São Paulo, quarta-feira, 02 de agosto de 2000
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A farsa dos "Tribunais" de Contas
ROBERTO ROMANO A vida política tem fundamento na fé pública. Sem ela, não faz sentido eleger alguém para administrar o bem comum. Se os cidadãos possuíssem a certeza de que nenhuma individualidade merece confiança, o Estado desabaria com a vida civil, com o mercado, com as atividades múltiplas do coletivo. Enquanto resta apoio nas consciências à associação cívica, as palavras que designam suas funções devem ser bem definidas. Tal exigência de um apuro na linguagem é para que seja possível a obediência aos Poderes. Como aceitar uma lei formulada de modo ininteligível aos governados? É possível obter adesões do maior número, se a massa não compreende a linguagem normativa? Hobbes levou páginas do "Leviatã" definindo termos. Seu gáudio não era a disputa escolástica nem o prazer dos jogos verbais. Discursos cheios de termos preciosos servem na maior parte do tempo à tarefa subversiva de quebrar o circuito da significação, a troca entre os que dirigem o Estado e os dirigidos. Uma limpeza nos termos, em nossa calamitosa República, pode servir à instauração da ética e da moralidade política entre nós. Não me refiro apenas aos discursos capengas dos Parlamentos, recheados de impropriedades gramaticais e crimes contra a lógica e o decoro. Trata-se de algo mais bruto, com efeitos nefastos, que toleramos no dia-a-dia. Entre muitos exemplos, retenho um. Ouvimos falar, como se fosse algo certo, em "Tribunais de Contas" nos municípios, nos Estados, na Federação. Esse deslize nos termos conduz a um outro, semântico, o qual resulta no reforço da corrupção política. Tribunal tem origem no latim "tribunus", dignidade de quem fala e julga em nome do povo ou dos soldados. Na República Romana, disputas violentas deram-se ao redor da "tribunicia potestas". Por volta de 36 a.C., a plebe, para se defender de impostos abusivos e de outros atentados do imperador, passou a confiar cada vez mais nos tribunos. Donde o acréscimo da autoridade daqueles últimos, chegando ao respeito superlativo, a idéia de uma "tribunicia sacrosanctitas" (Grant. M.: "From Imperium to Auctoritas"). A majestade dos tribunais, desde o Império Romano, reside na confiança depositada em sua integridade, prudência, saber. No Estado moderno, costuma-se encarar os magistrados como seres excepcionais, tanto no conhecimento das leis quanto em madura sabedoria humana. O exagero nesse sentido gerou uma casta, com frequência insensível às dores e às alegrias dos cidadãos, votada ao fetiche de parágrafos legais e fugindo ao sentido político de seu múnus, o de proteger o direito e a justiça da ordem pública. Mas, se exagero existe, isso não é motivo para que se utilize o nome da magistratura para acobertar todo o jogo de trocas e compromissos políticos que imperam entre os Executivos e os Legislativos. Os títulos de "tribunais" e de "juízes" aplicados às instituições menores, destinadas a auxiliar no ordenamento das contas oficiais, são um atentado à dignidade das togas. Os "juízes" mencionados não raro desconhecem as bases técnicas do Direito, não assumem a defesa das leis (seu compromisso é com os Executivos poderosos o bastante para nomeá-los e com as maiorias ocasionais dos Parlamentos). A usurpação do nome de "tribunais" serve aos espertos governantes e demagogos na tarefa de absolver, diante da opinião pública, contas tortuosas, passíveis de punição em tribunais verdadeiros. No horror do município de São Paulo, no escândalo do TRT, em todos os crimes contra a fé pública, os "Tribunais" de Contas aparecem por sua omissão e outros motivos pouco nobres. Urge exigir: nas esferas do Legislativo e do Judiciário, tais órgãos devem perder o nome sacrossanto de tribunais, deixando de ser instrumentos de manipulação dos Executivos e de suas maiorias. Se isso for feito, um pouco de confiança pode restar na vida política brasileira. Sem essa medida profilática, lembro que, no romano Tácito, "tribunal" também pode ser a plataforma onde se coloca um monumento fúnebre. No caso, o da república democrática brasileira. Roberto Romano, 54, é professor titular de ética e filosofia política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). |
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