Reflexões sobre a reforma política
Vê-se, no palimpsesto da história política, que todo regime social ou de Estado se corrompe
Roberto Romano*,
O Estado de S.Paulo
03 Setembro 2017 | 05h00
03 Setembro 2017 | 05h00
Em artigo recente (A indulgência perpétua das castas prostitutas, Estado,
23/8, A2), José Nêumanne Pinto aponta a bacanal dos poderosos
instalados nos palácios. O jornalista evidencia os absurdos do voto
reduzido à compra e venda, sob o comando de velhos caciques e de outros
mais jovens, nada cândidos. O termo “candidato” vem da velha Roma. Ali,
os pretendentes aos cargos envergavam vestes alvas para mostrar almas
limpas. Não apenas na política havia tal exigência. O futuro esposo
usava vestes brancas. Na peça Casina, de Plauto, o noivo é dito candidatus.
No vocabulário romano, a candidez pública entra numa rica constelação
de significados éticos. Ela sintetiza os vocábulos ao redor de honos, homenagem devida ao respeito por alguém, de honestas, que, em companhia de auctoritas e gravitas,
distinguem os dirigentes. Os eleitores deveriam apoiar quem possuía
autoridade de comportamento, garantindo respeito ao Estado. Sem tais
elementos, as leis não seriam obedecidas, desapareceria a fides publica.
Hanna Arendt comenta: “Se você precisa gritar para que alguém deixe seu
quarto, falta-lhe autoridade”. Ah, se ela ouvisse os impropérios dos
nossos senadores e deputados! Um legislador deve exibir gravidade em
palavras e atos. É semelhante universo semântico que recolhe o termo
“candidato”.
Deixemos a República de Roma, sigamos para Atenas, paradigma
democrático. Diz Platão que cidade onde comanda o vulgo, fera de mil
cabeças, cada um se comporta do jeito que lhe apraz, assume atitudes
privadas e públicas violentas. A lei contra a hybris (o abuso
do fraco pelo mais forte) perde sentido. A democracia licenciosa é “como
um manto de muitas cores, matizado com toda espécie de tons.
Embevecidas pela variedade do colorido, (...) muitas pessoas julgam essa
forma de governo a mais bela”. Com o “direito” de todo cidadão obedecer
apenas a si mesmo falece a democracia. A massa só acolhe elogios e os
candidatos prometem obedecer os que se recusam a seguir as normas. Os
disciplinados cometeriam a tolice de respeitar um texto desprovido de
força armada. De pouco adianta, constata Platão, justiça rigorosa em
palavras, mas ineficaz. O filósofo observa que muitos condenados pelos
tribunais passeiam, incólumes, pelas ruas de Atenas. Se estivesse no
Brasil, a experiência seria idêntica. No Congresso Nacional temos casos
estarrecedores de impunidade. Políticos têm prerrogativas tirânicas.
“Tirano é o governante que usa os bens dos governados como se fossem
seus” (Jean Bodin). Os abusos oficiais se refletem nos hábitos
particulares. Na democracia sem limites, como ninguém pode ter
autoridade, o professor adula e tem medo dos alunos, os velhos imitam os
jovens “a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários” (República, 563a).
A paixão pelo ganho, no mundo oligárquico – forma social e
política anterior à democracia –, narra Platão, se expande pela
sociedade. Todos nela desejam o seu lote. Resulta acrescida a
desigualdade de bens. Com a democracia vem a promessa de riqueza para
todos, somada à igualdade e à liberdade para atingir os próprios alvos.
Aproveitando a cobiça universal, o demagogo acena com cofres cheios em
todo lar. A técnica do tirano e demagogo é a lisonja. Como o camaleão,
ele muda a cor do discurso conforme a oportunidade e a plateia. O único
colorido que lhe escapa, comenta Plutarco, é o branco (Como distinguir o adulador do amigo). O demagogo é o mais antigo cliente do marketing político.
Depois da brancura romana e da crítica à democracia, escutemos
Norberto Bobbio. “No mercado político democrático o poder se conquista
com votos, um dos modos de conquistar votos é comprá-los e um dos modos
para se livrar das despesas é servir-se do poder conquistado para
conseguir benefícios mesmo pecuniários dos que possam receber vantagens
de semelhante poder. (…) Considerada a arena política como uma forma de
mercado, onde tudo é mercadoria, ou coisa comprável e vendível, o
político se apresenta num momento como comprador (do voto), num segundo
momento como vendedor (dos recursos públicos dos quais, graças aos
votos, se tornou potencial dispensador)”. (Cf. “Quale il Rimedio?” In L’Utopia Capovolta, 1990).
É compreensível a indignação de Nêumanne Pinto. Eu mesmo já
publiquei algo na sua linha. Ao me levantar contra abusos do Parlamento,
escrevi na Folha de S.Paulo o artigo intitulado O prostíbulo risonho.
Tive aborrecimentos, porque o “centrão” me perseguiu sob Roberto
Cardoso Alves, o político que batizou a troca fisiológica entre
Legislativo e Executivo: “É dando que se recebe”. O mercado político das
pulgas entrava em seus momentos de glória, prenunciando estadistas como
Eduardo Cunha.
Mas qual elo existe entre a alvura do político romano, a
policromia democrática em Platão e o mercado eleitoral descrito por
Norberto Bobbio? No palimpsesto trazido pela história política, uma
constante: todo regime social ou de Estado se corrompe. Nenhuma reforma
pode mudar o desastre. E tal coisa não é um truísmo, mas destino a ser
encarado pelos que respeitam a liberdade e o direito. Os gênios que
citamos buscaram remédios para a pavorosa Fortuna. Após a democracia
ateniense, veio o duro imperialismo macedônico. Depois da República
romana, chegou a ditadura corrupta de Cesar. O nazismo sucedeu à
República de Weimar. O culto a Stalin brotou após a revolução de 1917.
Lição de prudência encontra-se em Maquiavel. Na Carta a Vetori, ele confessa abandonar a mesquinhez cotidiana, os interesses dos homens comuns. Bem vestido, eis o autor do Príncipe
em conversa com os pensadores antigos. Pena que na política brasileira
não ocorram tais diálogos. No Congresso, a leitura se restringe ao Diário Oficial,
onde são anunciados os pagamentos pelos votos vendidos e comprados. Só
nos restou a torpeza das enlameadas e obscuras reformas políticas,
falsas como as moedas de R$ 3.
Professor da Unicamp, é autor de 'Razão de Estado e Outros Estados da Razão'
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