28 Março 2017
Foi no domingo de Páscoa, 26 de março de 1967. O dia em que o Papa Paulo VI anunciou ao mundo a encíclica Populorum progressio.
O documento papal, que hoje celebra o cinquentenário de sua publicação,
expressa uma visão profética do estado de coisas no mundo, justamente
por que ele buscava inspiração nas fontes da Tradição e dos Padres da
Igreja (século II a VII). Isso lhe permitiu também embaralhar as cartas,
levar em consideração os condicionamentos e os posicionamentos
pré-fixados do poder mundial, sem se deixar absorver por eles.
O artigo é de Gianni Valente, jornalista, publicado por Vatican Insider, 26-03-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na atmosfera estagnada da Guerra Fria, o Papa, em vez de dividir o
mundo entre Leste e Oeste, entre comunistas e democratas, ousou
testemunhar que a verdadeira cortina de ferro era a que separava o Norte
do Sul, os "povos da opulência" dos "povos da fome". Assim, com uma
simples constatação, ele quebrava, quase sem querer, um tabu precioso
para os tutores do equilíbrio do poder então vigente: o do Papa capelão
do Ocidente, da Igreja aliada com a frente capitalista. Na época, para
os influentes círculos católicos do Ocidente, a simples menção do
capitalismo "frente a tantos sofrimentos", como fazia a encíclica, era
equivalente a pular sobre o muro, a passar para o lado do inimigo.
Uma encíclica "francesa"
Em uma encíclica sobre os perdedores da modernidade, Paulo VI vinha
pensando desde o início de seu pontificado. Ele estava reunindo
documentos e arquivos em uma pasta com longas anotações. A inspiração,
como explica no parágrafo 4, veio a partir das viagens para a África,
Ásia e América Latina, realizadas por Montini, primeiramente como
arcebispo de Milão e, depois, como papa, durante as quais "podemos ver
com nossos olhos e sentir de perto as gravíssimas dificuldades que
afligem os povos de civilizações antigas, às voltas com o problema do
desenvolvimento".
Na Ásia e na África, Países recém saídos de colonialismo tentavam
tirar proveito da guerra fria para aumentar o preço da sua fidelidade a
um dos dois lados. Na América Latina, assistia-se aos primeiros sinais
de choque entre os regimes ditatoriais de "segurança nacional” com as
oposições populares e as guerrilhas marxistas.
Para Paulo VI, a pedra angular da questão social, naquele momento
histórico, era o desenvolvimento. Ele recuperou, no novo contexto, a
"neutralidade política" da Igreja já prenunciada também por Pio XII na
mensagem de rádio do Natal de 1951. A velha questão social tinha
assumido dimensões planetárias. Onde antes havia o proletariado e a
classe trabalhadora, nos meados dos anos sessenta estavam populações
inteiras morrendo de fome no hemisfério sul.
No texto, Paulo VI derramou toda a sua sensibilidade cultural. A
lista de citações de autores contemporâneos - novidade para uma
encíclica papal - incluiu autores franceses caros a Montini: o filósofo Jacques Maritain, os teólogos do Concílio Marie-Dominique Chenu e Henri de Lubac. O inspirador dos trechos mais pragmáticos foi o dominicano bretão Louis Lebret,
personagem anômalo e vulcânico, do tipo que ainda se encontrava na
Igreja daquele tempo: ex-oficial da Marinha, tinha visto de perto as
misérias dos povos famintos, e como dominicano tinha dado vida a
movimentos e grupos de pesquisa que utilizavam as novas ciências sociais
para tentar sugerir soluções concretas às emergências sociais. Devemos a
ele as passagens que denunciavam, com competência técnica, os
mecanismos financeiros que, já na época, esmagavam as economias dos
Países em desenvolvimento.
Na companhia de Ambrósio e Tomás
Mas as passagens mais eficazes são aqueles em que Paulo VI aplica à
nova situação, os conteúdos da Tradição, a partir dos Padres da Igreja.
Cita o De Nabuthae de Santo Ambrósio, para reavivar a tradicional
"hipoteca social" sobre a propriedade privada. Assim ataca o novo dogma
da propriedade privada inviolável, e deduz a partir dos escritos do
Santo Bispo de Milão também a legitimidade de medidas como a
expropriação, precisamente numa época em que a questão inflamava as
lutas entre fazendeiros e camponeses despossuídos na América Latina.
Reconhece que "às vezes o bem comum exige a expropriação" se certas
posses, por sua extensão excessiva, e em situações de miséria
generalizada, são um óbvio "obstáculo para a prosperidade coletiva". Ele
retoma também a fórmula mais dura e seca da encíclica Quadragesimo Anno
do Papa XI para condenar "o imperialismo internacional do dinheiro".
Recorre a termos da análise marxista para denunciar o neocolonialismo
("pressões políticas e de poder econômico exercidas para defender ou
conquistar uma hegemonia dominadora"). Na ocasião, lança um aviso contra
os desvios tecnocráticos ("a tecnocracia de amanhã pode ser uma fonte
de males não menos temíveis que o liberalismo de ontem") e a hipócrita
retórica de "livre comércio" utilizada para garantir a continuidade das
relações de força entre o Norte e o Sul, jogando sujo com os preços das
matérias primas.
Com a linguagem da teologia católica mais consolidada, Paulo VI
avalia também a possibilidade histórica de que a raiva pela injustiça e a
exploração possam causar violentas revoltas: a ganância obstinada dos
ricos certamente irá suscitar o "julgamento de Deus e a ira dos pobres,
com consequências imprevisíveis"(49). A insurreição armada, embora
indicada como uma fonte de novas injustiças e desastres, é justificada
"em caso de uma ditadura prolongada que atente seriamente contra os
direitos humanos fundamentais e prejudique de forma perigosa o bem comum
do País." A própria possibilidade já tinha sido reconhecida e
justificada, nos mesmos termos, por Santo Tomás, em sua Summa
Theologica.
Assim, citando Santo Thomas e os Padres da Igreja, Paulo VI trincava
aquele dogma cultural dos tempos modernos segundo o qual a defesa da
Tradição, na Igreja, deveria necessariamente coincidir com uma visão
cultural e política "de direita". O Papa repetia que a opção
preferencial pelos pobres, até o limite das consequências "subversivas",
é uma escolha de Deus, inscrita no mistério de sua predileção.
Papa "maoísta"
"Warned up Marxism", marxismo aquecido. Assim, a encíclica montiniana
foi liquidada pelo Wall Street Journal. Até o Times considerou que
algumas partes do documento papal tinham "o tom estridente de uma
polêmica marxista do início do século".
Aproveitando o ensejo das grandes manchetes além oceano, a imprensa italiana de direita também relançou o fantasma do Papa "vendido para o comunismo". O jornal romano Il Tempo falou em "pastoral da pregação substituída pela espada e sabre da insurreição e guerrilha", argumentando que "a tese da divisão do mundo em Países do Norte industrializados, imperialistas, egoístas, exploradores e Países do sul atrasados, explorados e camponeses, é própria de Mao e da China Popular". De qualquer forma - acrescentava o jornal romano - não havia nada para se preocupar, porque, apesar das palavras do Papa, "setores muito amplos, influentes e poderosos da Igreja Católica militam ao lado do lucro, possivelmente absolutos e exclusivos, ao lado do mundo industrializado e progredido".
O semanal satírico Il Borghese, em um artigo intitulado "Avanti
populorum alla riscossa" (paródia do verso ‘Avanti popolo alla riscossa’
da famosa canção Bandiera Rossa do movimento operário italiano),
afirmou que o Bispo de Roma tinha assumido "toda a tralha antiliberal e
antiburguesa". Enquanto o Corriere della Sera minimizou, salientando
que, na verdade, "o capitalismo lamentado pela encíclica não existe
mais".
Por seu lado, a agência soviética Novosti reconheceu que "Populorum
progressio talvez contenha as palavras mais duras ditas sobre o
capitalismo desde que Jesus expulsou os vendilhões do templo",
acrescentando, com uma nota de política eclesiástica, que "dificilmente a
nova encíclica vai agradar ao Cardeal Spellman, para o qual servir a
Deus é estar ao serviço da política americana".
Mas as críticas não vieram apenas da direita. Mesmo a imprensa
burguesa-iluminada disparou contra a encíclica dos pobres. A revista
italiana Epoca estampou como manchete de seu editorial "Populorum
Progressio, regressio Ecclesiae". Enquanto o líder dos vaticanistas da
época, Carlo Falconi, no jornal Espresso colocou em contraposição ao
documento os textos sociais do Papa Roncalli, culpando os "centros
paroquiais equipados com cinemas, campos desportivos e bares",
identificados como "a trave no olho" de Igreja.
Foram os primeiros sinais do que, nos anos sucessivos, se tornaria o
verdadeiro e próprio linchamento do Papa Montini pelos mais poderosos
meios de manipulação da opinião pública ocidental. Enquanto os
acolhimentos mais entusiásticos da encíclica foram registrados em Países
em desenvolvimento e nas igrejas daqueles Países. Na Tanzânia, o
presidente Julius Nyerere escreveu a "Declaração de Arusha", a Magna
Carta do socialismo Africano, inspirado na encíclica de Montini. E, em
agosto de 1968, em Medellín, a segunda Conferência Geral do episcopado
da América Latina, inaugurada com a presença do Papa Paulo VI,
realizou-se toda na esteira da Populorum progressio, que no documento
final foi citada 28 vezes.
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