Juízes políticos?
O Estado brasileiro, nos três Poderes, exala miasmas irrespiráveis
Roberto Romano*
26 Março 2017 | 05h00
Alguém se candidata ao cargo de juiz. Para ganhar votos,
distribui bolinhos, cupons de gasolina, pizzas para professores de
escolas públicas, bebidas grátis para a patuleia. É assim que a campanha
eleitoral de Thomas Spargo lhe fornece a toga em Nova York, no ano da
graça de 1999. Eleito, Spargo cria elos com políticos que arrecadam
estranhos fundos partidários. Sua esperteza lhe garante lugar elevado na
judicatura, pois chega em 2001 à Suprema Corte do Estado. Ele sofre
processo na Comissão de Conduta Judicial, mas não muda o comportamento.
Em 2006 é destituído por exigir propina de advogados, sua condenação sai
em 2009.
A crônica não é lisonjeira, na terra que preza a dupla Law and Order.
Mas boa maioria dos juízes norte-americanos opera na mesma zona
cinzenta entre atividades judiciais e partidárias. É o que o jornal The New York Times batizou de “realismo legal”. Os magistrados labutam, na essência, em horizonte político (J. Bybee, k.: All Judges are Political, except when they are not, acceptable hypocrisies and the Rule of Law, Stanford Law Books, 2010).
Se nos Estados Unidos ocorre o conúbio de tribunal e política,
que dizer do Brasil? A União Nacional dos Juízes Federais (Unajuf) quer
magistrados em pleitos e partidos (Estado, 14/3). Mas aqui nenhum juiz é sufragado pela stulta plebs.
Nossas togas são escolhidas em concursos, sem favores e votos do
eleitor. A dignidade do tribunal, em terras brasileiras, não seria
conspurcada por ofertas de pizzas e bebidas gratuitas aos cidadãos. Os
juízes pertencem a uma estirpe superior. Seu ânimo e suas sentenças nada
devem aos escrutínios em que se pronuncia o “leigo”. Tais enunciados,
entretanto, resumem uma ilusão. Estamos aqui em pleno domínio do mito,
cauim sorvido em talagadas que reiteram a dormência geral.
Segundo Thomas Spargo, os juízes são políticos “except when they
are not”. O sentido da frase é tarefa da mais árdua hermenêutica. Nos
Estados Unidos, adianta Bybee, “muitos reconhecem que o processo
judicial é permeado pela política. Outros parecem acreditar que as
decisões judiciais são definidas por fundamentos puramente legais”. Mas
cerca de 87% dos juízes, em 39 unidades da Federação, passam pelas
urnas. Aqueles pleitos não diferem dos efetivados para os demais Poderes
públicos. E eles custam muito financeiramente. Em 2004 a eleição para a
Suprema Corte de Illinois gastou mais do que 18 das 34 eleições para o
Senado realizadas no mesmo ano. Anúncios na TV e outros meios são
garantidos por grupos de interesse e partidos políticos (Cf. Bybee, J.
(Ed): The Collision of Courts, Politics, and the Media, Stanford, 2007).
Custos chamam doadores, doadores nem sempre (o Brasil é prova)
buscam alvos legais. Logo, a fé na obediência imparcial e objetiva à
Constituição sofre abalos. A média das pesquisas feitas entre 1989 e
2009 mostra que 67% dos entrevistados consideram os juízes imparciais.
Mas 70% têm certeza que as sentenças trazem máculas políticas. Para
atenuar o problema desde 1940 alguns Estados empregam recrutamento
diverso do das urnas. É o “Plano Missouri”. Comissões não partidárias
avaliam candidatos e os recomendam. Aos cidadãos é perguntado apenas se
aprovam ou não os juízes; 34 Estados usam variantes do “Plano Missouri”.
Tais consultas são menos onerosas do que as outras.
Mas, cautela! O processo ordenado supostamente no mérito dos candidatos, adianta Bybee com provas, “pode envolver politicagem (politicking)
e lobbies nos bastidores”.
O âmbito federal, no qual os juízes não
passam por eleições, é mais confiável? Indicados pelo presidente,
acolhidos por senadores, magistrados têm permanência garantida, desde
que seus costumes sejam pautados pelo decoro. Encantador universo do
sonho. Na vida real não é assim. Na Suprema Corte “independente do povo,
dos legisladores e de todo poder sob o firmamento”, os juízes “percebem
a si mesmos independentes do próprio céu” (Shklar, J. N., Legalism: Law, Morals, and Political Trials).
A seleção para os pretórios federais, hoje, “é um assunto altamente
político, com funcionários eleitos que perseguem os nomeados para
resolver problemas importantes de partidos e proeminentes grupos de
interesse” (Hart, H. L.A., The Concept of Law). Poderíamos
seguir as teses do autor e de outros sobre a Justiça enleada em política
nos Estados Unidos, na França, na Alemanha, na Itália, etc. Do jurista
Bybee, urge consultar a importante resenha Electing Judges: The Surprising Effects of Campaigning on Judicial Legitimacy”, em Book Review 22, 2012. Para uma análise diversa, Tamanaha, B. Z., Beyond the Formalist-realist Divide: The Role of Politics in Judging, 2010.
No Brasil, causa tristeza a mendicância – ou o termo chulo usado
por Romero Jucá – de quem deseja lugar nos tribunais superiores e no
Supremo. A lista de votos inclui muitos fornecidos por congressistas
corruptos. Candidatos prometem a políticos, depois presos e condenados,
“matar no peito” processos contra eles. Outros aceitam parolagens em
chalanas e são aprovados, mesmo constatado plágio em seu doutoramento.
Uma consulta à biografia de Saulo Ramos ilustra o ponto. Há diferença
entre tais zumbaias e a demagogia dos juízes eleitos pelos cidadãos? Os
nossos candidatos à toga não distribuem pizzas aos parlamentares. Eles
prometem – se entregam é outro assunto – leniência explícita ou velada.
São curiosos os encontros entre julgadores e réus, no segredo dos
gabinetes ou no exterior. Salamaleques, num Congresso que tudo troca,
parecem piores do que a bajulação das massas. A promiscuidade se
transforma em regra. Procuremos saídas que mantenham a dignidade do
juiz, da lei, do cidadão honesto. O Estado brasileiro, nos três Poderes,
exala miasmas irrespiráveis.
*Professor da Unicamp, é autor de 'Razão de Estado e outros Estados da Razão'
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