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domingo, 26 de março de 2017

Saída para a crise está na organização dos "indignados"

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Publicado 26/02/2017 - 07h59 - Atualizado 26/02/2017 - 08h10
Por Milene Moreto
Cedoc/ RAC
"Não há nem sombra de eleição primária no Brasil. Aqui, quando chega a urna, o prato está feito. O eleitor não escolhe. Ele apenas aceita a imposição feita pelos partidos políticos."
A política brasileira vive um dos seus piores momentos. Após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, nada mudou em Brasília, pelo contrário: o caos ainda está instalado no governo do presidente Michel Temer (PMDB), a população continua dividida e as medidas adotadas pelo Poder Executivo Federal prometem piorar a vida dos brasileiros. Apesar do cenário caótico, na economia e na política, o doutor em filosofia e professor de Ética Política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Roberto Romano, afirma que é possível mudar a forma como se conduz o Brasil. Para ele, os jovens devem forçar sua entrada nos partidos políticos e retomar sua organização para tirar o poder das mãos dos caciques que comandam o País desde a sua fundação. Apenas a mobilização e a união dos brasileiros serão capazes de instalar definitivamente no Brasil a democracia, segundo ele.
Correio Popular - Passamos pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff e existia por parte da população uma esperança de que o processo mudasse o comportamento dos políticos. Por que isso não ocorreu?
Roberto Romano - O problema da vida política no Brasil está nas conjunturas, e não nos elementos menores da ordem jurídica. O grande drama brasileiro está no fato de que o Brasil até hoje — e isso vai assustar os leitores —, não é uma república, não é uma federação e não é uma democracia. Ele tem traços de república, traços de federação e de democracia. A lógica do Estado Brasileiro, em vez de ser republicana, é oligárquica. O Brasil é dirigido por poucos indivíduos que controlam os partidos políticos, as regiões e que controlam o poder central. Numa república não deve haver privilégios. Vou dar dois exemplos, mas poderia dar muitos outros. Você tem no Brasil algo que é ignorado em todas as repúblicas contemporâneas, inclusive em monarquias, que é a prerrogativa de foro. É uma coisa odiosa e fere a própria essência de uma república, porque o princípio básico de uma república é a igualdade de todos perante a lei. Não é uma federação porque no Brasil municípios e estados não têm plena autonomia. O que há são os famosos três monopólios do Estado moderno: força cívica, norma jurídica e o monopólio da captação dos impostos. Você tem uma gigantesca passagem dos recursos dos municípios e dos estados para o poder central, e esses recursos não voltam. Municípios e estados estão sempre à míngua. O segundo ponto: não há distribuição igual e justa dos poderes do município, do estado e da república. Toda essa crise que vivemos nos presídios e nas polícias mostra que não há distribuição igual de poderes. E aí surge uma ineficiência fantástica da máquina do estado brasileiro.
Uma máquina ineficiente e gigantesca...
Gigantesca, burocrática e corrupta, necessariamente. O Estado federal não repassa, mas cobra a dívida dos municípios. O Poder Executivo federal age, em relação a unidades menores da federação, como um poder estrangeiro que venceu uma guerra e está cobrando um butim. Na questão da norma jurídica, há um abuso do poder central tanto do Legislativo quanto no Executivo e Judiciário. Tudo é feito tendo em vista os interesses do poder central e não dos estados e dos municípios. Nos Estados Unidos cada estado tem uma norma de segurança, de educação, de direto penal. Há uma federação de fato, embora lá o governo seja muito centralizado. Com esse governo Trump extremamente arbitrário, é possível ver a resistência dos municípios e dos estados. Aqui isso é impensável.
Temos alguma perspectiva para modificar esse sistema no Brasil?
Não existe em país nenhum no mundo a quantidade de privilégios que estão atribuídos a quem opera o Estado, do município até o poder central. Se somar só o que é gasto anualmente para manter carros para os representantes das câmaras, assembleias... Estamos falando de carros. Isso draga bilhões. Você paga o carro, que está sempre sendo renovado, a gasolina, os impostos, o pedágio, o motorista. Isso não existe em nenhum país do mundo. No antigo regime absolutista, o rei precisava do apoio da igreja e dos nobres. O absolutismo era um regime altamente corrompido porque o rei comprava esse apoio distribuindo privilégios. Tirava imposto da igreja, dos padres, dos bispos, dos cardeais. Os nobres não pagavam impostos como os demais. Mas nunca na história do absolutismo se tem notícia que o rei pagava carruagens. Aqui ainda pagamos. O que é terrível. Temos municípios sem recursos próprios que pagam esses privilégios para seus vereadores e prefeitos. Não tem dinheiro para fazer um poço e a sua excelência está lá cheio de si num carro oficial com motorista.
O senhor acha que vivemos um momento de passividade em relação a mudanças profundas na política?
Temos uma história de 500 anos de um Estado que abusa do monopólio da força, que abusa do monopólio do imposto e abusa da norma jurídica. Temos uma história de domesticação da cidadania por parte dos que operam o Estado. Só para falar da história mais recente, sem falar das insurreições que ocorreram no século 19 e que foram exterminadas na base do canhão, houve no século 20 duas ditaduras ferozes. Duas ditaduras que ignoraram o direito básico da cidadania. O povo brasileiro tem medo. É um povo que não tem a liberdade interior de exigir coisas. Quando no final das duas ditaduras as massas foram à rua é porque chegou num nível insuportável.
Como então podemos transformar o Brasil numa democracia real?
De fato, esses pontos não estão na mudança política que se discute no Congresso. Na realidade, eles vêm com a conversa absolutamente demagógica e mentirosa da reforma política. A reforma política é um conjunto de mentiras. É propaganda para jogar areia no olho do eleitor. Não existe reforma política verdadeira se você não tem uma democratização dos partidos políticos brasileiros, enquanto os partidos brasileiros forem propriedade de pequenos grupos de oligarcas. O que é o PMDB? Uma federação de oligarquias regionais comandada por determinados barões da política como Renan Calheiros, Romero Jucá, que estão aí há muitos anos fazendo estripulias sem que possam ser atingidos. Os partidos políticos brasileiros são encartilhados, oligarquizados, antidemocráticos. Não há nem sombra de eleição primária no Brasil. Aqui, quando chega a urna, o prato está feito. O eleitor não escolhe. Ele apenas aceita a imposição feita pelos partidos políticos.
O senhor acha que os próximos passos da política, como as reformas, podem despertar no brasileiro esse desejo de mudança ou uma discussão mais séria sobre o sistema político no País?
Quando há multidões indignadas, é necessário que elas estejam organizadas para dar o passo seguinte. Conseguimos desde 2012 muita gente nas ruas e na internet com alguns frutos interessantes. Por exemplo, a Lei da Ficha Limpa. A lei tem problemas até de ordem constitucional, mas é um avanço. O passo seguinte é precisar estar organizado não apenas para cobrar dos políticos, mas para colocar pessoas que sejam alternativas a esses políticos. Nos partidos políticos, um dos pontos importantes da sua não-democratização é que a juventude está expulsa deles. O problema é que o jovem não é bem-vindo nos partidos, e quando ele consegue entrar, tem que obedecer ordens dos velhos caciques. Não se criam novas lideranças. Os partidos tendem não apenas para a oligarquia como também para a gerontocracia. Se somar a idade média dos dirigentes partidários brasileiros dá milênios. Como renovar com eficácia? Tem que dar a um jovem uma responsabilidade adequada para a idade dele, mas que seja um desafio para ele aprender.
O senhor acha que falta força neste momento para cobrar essa mudança maior por causa da divisão que existe na sociedade hoje entre direita e esquerda?
Isso existe muito. Por força dessa não-democratização, você vai criando os grupos de esquerda e de direita. Você tem uma esquerda laboriosa, militante, mas ela não tem a arte do diálogo. Não aprendeu a arte do diálogo e da colaboração. Cada pequeno partido quer a vantagem para si. Quer que o seu programa vença os demais. Já na direita, na extrema direita que está se formando, o nome símbolo é o Jair Bolsonaro. Democratas se preocupariam muito com esse fato, de você ter dois nomes que se sobressaem dessa crise geral da política brasileira: Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro. As pesquisas estão dizendo isso. As pessoas que têm o desejo da democracia no Brasil deveriam estar muito alertas. Você tem a intolerância e o dogmatismo que não são manifestações da democracia.
Essas figuras que representam o lado mais conservador passam uma sensação de segurança maior em crises?
A população é sempre dividida entre a passagem do medo e a esperança. O que fazer? Apoiar um rei ou um presidente ou um regime porque ou você tem medo dele, ou por que você tem esperança? No caso dessa crise, os políticos mais tarimbados tentam dosar isso, o medo e a esperança. Se vocês votaram no meu adversário, vocês vão cair na desgraça, na falência da previdência social, não vai ter mais emprego. O grande slogan do Lula era “a esperança venceu o medo”. Essa é a velha receita política brasileira. Quando existe uma multidão exigindo um determinado caminho, é preciso indicar esse caminho, e uma vez instalado no governo, mudar de direção. Essa é a lógica da demagogia e da propaganda.
Em relação à Lava Jato, muitos projetaram no Judiciário uma salvação da política brasileira. E o que temos visto é um outro desfecho...
Eu acho a operação altamente positiva. Ela está identificando as fraturas do estado brasileiro que permitem a corrupção, a não democracia plena. Ela tem esse valor. Por outro lado, vejo dois pontos sobre os quais é preciso refletir muito. Esse desejo que a população tem de um salvador. Como os problemas não são resolvidos, existe a tendência de personalizar a saída no indivíduo. Projeta-se nele todas as suas esperanças e suas expectativas, deixando de lado a crítica. O juiz Sérgio Moro é o inatacável da República. Ora, ninguém é inatacável e ninguém deixa de errar. É preciso apoiar o juiz e a operação Lava Jato, mas com olhos críticos atentos para os erros. Eu vejo também um autoritarismo muito grande dos procuradores da Lava Jato. Eles se arrogaram o papel de grandes messias da regeneração da sociedade brasileira e do Estado.
Na sua opinião, qual será o desfecho da Lava Jato?
O juiz Sergio Moro é um profundo conhecedor da operação Mãos Limpas na Itália, que fracassou justamente porque os juízes e promotores italianos não tinham a prática das velhas raposas da política italiana. O que aconteceu? A partir do momento em que a operação Mãos Limpas começou a prender muitos políticos, os políticos reagiram fazendo leis favoráveis a eles. É exatamente o que está acontecendo agora no Brasil. A quantidade de leis em causa própria é absurda. Quando toda a política antiga da Itália estava desmoralizada, com centenas de políticos presos, o Berlusconi apareceu como moralizador. Ele inaugurou a prática de colocar o empresário como moralizador e corretor da política. Isso que acontece com o Doria em São Paulo e com o Trump nos Estados Unidos foi iniciado pelo Berlusconi.
O cenário então tende a permanecer inalterado?
A menos que a imprensa cumpra muito bem o seu papel para fazer o público pensar. Que esse público deixe de expressar na internet seu ódio e suas convicções.
Teremos um ano pela frente com um pouco de mais do mesmo? Temer centralizando o poder, políticos tentando se blindar contra denúncias e punições...
Com um agravante. Quando caiu o Collor, subiu o Itamar Franco. O Itamar era respeitado, governador de Minas, modernizante, íntegro e era uma liderança em Minas. Ele pegou o País num caos, com uma inflação tremenda, com corrupção, os oligarcas mandando e o que ele fez? Reuniu técnicos que fizeram o Plano Real, que começou o combate à inflação para melhorar a vida econômica do País. Havia um trabalho de utilizar pessoas técnicas e políticas para modificar a vida nacional. O que aconteceu? Por interesses menores, começou o desgaste da figura do Itamar Franco, que parte da imprensa paulista começou a chamar de República do Pão de Queijo. A esquerda não se comprometeu com ele. Luiza Erundina foi nomeada a ministra dele e foi expulsa do PT. Ele também era vice, estava vindo de um processo de impeachment, mas conseguiu numa política baseada em honestidade e técnica reverter o quadro. Tanto que os dois governos do Fernando Henrique e o primeiro do Lula foram resultado dessa transição de Itamar. Não é o caso de Michel Temer. Ele nunca foi prefeito, foi secretário de Segurança em São Paulo, ele nunca teve bases próprias. O grande líder do PMDB em São Paulo se chamava Orestes Quércia. Ele só conseguiu ter alguma presença maior no PMDB quando Quércia morreu. Ele não é uma liderança em São Paulo. Ele é um integrante da cúpula sem qualquer influência.
Diante desse cenário de desorganização social não podemos esperar grandes mudanças no sistema a curto prazo?
Quanto mais desesperadora é uma situação, mas precisamos ter cidadania. Eu, como republicano e democrata, acredito que nós devemos tomar a frente da vida política. Os partidos são fechados, nessa hora é tempo de toda a cidadania consciente correr para os partidos para tentar mudar as coisas lá dentro. Uma das armadilhas mais eficazes de manter o poder nas mãos dos corruptos é afastar o cidadão dos partidos. É preciso incentivar os jovens, os cidadãos, a entrarem nesses partidos e mudar a situação. Nossa única esperança está em nós mesmos.

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