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São Paulo, sexta-feira, 15 de julho de 2005
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TENDÊNCIAS/DEBATES
Em defesa da livre advocacia no Brasil
ROBERTO ROMANO
"Quatro horas da madrugada... Instante situado entre noite
e aurora, minuto em que, nas instâncias
superiores, as decisões foram assumidas e o que deveria ocorrer já aconteceu.
Hora em que é possível salvar a própria
cabeça e fugir. Hora derradeira da opção livre. Toca o telefone, alguém bate à
porta. Quem? Não sabemos. Um amigo
ou o enviado pelo Grande Mecanismo?"
Com semelhantes práticas instaura-se a ditadura da polícia. O governo abusa do segredo e cria meios para espionar os cidadãos
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Tais frases comentam os minutos que
antecedem a metamorfose de todo ex-cortesão, quando acusado pelos que
permanecem nos gabinetes. Ministros
agarram as mentiras que lhes garantem
alguns instantes nos palácios do poderoso. Este, por sua vez, usa todos os recursos para não cair.
Jan Kott ("Shakespeare Nosso Contemporâneo"), no trecho citado, segue
do Renascimento -quando a "Justiça"
real envia palacianos ao carrasco sem
aviso prévio- aos regimes totalitários.
A moderna estrutura política é a mesma: um mecanismo em que os que penetram são dissolvidos. Na máquina,
todos aguardam a morte, mas, para ela,
empurram os semelhantes cuja máscara é a de ministro, de juiz, de militar, de
carrasco.
A Renascença reforça o Estado e nela
se teme a máscara que elimina nomes
próprios em proveito do teatro político.
No francês, diz-se melhor tal loucura:
"personne" traduz o latim "persona",
podendo significar "alguém" e "ninguém". Com as formas repressivas, perdemos o primeiro sentido.
A repressão policialesca ignora o direito e captura dominados e
dominantes. Os teóricos da política descrevem o
Grande Mecanismo descrito por Jan
Kott. Elias Canetti refere-se ao poderoso
como "sobrevivente", pois ele joga inimigos e amigos no moinho político.
Para garantir-se, o poderoso mobiliza traições, juízes venais ou
medrosos, polícia
corrupta ou truculenta.
A cena referida repete-se na vida de
todos os perseguidos. A madrugada garante aos esbirros a não-resistência dos
amigos e transeuntes. Nela, agem os policiais de Ricardo 3º, Robespierre, Napoleão, Bismarck, Hitler, Lênin e Stálin,
Pinochet e militares brasileiros. O dia
pertence à opinião pública. Nele, os segredos são espancados e os governantes
não podem usar o beleguim que realiza
o serviço sujo "sob ordem superior". A
noite aninha o segredo, covarde razão
de Estado.
No Brasil, muitos são presos nas trevas, papéis pessoais e íntimos são
confiscados nas madrugadas. Almas são vilipendiadas em nome de
"superiores"
anônimos. Jornais são empastelados. O
caso mais relevante é a covarde invasão
da Folha pela Polícia Federal. Redações
são destruídas e as armas pioram a censura costumeira.
Também escritórios de advogados recebem a visita sacrílega de policiais
na
busca de papéis sigilosos. Com semelhantes práticas instaura-se a
ditadura
da polícia e dos alcaguetes. O governo
abusa do segredo e gera mecanismos
para espionar os cidadãos. Sem garantias jurídicas de vida livre, os
contribuintes são impotentes para barrar a licença ética e a truculência
dos poderosos. Não enganam as mentiras oficiais
que tentam justificar a profanação dos
escritórios de advocacia. Trata-se de
mais uma engrenagem do Grande Mecanismo.
Donoso Cortés, conservador, mas lúcido analista do Estado, põe no
"Discurso sobre a Ditadura" a confissão dos governantes liberticidas:
"Não bastam, para reprimir, um milhão de braços, não
bastam, para reprimir, um milhão de
olhos, não bastam, para reprimir, um
milhão de ouvidos, precisamos de algo
mais, o privilégio de nos encontrarmos,
num só tempo, em todas as partes. E
conseguiram isto, pois se inventou o telégrafo". Cortés escreve no
século 19.
A democracia aparece na reverência
pelos tribunais e promotores, sobretudo pelos advogados. Sem eles,
desaparecem o nome, a dignidade, o respeito
próprio dos cidadãos acusados. Da harmonia entre as funções brota a
declaração legítima de culpa ou inocência, o veredictum. A polícia serve
como instrumento e não pode dizer às togas o que
deve ser feito. Ela não pode usar a força
física para a intimidação da defesa, como tem ocorrido no Brasil.
No regime policialesco, as piores vilanias são cometidas sem que um
magistrado indique o nome e o cargo dos responsáveis. Com a internet, a
arapongagem, as buscas e apreensões imprudentes e a intimidação dos
advogados, restam a imprensa, os políticos que ainda
respeitam as "pessoas comuns" e os juízes que não autorizam violências
policiais. Sem eles, em breve retornaremos
às madrugadas em que alguém, cujo
nome é ninguém, e em nome de ninguém, bate à porta.
E todos seguem para a tortura e para a
morte.
Roberto Romano,
59, filósofo, é professor titular de ética e filosofia política na
Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). É autor de, entre outras
obras, "Moral e Ciência -A Monstruosidade no Século XVIII" (ed.
Senac/São Paulo). |
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