Para pensar a crise – Roberto Romano
André Leroi-Gourhan, grande etnólogo do século
20, mostra que nosso corpo é produto de nossa técnica. Desde o
princípio vivemos em tecnosfera. Moldamos nosso organismo dos pés à
caixa craniana, o que possibilitou as técnicas de manipulação e a
linguagem. Mas o principal é que o corpo, base da ética, se prolonga no
universo dos objetos técnicos. Cada sociedade inventa sua técnica ao
emprestar traços de outras sociedades. Só inventa, quem se torna
competente para emprestar. A técnica é krisis, decisão.
O mesmo para a ética. Uma cultura presa em si mesma, sem choques com
outras, nada acrescenta no trato com a natureza e consigo mesma. A crise
é essencial para a sobrevivência, a técnica e a ética. Para os médicos
dos tratados hipocráticos (fonte das nossas formas éticas), a crise da
doença é o momento em que ainda não foi vencida a moléstia (a morte pode
vir) e já surgem sinais da saúde. Tudo depende da perícia do médico e
das forças que se chocam no corpo adoecido. Na ética, ficar na indecisão
sem usar medidas técnicas para sair da crise, é aceitar o
desaparecimento. Mas apressar o fim da crise antes do tempo pode ser
desastroso. Esta é a lição política ensinada de Platão a Maquiavel.
Trata-se do kayrós, o tempo oportuno. Para solucionar uma crise
ética, devemos saber qual o instante certo para decidir. Um minuto
antes, um minuto depois, pode ser a ruína da sociedade ou do Estado.
A ética brasileira surge do absolutismo, que nega a democracia
(pensemos na prerrogativa de foro). Aqui reinou por tempo demasiado a
desconfiança diante das conquistas políticas mundiais. Basta ver o ódio
votado à liberdade de imprensa, o veto às oposições, o conúbio entre
público e privado. Emprestamos alguns elementos da mundialização técnica
e ética. Mas nos tornamos incapazes de inventar novas técnicas ou
éticas, o que não nos assegura futuro invejável. Se persistirmos sob uma
forma de governo anacrônica (dos operadores do Estado, que agem como se
não devessem prestar contas ao “cidadão comum”), setores de nossa ética
serão ainda mais fossilizados.
As crises brasileiras deixam de ser desafios de vida, pois anunciam a
morte. Somos condenados à admiração popular diante dos que “roubam, mas
fazem”. Tal complacência é preparada com ardilosidade, e tem como datas
principais as mesmas que indicam a gênese do Estado absoluto, regime do
qual surgiu o nosso poder público. Para atenuar a corrupção inerente a
semelhante poder, urge lutar pela democracia, ameaçada no mundo inteiro
e, particularmente, no Brasil, terra onde ela é frágil. Aqui, mais do
que em outros países, é preciso inventar, com técnica acurada, uma nova
sociedade e um novo Estado. Que o Instituto Não Aceito a Corrupção nos
ajude a conseguir, pelo menos em parte, tal nobre objetivo.
Roberto Romano
Professor titular de Ética da Unicamp.
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