Publicado 26/02/2017 - 07h59 - Atualizado 26/02/2017 - 08h10
Por Milene Moreto
Cedoc/ RAC
"Não há nem sombra de eleição primária no Brasil.
Aqui, quando chega a urna, o prato está feito. O eleitor não escolhe.
Ele apenas aceita a imposição feita pelos partidos políticos."
A política brasileira vive um dos
seus piores momentos. Após o impeachment da presidente Dilma Rousseff,
nada mudou em Brasília, pelo contrário: o caos ainda está instalado no
governo do presidente Michel Temer (PMDB), a população continua dividida
e as medidas adotadas pelo Poder Executivo Federal prometem piorar a
vida dos brasileiros. Apesar do cenário caótico, na economia e na
política, o doutor em filosofia e professor de Ética Política no
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Roberto
Romano, afirma que é possível mudar a forma como se conduz o Brasil.
Para ele, os jovens devem forçar sua entrada nos partidos políticos e
retomar sua organização para tirar o poder das mãos dos caciques que
comandam o País desde a sua fundação. Apenas a mobilização e a união dos
brasileiros serão capazes de instalar definitivamente no Brasil a
democracia, segundo ele.
Correio Popular - Passamos pelo impeachment da presidente
Dilma Rousseff e existia por parte da população uma esperança de que o
processo mudasse o comportamento dos políticos. Por que isso não
ocorreu?
Roberto Romano - O problema da vida política no Brasil está nas
conjunturas, e não nos elementos menores da ordem jurídica. O grande
drama brasileiro está no fato de que o Brasil até hoje — e isso vai
assustar os leitores —, não é uma república, não é uma federação e não é
uma democracia. Ele tem traços de república, traços de federação e de
democracia. A lógica do Estado Brasileiro, em vez de ser republicana, é
oligárquica. O Brasil é dirigido por poucos indivíduos que controlam os
partidos políticos, as regiões e que controlam o poder central. Numa
república não deve haver privilégios. Vou dar dois exemplos, mas poderia
dar muitos outros. Você tem no Brasil algo que é ignorado em todas as
repúblicas contemporâneas, inclusive em monarquias, que é a prerrogativa
de foro. É uma coisa odiosa e fere a própria essência de uma república,
porque o princípio básico de uma república é a igualdade de todos
perante a lei. Não é uma federação porque no Brasil municípios e estados
não têm plena autonomia. O que há são os famosos três monopólios do
Estado moderno: força cívica, norma jurídica e o monopólio da captação
dos impostos. Você tem uma gigantesca passagem dos recursos dos
municípios e dos estados para o poder central, e esses recursos não
voltam. Municípios e estados estão sempre à míngua. O segundo ponto: não
há distribuição igual e justa dos poderes do município, do estado e da
república. Toda essa crise que vivemos nos presídios e nas polícias
mostra que não há distribuição igual de poderes. E aí surge uma
ineficiência fantástica da máquina do estado brasileiro.
Uma máquina ineficiente e gigantesca...
Gigantesca, burocrática e corrupta, necessariamente. O Estado
federal não repassa, mas cobra a dívida dos municípios. O Poder
Executivo federal age, em relação a unidades menores da federação, como
um poder estrangeiro que venceu uma guerra e está cobrando um butim. Na
questão da norma jurídica, há um abuso do poder central tanto do
Legislativo quanto no Executivo e Judiciário. Tudo é feito tendo em
vista os interesses do poder central e não dos estados e dos municípios.
Nos Estados Unidos cada estado tem uma norma de segurança, de educação,
de direto penal. Há uma federação de fato, embora lá o governo seja
muito centralizado. Com esse governo Trump extremamente arbitrário, é
possível ver a resistência dos municípios e dos estados. Aqui isso é
impensável.
Temos alguma perspectiva para modificar esse sistema no Brasil?
Não existe em país nenhum no mundo a quantidade de privilégios que
estão atribuídos a quem opera o Estado, do município até o poder
central. Se somar só o que é gasto anualmente para manter carros para os
representantes das câmaras, assembleias... Estamos falando de carros.
Isso draga bilhões. Você paga o carro, que está sempre sendo renovado, a
gasolina, os impostos, o pedágio, o motorista. Isso não existe em
nenhum país do mundo. No antigo regime absolutista, o rei precisava do
apoio da igreja e dos nobres. O absolutismo era um regime altamente
corrompido porque o rei comprava esse apoio distribuindo privilégios.
Tirava imposto da igreja, dos padres, dos bispos, dos cardeais. Os
nobres não pagavam impostos como os demais. Mas nunca na história do
absolutismo se tem notícia que o rei pagava carruagens. Aqui ainda
pagamos. O que é terrível. Temos municípios sem recursos próprios que
pagam esses privilégios para seus vereadores e prefeitos. Não tem
dinheiro para fazer um poço e a sua excelência está lá cheio de si num
carro oficial com motorista.
O senhor acha que vivemos um momento de passividade em relação a mudanças profundas na política?
Temos uma história de 500 anos de um Estado que abusa do monopólio
da força, que abusa do monopólio do imposto e abusa da norma jurídica.
Temos uma história de domesticação da cidadania por parte dos que operam
o Estado. Só para falar da história mais recente, sem falar das
insurreições que ocorreram no século 19 e que foram exterminadas na base
do canhão, houve no século 20 duas ditaduras ferozes. Duas ditaduras
que ignoraram o direito básico da cidadania. O povo brasileiro tem medo.
É um povo que não tem a liberdade interior de exigir coisas. Quando no
final das duas ditaduras as massas foram à rua é porque chegou num nível
insuportável.
Como então podemos transformar o Brasil numa democracia real?
De fato, esses pontos não estão na mudança política que se discute
no Congresso. Na realidade, eles vêm com a conversa absolutamente
demagógica e mentirosa da reforma política. A reforma política é um
conjunto de mentiras. É propaganda para jogar areia no olho do eleitor.
Não existe reforma política verdadeira se você não tem uma
democratização dos partidos políticos brasileiros, enquanto os partidos
brasileiros forem propriedade de pequenos grupos de oligarcas. O que é o
PMDB? Uma federação de oligarquias regionais comandada por determinados
barões da política como Renan Calheiros, Romero Jucá, que estão aí há
muitos anos fazendo estripulias sem que possam ser atingidos. Os
partidos políticos brasileiros são encartilhados, oligarquizados,
antidemocráticos. Não há nem sombra de eleição primária no Brasil. Aqui,
quando chega a urna, o prato está feito. O eleitor não escolhe. Ele
apenas aceita a imposição feita pelos partidos políticos.
O senhor acha que os próximos passos da política, como as
reformas, podem despertar no brasileiro esse desejo de mudança ou uma
discussão mais séria sobre o sistema político no País?
Quando há multidões indignadas, é necessário que elas estejam
organizadas para dar o passo seguinte. Conseguimos desde 2012 muita
gente nas ruas e na internet com alguns frutos interessantes. Por
exemplo, a Lei da Ficha Limpa. A lei tem problemas até de ordem
constitucional, mas é um avanço. O passo seguinte é precisar estar
organizado não apenas para cobrar dos políticos, mas para colocar
pessoas que sejam alternativas a esses políticos. Nos partidos
políticos, um dos pontos importantes da sua não-democratização é que a
juventude está expulsa deles. O problema é que o jovem não é bem-vindo
nos partidos, e quando ele consegue entrar, tem que obedecer ordens dos
velhos caciques. Não se criam novas lideranças. Os partidos tendem não
apenas para a oligarquia como também para a gerontocracia. Se somar a
idade média dos dirigentes partidários brasileiros dá milênios. Como
renovar com eficácia? Tem que dar a um jovem uma responsabilidade
adequada para a idade dele, mas que seja um desafio para ele aprender.
O senhor acha que falta força neste momento para cobrar
essa mudança maior por causa da divisão que existe na sociedade hoje
entre direita e esquerda?
Isso existe muito. Por força dessa não-democratização, você vai
criando os grupos de esquerda e de direita. Você tem uma esquerda
laboriosa, militante, mas ela não tem a arte do diálogo. Não aprendeu a
arte do diálogo e da colaboração. Cada pequeno partido quer a vantagem
para si. Quer que o seu programa vença os demais. Já na direita, na
extrema direita que está se formando, o nome símbolo é o Jair Bolsonaro.
Democratas se preocupariam muito com esse fato, de você ter dois nomes
que se sobressaem dessa crise geral da política brasileira: Luiz Inácio
Lula da Silva e Jair Bolsonaro. As pesquisas estão dizendo isso. As
pessoas que têm o desejo da democracia no Brasil deveriam estar muito
alertas. Você tem a intolerância e o dogmatismo que não são
manifestações da democracia.
Essas figuras que representam o lado mais conservador passam uma sensação de segurança maior em crises?
A população é sempre dividida entre a passagem do medo e a
esperança. O que fazer? Apoiar um rei ou um presidente ou um regime
porque ou você tem medo dele, ou por que você tem esperança? No caso
dessa crise, os políticos mais tarimbados tentam dosar isso, o medo e a
esperança. Se vocês votaram no meu adversário, vocês vão cair na
desgraça, na falência da previdência social, não vai ter mais emprego. O
grande slogan do Lula era “a esperança venceu o medo”. Essa é a velha
receita política brasileira. Quando existe uma multidão exigindo um
determinado caminho, é preciso indicar esse caminho, e uma vez instalado
no governo, mudar de direção. Essa é a lógica da demagogia e da
propaganda.
Em relação à Lava Jato, muitos projetaram no Judiciário uma
salvação da política brasileira. E o que temos visto é um outro
desfecho...
Eu acho a operação altamente positiva. Ela está identificando as
fraturas do estado brasileiro que permitem a corrupção, a não democracia
plena. Ela tem esse valor. Por outro lado, vejo dois pontos sobre os
quais é preciso refletir muito. Esse desejo que a população tem de um
salvador. Como os problemas não são resolvidos, existe a tendência de
personalizar a saída no indivíduo. Projeta-se nele todas as suas
esperanças e suas expectativas, deixando de lado a crítica. O juiz
Sérgio Moro é o inatacável da República. Ora, ninguém é inatacável e
ninguém deixa de errar. É preciso apoiar o juiz e a operação Lava Jato,
mas com olhos críticos atentos para os erros. Eu vejo também um
autoritarismo muito grande dos procuradores da Lava Jato. Eles se
arrogaram o papel de grandes messias da regeneração da sociedade
brasileira e do Estado.
Na sua opinião, qual será o desfecho da Lava Jato?
O juiz Sergio Moro é um profundo conhecedor da operação Mãos Limpas
na Itália, que fracassou justamente porque os juízes e promotores
italianos não tinham a prática das velhas raposas da política italiana. O
que aconteceu? A partir do momento em que a operação Mãos Limpas
começou a prender muitos políticos, os políticos reagiram fazendo leis
favoráveis a eles. É exatamente o que está acontecendo agora no Brasil. A
quantidade de leis em causa própria é absurda. Quando toda a política
antiga da Itália estava desmoralizada, com centenas de políticos presos,
o Berlusconi apareceu como moralizador. Ele inaugurou a prática de
colocar o empresário como moralizador e corretor da política. Isso que
acontece com o Doria em São Paulo e com o Trump nos Estados Unidos foi
iniciado pelo Berlusconi.
O cenário então tende a permanecer inalterado?
A menos que a imprensa cumpra muito bem o seu papel para fazer o
público pensar. Que esse público deixe de expressar na internet seu ódio
e suas convicções.
Teremos um ano pela frente com um pouco de mais do mesmo?
Temer centralizando o poder, políticos tentando se blindar contra
denúncias e punições...
Com um agravante. Quando caiu o Collor, subiu o Itamar Franco. O
Itamar era respeitado, governador de Minas, modernizante, íntegro e era
uma liderança em Minas. Ele pegou o País num caos, com uma inflação
tremenda, com corrupção, os oligarcas mandando e o que ele fez? Reuniu
técnicos que fizeram o Plano Real, que começou o combate à inflação para
melhorar a vida econômica do País. Havia um trabalho de utilizar
pessoas técnicas e políticas para modificar a vida nacional. O que
aconteceu? Por interesses menores, começou o desgaste da figura do
Itamar Franco, que parte da imprensa paulista começou a chamar de
República do Pão de Queijo. A esquerda não se comprometeu com ele. Luiza
Erundina foi nomeada a ministra dele e foi expulsa do PT. Ele também
era vice, estava vindo de um processo de impeachment, mas conseguiu numa
política baseada em honestidade e técnica reverter o quadro. Tanto que
os dois governos do Fernando Henrique e o primeiro do Lula foram
resultado dessa transição de Itamar. Não é o caso de Michel Temer. Ele
nunca foi prefeito, foi secretário de Segurança em São Paulo, ele nunca
teve bases próprias. O grande líder do PMDB em São Paulo se chamava
Orestes Quércia. Ele só conseguiu ter alguma presença maior no PMDB
quando Quércia morreu. Ele não é uma liderança em São Paulo. Ele é um
integrante da cúpula sem qualquer influência.
Diante desse cenário de desorganização social não podemos esperar grandes mudanças no sistema a curto prazo?
Quanto mais desesperadora é uma situação, mas precisamos ter
cidadania. Eu, como republicano e democrata, acredito que nós devemos
tomar a frente da vida política. Os partidos são fechados, nessa hora é
tempo de toda a cidadania consciente correr para os partidos para tentar
mudar as coisas lá dentro. Uma das armadilhas mais eficazes de manter o
poder nas mãos dos corruptos é afastar o cidadão dos partidos. É
preciso incentivar os jovens, os cidadãos, a entrarem nesses partidos e
mudar a situação. Nossa única esperança está em nós mesmos.
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