pelo sufrágio
universal; pelos direitos humanos etc. etc.
Quando
a esquerda tomou o poder, entretanto, a porca torceu o rabo. Na Rússia,
os bolcheviques executaram a família imperial e perseguiram os antigos
camaradas; depois Stalin assassinou os próprios líderes bolcheviques e
extinguiu qualquer traço de liberdade. Na China e em outros países não
foi diferente.
Enquanto
a esquerda que estava no poder estabelecia ditaduras que matavam aos
milhões, a esquerda que não estava no poder tapava o sol com a peneira e
continuava, como se nada houvesse, a denunciar e combater a opressão e a
violência que ocorriam recorrentemente nas ditaduras de direita.
No
Brasil, a esquerda resistiu à ditadura militar, lutou pela
redemocratização, opôs-se aos privilégios e buscou justiça num país
espetacularmente injusto. Havia equívocos e preconceitos, mas também
generosidade e desprendimento, e o desejo de um socialismo com liberdade
em vez de tirania.
E
pelo menos uma parte da esquerda era leve, divertida, engraçada.
Festiva. “Esquerda festiva” era uma expressão pejorativa usada pelos
dois lados para dizer que era uma gente que não dava à luta a devida
seriedade. A esquerda que ia à praia em Ipanema, lia (e escrevia) o
“Pasquim”, almoçava na Carreta e bebia
whisky no Antonio’s (mais tarde, no Florentino), trabalhava duro e gastava tudo o que ganhava na Europa. E ria muito.
O
que não a impedia de ocasionalmente passar uma temporada na cadeia.
Mas, quando saía, voltava a rir de tudo e de todos. Uma esquerda que
queria ser feliz e queria o socialismo porque achava que assim todo
mundo seria feliz.
Até
que, um belo dia, o muro de Berlim caiu, e ficou claro que não havia
peneira que tapasse o sol: o socialismo era inviável. Qualquer
socialismo. Os mais inteligentes desembarcaram da canoa furada, os que
permaneceram a bordo foram ficando cada vez mais ressentidos,
intransigentes, mal-humorados, raivosos. E cegos pela ideologia.
O
PT criou o maior esquema de corrupção de todos os tempos? Preconceito
de coxinha que não gosta de ver pobre em avião. Dilma cometeu fraude
fiscal, levou o país ao precipício, inviabilizou seu governo e sofreu
impeachment? É golpe.
A
Lava-Jato, a maior operação de combate à corrupção já ocorrida no país
(e no mundo), está mudando a cara do Brasil para melhor? Instrumento do
golpe. Lula é um criminoso cinco vezes denunciado? Papo furado de
golpista.
A
Previdência é insustentável e inviabilizará o país em poucos anos? A
CLT, criada há 70 anos em um país pré-industrial, engessa o país,
atrapalha o desenvolvimento e dificulta o emprego? Papo furado de
golpista.
E
ficam mais intolerantes a cada dia. Tem gente de esquerda que segue
Bolsonaro? É preciso denunciar esses fascistas disfarçados. Doria criou
um programa para dar emprego e renda a moradores de rua? É trabalho
escravo.
Homem
falando de feminismo? Não pode. Menina branca de turbante? Vamos
massacrá-la: nenhum branco tem o direito de usar um símbolo de cultura
negra. A menina usa turbante por causa da quimioterapia? Que ache um
símbolo branco para ocultar sua calvície.
Fernandinha
Torres disse que a vitimização feminista a incomoda mais do que o
preconceito machista? Vamos massacrá-la até que peça desculpas. Chico
Alencar confraternizou com Aécio Neves? Vamos massacrá-lo até que peça
desculpas. Leandro Karnal publicou foto com Sérgio Moro? Vamos
massacrá-lo até que retire a foto e peça desculpas.
Que
esquerda chata, sô! Por que não se mirar na outra, que não se levava
tão a sério, que não perdia tempo com bobagem, que gostava de viver e de
ser feliz, que não enchia o saco de ninguém? Até as brigas, como a do
Chico Buarque com o Millôr, no Florentino, eram divertidas.
Saudades
da esquerda de Dias Gomes e Ferreira Gullar, de Guarnieri e Cláudio
Abramo, de Darcy Ribeiro e Tarso de Castro, de Hélio Pellegrino e Millôr
Fernandes, de Ênio Silveira e Flávio Rangel.
É
com muita alegria que volto a escrever no GLOBO, para cujo caderno de
informática contribuí por dez anos. É divertido ver as voltas que o
mundo dá: como, de um suplemento técnico, vim parar no suplemento
cultural, ainda por cima no mesmo espaço de Cora Rónai, editora do tal
caderno de informática e minha amiga-irmã há 30 anos. É uma honra também
dividir este espaço com alguém do gabarito de Miguel de Almeida. Acima
de tudo, vai ser um enorme prazer encontrar vocês aqui quinzenalmente
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