30 set 2015
A expressão mais presente no discurso político da
atualidade, mais até que corrupção ou petrolão, é REFORMA POLÍTICA. O
professor Roberto Romano, professor de Ética na Universidade de
Campinas, traz à baila algumas questões que ajudarão a um melhor
entendimento dos desafios que a época propõe. Num texto refinado, porém
claro, o ilustre pensador questiona as relações que os grandes
interesses cultivam com o Poder. Cabe relembrar, aqui, uma das mais
ferinas boutades a respeito dos parlamentares americanos, ainda hoje um
dos modelos mais aprimorados da grande democracia de massas
contemporânea: “o povo americano tem o melhor congresso que o dinheiro
pode comprar” (a frase não é do professor Romano).
Reforma política e lobby
(Roberto Romano)
(Roberto Romano)
“Não é preciso ter a finura de Marcel Proust para evocar as trapaças
do tempo que toldam a memória e fragilizam a vontade. Santo Agostinho
tem duras páginas sobre a nossa desgraça na finitude, mortal fuga do
Eterno. Dele fomos expulsos pelo erro que nos trouxe a mentira e o
declínio até o Apocalipse. Em plano bem menor, os escândalos da vida
econômica e política escondem armadilhas que dominam a consciência
pública, distorcida pela falsidade cronológica. Temos notícias dos
crimes e delitos de modo diacrônico: toda manhã os jornais trazem os
“malfeitos”. Retomados, tais fatos entorpecem os sentidos. Após alguns
anos poucos indivíduos ouvem, olham, sentem, inalam a podre desolação
imperante nas instituições pervertidas pelos interesses ilegais.
Sistemática, a vida coletiva pervertida tem outro lado, o sincrônico:
no instante em que uma quadrilha assalta certa repartição ou instituto,
outra age de modo igual em parte distante ou próxima do poder. A
máquina de moer princípios éticos opera em dois registros temporais. A
cidadania distraída sempre retoma a cantilena da indignação quando
estoura um escândalo, mas não busca o fio que une os atentados aos
dinheiros públicos.
Como arrancar, na luz diurna, bilhões destinados às políticas
públicas? Ninguém pode fazer tal milagre isoladamente. Para o sucesso
toda uma rede é armada, técnicas precisam ser movidas, hábitos comuns
reúnem os meliantes. A corrupção não é singular, mas necessariamente
coletiva. Estudos analisam os atos de quem rouba o erário. A intelecção
dos agentes corruptos une as trocas de favores, “amizades”,
apadrinhamentos, interesses sociais e políticos (J. Boissevain, Friends
of Friends: Networks, Manipulators and Coalitions, 1974).
Para corromper normas e projetos são inventadas novas e sutis formas
de acesso às informações, às pessoas, às influências. Uma estrutura
triádica, no entanto, sempre opera no setor escuro da vida política:
existem os clientes, postos nos dois lados do balcão, e os agenciadores
(os brokers), que distribuem cargos e recursos, garantem fidelidade aos
pactos.
Combater a corrupção requer controlar os “clientes” e quem os
favorece. O caso Alberto Youssef é claro: ele serviu como broker
(corretor) para corrompidos nos dois polos, o público e o privado. Não
basta punir um ou dois integrantes da rede, os três devem receber sanção
negativa. A tarefa requer forças que vão além de polícia, Justiça,
controladorias. Todos os que pagam impostos deveriam agir como fiscais
dos cofres públicos. É mais fácil, entretanto, abrir o jornal, ligar a
TV ou o computador e assumir o rito inútil da indignação que leva… à
hipnose e ao esquecimento.
Com o moderno Estado foi inoculado na massa dos contribuintes o dogma
de que existem funções explicitamente públicas, desempenhadas por
pessoas cujos poderes são limitados pela ordem jurídica. Nessa forma de
pensar, apadrinhamentos, favores recíprocos, apoios financeiros para
eleger parlamentares e governantes permanecem na penumbra, raramente
surgem na cena para “desacreditar a ordem legal”. Mas todos sabem e
ninguém confessa: as ligações perigosas entre clientes e brokers definem
a política “realista” que gera as referidas trocas de dinheiro,
clientela, sufrágios eleitorais (Della Porta, D. e Mény, Démocratie et
Corruption en Europe, 1995).
No Antigo Regime o rei distribuía favores aos nobres e clérigos para
manter o trono. Na época já existiam os “padrinhos”, os clientes e os
brokers, que abriam a via para os cargos e dinheiros públicos. As
revoluções modernas instauraram o regime parlamentar. Nele
desapareceriam os benefícios do monarca. Pobre ilusão, pois os
parlamentos reforçam “as técnicas do favor e, com elas, o apadrinhamento
e a clientela também se modernizaram.
Nem a politização, nem a burocratização acabam com elas”(F. Monier,
Patronage et Corruption Politiques dans l’Europe Contemporaine, 2012).
Os elos entre as formas privadas (e públicas) para o enriquecimento de
políticos e líderes econômicos foram instaurados na própria gênese do
Estado parlamentar.
As empresas dependiam do quadro normativo e fiscal do Estado,
concessões e contratos governamentais iniciam sua era dourada. E os
políticos passam a precisar dos empresários para seus assuntos
eleitorais. Ambos buscavam informações para suas estratégias
específicas. Na Inglaterra uma “private law” da House of Commons devia
ser votada sempre que iniciativas no campo ferroviário eram
empreendidas.
O lobby tem papel relevante. Desde 1830 os empresários do ramo se
introduzem no Parlamento, em 1860 eles já eram 200. Ali uniam o papel de
representantes de empresas e do eleitorado. Surgem os agentes
parlamentares e o lobby profissional. Tais agentes operam com
parlamentares, intermedeiam o trato entre firmas, governo, deputados. Em
1867 aparecem as United Railway Companies e várias associações visando
ao lobby. Elas controlam o Board of Trade, aprovam ou impedem leis entre
1870 e 1880. Na França ocorre algo similar. Desde 1870 os deputados
pertencentes à centro-direita ocupam 50 cargos administrativos em grande
empresas do país: finanças, ferrovias, mineração, indústria pesada,
comércio, seguros (J. I. Engels, in Patronage et Corruption, citado
acima). Só no século 20 começa, na Europa e nos EUA, o controle efetivo
dos tratos entre empresas privadas e governos.
O que ocorre no Brasil, portanto, deve ser visto em perspectiva
temporal: aqui ainda se pratica a simbiose de empresários e políticos
com vista a levar recursos públicos para os cofres das firmas privadas e
para os partidos que assumem nas administrações e nos parlamentos
(municipais, regionais, nacional) a função de lobistas, truque que tem o
nome de “bancada X ou Y” do Congresso.
Financiamento público de campanhas políticas sem regulamentar o lobby
e impedir que líderes operem como brokers nos três Poderes é mover o
sorvedouro orçamentário de uma fonte para colocá-lo em outra, menos
visível, mais tirânica”.
Foto: Jornal da Gazeta
(Publicado no jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, em 10/11/2014)
*Roberto Romano é professor da Unicamp
*A Fundação Barão e Visconde de Mauá não se responsabiliza pela opinião pessoal dos autores. O sentido das postagens é contribuir para alargar o campo de debate sobre temas sociopolíticos de relevância.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.